Autos n. 990.10.287125-8
Suscitante: Décima Quinta Câmara
de Direito Público
Objeto
da impugnação: item 17.08 da Lei Complementar n. 116/03 e item
17.07 da Lei Municipal n. 5.986/2003, do município de Guarulhos
Ementa: 1) Item 17.08 da Lei
Complementar n. 116/03 e item 17.07 da Lei Municipal n. 5.986/2003, do
município de Guarulhos, que fundamentam a cobrança de ISS sobre atividade de
franquia; 2) Instauração de
incidente determinada pelo Órgão Fracionário do Egrégio Tribunal de Justiça,
que declarou vislumbrar a inconstitucionalidade dos citados dispositivos
legais; 3) Nulidade do
acórdão que não inicia a apreciação da alegação de inconstitucionalidade; 4) No mérito, parecer
pela inconstitucionalidade pois “revela-se inarredável que a operação de
franquia não constitui prestação de serviço (obrigação de fazer), escapando,
portanto, da esfera da tributação do ISS pelos municípios”; 5) Parecer pela procedência
da tese de inconstitucionalidade, se superada preliminar de nulidade do V.
Acórdão. |
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator
Colendo Órgão Especial
Trata-se
de Acórdão proferido pela Décima Quinta Câmara de Direito Público do Egrégio
Tribunal de Justiça, no julgamento da Apelação Cível n. 484.520-5/2-00, que suscitou
a instauração de incidente de inconstitucionalidade, determinando a remessa dos
autos ao Excelso Órgão Especial, por força da Súmula Vinculante n. 10 do
Supremo Tribunal Federal, mas sem decidir a questão da constitucionalidade do item
17.08 da Lei Complementar n. 116/03 e do item 17.07 da Lei Municipal n.
5.986/2003, do município de Guarulhos, que fundamentam a cobrança de ISS sobre
atividade de franquia.
Alegação
de que se trata de atividade que não envolve efetiva prestação de serviços e,
por isso, afronta o disposto no art. 156, III, da Constituição Federal,
dispositivo utilizado como paradigma para fundamentar o pedido de
reconhecimento incidental de inconstitucionalidade.
Manifestação
do Colendo Órgão Fracionário do Egrégio Tribunal de Justiça no sentido de que
vislumbra a inconstitucionalidade.
É
o breve relatório.
Preliminarmente
Da nulidade do V. Acórdão
Antes
do órgão fracionário deliberar sobre o mérito do recurso de apelação, para
provê-lo ou não, há necessidade de ser instaurado o necessário Incidente de
Inconstitucionalidade, disciplinado a partir do art. 480 do CPC.
Assim,
arguida a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, é
necessária a prévia deliberação da Câmara, que se rejeitar a argumentação,
deverá prosseguir no julgamento e, nesse caso, negar ou dar provimento ao
recurso.
Só
quando há o acolhimento da arguição de inconstitucionalidade a Câmara deve “suspender”
o julgamento, isto é, não pode prosseguir no julgamento para dar ou negar
provimento ao recurso e determinar a instauração do Incidente de
Inconstitucionalidade, a fim de provocar a deliberação do Pleno.
Porém,
é importante que fique bem claro que é necessária a pronúncia do órgão
fracionário, acolhendo a alegação da inconstitucionalidade, para que seja determinada
a instauração do incidente.
Portanto,
o V. Acórdão proferido pelo órgão fracionário, s.m.j., deve ser anulado, para
que outro seja proferido, para que seja adentrado o exame do capítulo referente
à constitucionalidade ou não dos dispositivos legais impugnados, embora não
seja o caso de se passar ao exame das demais questões tratadas no recurso.
Caso
a deliberação do Colendo Órgão Fracionário seja pela inconstitucionalidade da
lei, deve ser suscitada a formação do incidente para a análise da questão
prejudicial pelo Excelso Órgão Especial.
De
fato, é prejudicial a questão da eventual inconstitucionalidade, sendo que o
órgão competente para apreciá-la, como se disse, é o Órgão Especial, por força do
princípio da reserva de plenário esculpido no art. 97 da Lei Maior.
Requer-se,
pois, seja declarada a nulidade do V. Acórdão.
Em
função do princípio da eventualidade, a Procuradoria-Geral passa a analisar o mérito, com a advertência de que o
parecer se restringe à questão prejudicial, em relação à qual o parecer é no
sentido da inconstitucionalidade dos dispositivos legais impugnados.
A
Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa
indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização
político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da
análise dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (Cf. Alexandre de Moraes,
in “Direito Constitucional”, Atlas, 7.ª ed., p. 261).
Essa
autonomia consagrada aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano, muito
pelo contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e
dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (Cf. De Plácido
e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Forense, Rio de Janeiro, Volume I, 1984, p.
251), sendo definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de
gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade
superior”, que no caso é a Constituição (Cf. “Curso de Direito Constitucional
Positivo”, Malheiros Editores, São Paulo, 8.ª ed., 1992, p. 545).
A
autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a)
auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b)
autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas
Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de
leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua
competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração
própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (Cf. José Afonso
da Silva, ob. cit., p. 546).
Nessas
quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política
(capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa
(capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a
autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços
locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e
aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob.
e loc. cits).
Com
fulcro na autonomia política, administrativa e financeira é que os Municípios
estão autorizados a instituir os tributos e demais receitas de sua competência,
consoante prevê o texto constitucional. Ou seja, tais entes arrecadam para
prover as despesas com obras e serviços públicos, sobretudo nas áreas da saúde,
educação, saneamento básico, habitação, transportes, etc., que são do estreito
interesse da população local.
Em
relação ao caso concreto, a capacidade tributária é expressa no art. 156, III,
da Constituição Federal, nos seguintes termos:
Art.
156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
III
- serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos
em lei complementar.
Porém,
embora não haja qualquer questionamento à capacidade tributária do município, é
fundamental observar que ela só pode ser exercida com base nos parâmetros
constitucionais.
Nesse
contexto, a cobrança de ISS deve incidir sobre serviços, o que não se verifica
no caso que envolve os contratos de franquia.
A
Primeira Turma do STJ, ao julgar o AgRg no REsp 953.840/RJ (DJe de 14/09/2009),
exauriu a questão, de tal forma que merece transcrição as conclusão lançadas na
Ementa:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO
REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. ISS. FRANQUIA (FRANCHISING). NATUREZA
JURÍDICA HÍBRIDA (PLEXO INDISSOCIÁVEL DE OBRIGAÇÕES DE DAR, DE FAZER E DE NÃO
FAZER). PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. CONCEITO PRESSUPOSTO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE
1988. AMPLIAÇÃO DO CONCEITO QUE EXTRAVASA O ÂMBITO DA VIOLAÇÃO DA LEGISLAÇÃO
INFRACONSTITUCIONAL PARA INFIRMAR A PRÓPRIA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA
CONSTITUCIONAL. INCOMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. NÃO CONHECIMENTO
DO RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 535, DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA.
1. O ISS na sua configuração
constitucional incide sobre uma prestação de serviço, cujo conceito pressuposto
pela Carta Magna eclipsa ad substantia
obligatio in faciendo, inconfundível com a denominada obrigação de dar.
2. Outrossim, a Constituição utiliza
os conceitos de direito no seu sentido próprio, com que implícita a norma do
artigo 110, do CTN, que interdita a alteração da categorização dos institutos.
3. Consectariamente,
qualificar como serviço a atividade que não ostenta essa categoria jurídica
implica em violação bifronte ao preceito constitucional, porquanto o texto
maior a utiliza não só no sentido próprio, como também o faz para o fim de
repartição tributária-constitucional (RE 116121/SP).
4. Sob esse enfoque, é
impositiva a regra do artigo 156, III, da Constituição Federal de 1988, verbis:
"Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (...) III -
serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em
lei complementar. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993) (...)"
5. A dicção constitucional,
como evidente, não autoriza que a lei complementar inclua no seu bojo atividade
que não represente serviço e, a fortiori,
obrigação de fazer, porque a isso corresponderia franquear a modificação de competência
tributária por lei complementar, com violação do pacto federativo, inalterável
sequer pelo poder constituinte, posto blindado por cláusula pétrea.
6. O conceito pressuposto pela
Constituição Federal de serviço e de obrigação de fazer corresponde aquele
emprestado pela teoria geral do direito, segundo o qual o objeto da prestação é
uma conduta do obrigado, que em nada se assemelha ao dare, cujo antecedente necessário
é o repasse a outrem de um bem preexistente, a qualquer título, consoante a
homogeneidade da doutrina nacional e alienígena, quer de Direito Privado, quer
de Direito Público.
7. Deveras, o Código
Tributário Nacional, como de sabença recepcionado como lei complementar,
tratava dos Impostos sobre Serviços de Qualquer natureza, em seus artigos 71 a
73, revogados pelo Decreto-Lei nº 406/68, que estabeleceu normas gerais de
Direito Financeiro, aplicáveis ao ICMS e ao ISS.
8. Consoante o aludido
decreto-lei, constituía fato gerador do ISS a prestação, por empresa ou
profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço constante da
lista anexa ao diploma legal, ainda que sua prestação envolvesse o fornecimento
de mercadoria.
9. Na citada lista de
Serviços, anexa ao Decreto-Lei 406/68, com a redação dada pela Lei Complementar
56, de 15 de dezembro de 1987, encontrava-se elencada a atividade de
"Agenciamento, corretagem ou intermediação de contratos de franquia
(franchise) e de faturação (factoring) (excetuam-se os serviços prestados por
instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central);" (Item 48).
10. Destarte, a franquia não
era listada como serviço pelo legislador complementar, mas, sim, as atividades
de corretagem, agenciamento e intermediação que a tivessem por objeto, panorama
que restou modificado pela Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2003, que
revogou os artigos 8º, 10, 11 e 12, do Decreto-Lei 406/68, bem como a Lei
Complementar 56/87, entre outros dispositivos legais.
11. Os Itens 10 e 17, da Lista
de Serviços anexa à Lei Complementar 116/2003, elencam, como serviços
tributáveis pelo ISS, o agenciamento, corretagem ou intermediação de contratos
de leasing, de franchising e de factoring (Subitem 10.04), bem como a franquia (Subitem
17.08).
12. A mera inserção da
operação de franquia no rol de serviços constantes da lista anexa à Lei
Complementar 116/2003 não possui o condão de transmudar a natureza jurídica
complexa do instituto, composto por um plexo indissociável de obrigações de
dar, de fazer e de não fazer.
13. Destarte, revela-se inarredável que a operação de
franquia não constitui prestação de serviço (obrigação de fazer), escapando,
portanto, da esfera da tributação do ISS pelos municípios.
14. A afirmação de
constitucionalidade da inserção da franquia como serviço e a proposição
recursal no sentido de que aquela incide em inequívoca inconstitucionalidade do
Subitem 17.08, da relação anexa à Lei Complementar 116/2003, conjura a
incompetência imediata do STJ para a análise de recurso que contenha essa
antinomia como essência em face da repartição constitucional que fixa os lindes
entre esta E. Corte e a Corte Suprema.
15. Deveras, a mesma
competência foi exercida pela Corte Suprema na análise prejudicial dos
conceitos de faturamento e administradores e autônomos para os fins de aferir
hipóteses de incidência, mercê de a discussão travar-se em torno da legislação
infraconstitucional que contemplava esses conceitos, reproduzindo os que
constavam do texto maior.
16. Aliás não é por outra
razão que o CPC dispõe no artigo 543 que: "Art. 543. Admitidos ambos os
recursos, os autos serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça. (...) § 2º
Na hipótese de o relator do recurso especial considerar que o recurso
extraordinário é prejudicial àquele, em decisão irrecorrível sobrestará o seu
julgamento e remeterá os autos ao Supremo Tribunal Federal, para o julgamento
do recurso extraordinário. (...)"
17. Os fundamentos de índole
notadamente constitucional, sem as quais não sobreviveria o aresto recorrido,
impõem timbrar seu núcleo constitucional para, na forma da jurisprudência
cediça na Corte, não conhecer do recurso especial (Precedentes do STJ: REsp
912.036/RS, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 08.10.2007; AgRg no
Ag 757416/SC, Relator Ministro José Delgado, Primeira Turma, DJ de 03.08.2006;
AgRg no Ag 748334/SP, Relatora Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJ de
30.06.2006; REsp 754545/RS, Rel. Ministro Franciulli Netto, Segunda Turma, DJ
13.03.2006; AgRg no REsp 778173/MG, Relator Ministro José Delgado, Primeira
Turma, DJ de 06.02.2006; e AgRg no REsp 658392/DF, Relator Ministro Francisco Falcão,
Primeira Turma, DJ de 21.03.2005).
18. Outrossim, o Supremo
Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 10, segundo a qual: "Viola
a cláusula de reserva de plenário (cf, artigo 97) a decisão de órgão
fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua
incidência, no todo ou em parte".
19. Ademais, o artigo 535, do
CPC, resta incólume quando o Tribunal de origem, embora sucintamente,
pronuncia-se de forma clara e suficiente sobre a questão posta nos autos.
Ademais, o magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos
trazidos pela parte, desde que os fundamentos utilizados tenham sido
suficientes para embasar a decisão.
20. Agravo regimental
desprovido”.
Em
suma, a inconstitucionalidade é flagrante.
Em
tais circunstancias, o parecer é no sentido da decretação da nulidade do V.
Acórdão ou, se assim não se entender, que seja acolhida a tese da inconstitucionalidade.
São Paulo, 13 de agosto de 2010.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
/md