Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 990.10.287653-5

Requerente: 15ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Objeto: inconstitucionalidade do art. 6º, inciso I e §2º da  Lei n. 4.711/08, do Município de São Caetano do Sul

 

1)      Ementa: Incidente de Inconstitucionalidade do art. 6º, inciso I e §2º,  da Lei n. 4.771/08, do Município de São Caetano do Sul, que altera denominação da taxa de limpeza para taxa de coleta, remoção e destinação de lixo- Previsão de cobrança da taxa de imóvel não edificado e do valor mínimo para lançamento anual, no importe de R$ 146,34.

2)      Taxa que tem como hipótese de incidência serviço não específico e indivisível. Afronta ao art. 145, II, da CR/88 e do art. 77, do CTN.

3)      Parecer pelo acolhimento do incidente.

        

Colendo Órgão Especial:

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 15ª Câmara de Direito Público, nos autos de Apelação Cível em que figuram como partes (...) e PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO CAETANO DO SUL.

 Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, do art. 6º, inciso I e §2º,  da Lei n. 4.711/08 do Município de São Caetano do Sul, que “estabelece  alterações no lançamento do Imposto Predial e Territorial Urbano- IPTU e da Taxa de Limpeza Pública; extingue a Taxa de Combate à Incêndio e de Periclitação à Vida a partir do Exercício de 2009 e dá outras providências”.

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal especificamente sobre a constitucionalidade dos dispositivos legais em análise (art. 481, parágrafo único, do CPP).

Este é resumo do que consta dos autos.

A taxa de limpeza pública  prevista nos citados dispositivos legais é inconstitucional, pois afronta o art. 160, II da Constituição Estadual (que reproduz o disposto no art. 145, II da CR/88), e tem a seguinte redação:

“Art.160. Compete ao Estado instituir:

(...)

II – taxas em razão do exercício do poder de polícia, ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos de sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte, ou postos a sua disposição;”

A Lei Municipal nº 4.711/08, de São Caetano do Sul, prevê tributo cujo fato gerador é a prestação de serviços gerais e indivisíveis, o que o torna incompatível com a sistemática constitucional tributária.

Referidos dispositivos legais impõem recolhimento de tributo sobre imóvel não edificado, situado em logradouro ou via servida  por coleta  e remoção de lixo, por metro linear ou testada.

No entanto, não se pode afirmar com segurança se o imóvel edificado poderá ou não produzir lixo, razão pela qual deveria haver especificação e identificação de critérios para sua cobrança, o que efetivamente não ocorreu.

Não se nega que foi outorgada autonomia aos Municípios, inclusive para fins de instituição e arrecadação de tributos, desde que atendidos os princípios constitucionais estabelecidos, que fixam limites ao exercício dessa competência constitucional (art. 29, caput e art. 30, III da CR/88).

A Constituição da República, ao regular o sistema constitucional tributário, estabeleceu a denominada “regra matriz de incidência”. Embora não tenha ela própria criado tributos, indicou, de forma genérica, a norma padrão de incidência, ou seja, as hipóteses genericamente consideradas, das quais o legislador infraconstitucional de todas as esferas da Federação pode se valer para criar tributos.

A competência das pessoas políticas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), para instituir e arrecadar tributos, deve se desenvolver dentro desses limites, sob pena de mostrar-se inconstitucional.

É indispensável invocar, nesse passo, as considerações formuladas por Roque Antônio Carrazza (Curso de Direito Constitucional Tributário, 4ª ed., Malheiros, 1993, p. 257): “A Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu – ainda que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de liberdade para o legislador – a norma padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital) enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional”.

Além disso, a respeito da hipótese de incidência das taxas anota Roque Antônio Carrazza que deve ser “uma prestação de serviço público diretamente referida a alguém”. São os serviços específicos, prestados uti singuli. “Gozam, portanto, de divisibilidade, é dizer, da possibilidade de avaliar-se a utilização efetiva ou potencial, individualmente considerada. É o caso dos serviços de telefone, de transporte coletivo, de fornecimento domiciliar de água potável, de gás, de energia elétrica, etc. Estes sim podem ser custeados por meio de taxas de serviço” (op. cit., p. 271/272).

No mesmo sentido, anotou oportunamente Geraldo Ataliba (Hipótese de Incidência Tributária, 4ªed., São Paulo, RT, 1991, p. 128 e ss.) que a taxa é espécie de tributo vinculado, tendo em vista o critério jurídico do aspecto material do fato gerador, ou seja, a “hipótese de incidência”, devendo assim ser serviço especificamente ligado ao contribuinte.

Nessa mesma linha de raciocínio, aduz Hely Lopes Meirelles (Direito Municipal Brasileiro, 6ª ed., 3ª tir., São Paulo, Malheiros, 1993, p. 141), que “quanto à divisibilidade, o conceito do Código Tributário Nacional está correto, pois caracteriza como divisíveis os serviços uti singuli, i. é, os de utilização individual e mensurável, que se contrapõem aos serviços uti universi, prestados indistintamente a todos os usuários, sem possibilidade de individualização e medição, muito embora possam beneficiar mais determinadas categorias do que outras. (...) Somente a conjugação desses dois requisitos – especificidade e divisibilidade – aliada à compulsoriedade do serviço, pode autorizar a imposição de taxa”.

É pacífico, na doutrina, o entendimento de que só serviços específicos e divisíveis podem render ensejo à tributação por meio de taxas. Confira-se, entre outros: Luciano Amaro Neto, Direito Tributário Brasileiro, 13ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 33 e ss; Ricardo Lobo Torres, Curso de Direito Financeiro e Tributário, 14ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2007, p. 403; Leandro Paulsen, Direito Tributário, 9ª ed., Porto Alegre, 2007, p. 48.

Essa posição também é assente junto ao E. STF, no sentido de não se admitir a tributação, por meio de taxas, de serviços que não sejam específicos e divisíveis.

Confiram-se os seguintes precedentes: RE 367.004-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 31-5-07, DJ de 22-6-07; ADI 2.424, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 1º-4-04, DJ de 18-6-04; ADI 948, Rel. Min. Francisco Rezek, julgamento em 9-11-95, DJ de 17-3-00; AI 245.539-AgR, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 14-12-99, DJ de 3-3-00; RE 249.070, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 19-10-99, DJ de 17-12-99; ADI 447, voto do Min. Carlos Velloso, julgamento em 5-6-91, DJ de 5-3-93.

Apenas a título de exemplificação, confira-se a ementa transcrita a seguir, pela qual o E. STF reconheceu a inconstitucionalidade da “Taxa de Limpeza Pública”, por vício similar ao verificado nas taxas impugnadas nesta ação direta:

“EMENTA: - CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. TAXA DE LIMPEZA PÚBLICA: MUNICÍPIO DE IPATINGA/MG. C.F., art. 145, II. CTN, art. 79, II e III. I. - As taxas de serviço devem ter como fato gerador serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição. Serviços específicos são aqueles que podem ser destacados em unidades autônomas de intervenção, de utilidade ou de necessidade públicas; e divisíveis, quando suscetíveis de utilização, separadamente, por parte de cada um dos usuários. CTN, art. 79, II e III. II. - Taxa de Limpeza Pública: Município de Ipatinga/MG: o seu fato gerador apresenta conteúdo inespecífico e indivisível. III. - Agravo não provido.” (RE-AgR 366086/MG, REL. Min. CARLOS VELLOSO, j. 10/06/2003, 2ª T., DJ 01-08-2003 PP-00137, EMENT VOL-02117-45 PP-09708).

Diversa não é a posição que vem sendo adotada por esse C. Órgão Especial do E. Tribunal de Justiça de São Paulo.

Quando do julgamento da ADI 151.685-0/2-00, rel. des. Damião Cogan, em 13.08.2008, por unanimidade foi reconhecida a inconstitucionalidade da taxa de conservação de vias e logradouros públicos instituída no Município de Tatuí, tendo o i. relator consignado em trecho de seu voto que:

“As atividades indicadas de conservação das vias e logradouros públicos devem ser realizadas através da receita pública obtida com os impostos, já que a Constituição da República não autoriza a instituição de taxa para o custeio de serviço público de utilização coletiva.”

No mesmo sentido, a ementa transcrita a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Artigos 165 a 169, da Lei 803/03, do Município de Poloni. Institui taxa de conservação de vias e logradouros públicos- Remuneração de serviço público geral e indivisível voltados a toda a coletividade. Inadmissibilidade. Precedentes. Ofensa aos artigos da CE. Ação procedente.” (ADI 151.688-0/6, rel. des. Passos de Freitas, j. 11.06.2008, v.u.).

         Portanto,  os dispositivos legais em questão violam o inciso II do art. 145 da Constituição Federal.

 

         Ante o exposto, opino pela  declaração de inconstitucionalidade do art. 6º, inciso I e §2º, da Lei n. 4.611/08, do Município de São Caetano do Sul.             

 

 

                   São Paulo, 21 de julho de 2010.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

vlcb