Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Processo n. 990.10.466291-5

Requerente: 12ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Objeto: inconstitucionalidade do § 3º art. 18 da Lei n. 4.170/2006

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade.  Inconstitucionalidade do § 3º art. 18 da Lei n. 4.170/2006, segundo o qual “na permissão outorgada a pessoa jurídica somente será permitido o cadastramento de até 04 (quatro) veículos, exceto empresas cadastradas pela Administração Municipal para prestação de transporte gratuito à população”.

Critério desarrazoado: a livre iniciativa e a livre concorrência, que integram o rol de princípios constitucionais inerentes à nossa ordem econômica, têm por escopo tanto tutelar o próprio equilíbrio do mercado, como ainda a posição do consumidor na dinâmica das relações de consumo.

Parecer pela inconstitucionalidade do § 3º art. 18 da Lei n. 4.170/2006.

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

                  

A Colenda 12ª Câmara de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo suscitou incidente de inconstitucionalidade do § 3º do art. 18 da Lei n. 4.170/2006, conforme venerando acórdão assim ementado:

TRANSPORTE ESCOLAR. Disposição de lei municipal que limita o serviço ao máximo de quatro veículos por pessoa jurídica com permissão para operar o serviço. Proposta de declaração de inconstitucionalidade, pelo Órgão Especial deste Tribunal, segundo o artigo 97 da Constituição Federal, Súmula Vinculante n° 10 do STF e artigos 480 a 482 do CPC, por violar os princípios constitucionais inerentes à ordem econômica, da livre iniciativa e da livre concorrência. Posteriormente, este órgão retomará o julgamento do recurso.

Circunscreve-se a discussão em se saber se há inconstitucionalidade no § 3º do art. 18 da Lei n. 4.170/06, segundo o qual “na permissão outorgada a pessoa jurídica somente será permitido o cadastramento de até 04 (quatro) veículos, exceto empresas cadastradas pela Administração Municipal para prestação de transporte gratuito à população”. Discute-se se a limitação ao número de quatro veículos por pessoa jurídica feriria o principio da livre iniciativa.

É o breve relato.

Como se sabe, o procedimento relativo ao incidente de inconstitucionalidade tem por escopo, em última análise, a observância da denominada “cláusula de reserva de plenário”, prevista no art. 97 da CR/88, pela qual “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.

Essa regra define a competência funcional e absoluta do Tribunal (Pleno ou Órgão Especial), bem como o quorum mínimo para a deliberação, quando for o caso de reconhecimento de incompatibilidade entre determinado ato normativo e o texto constitucional.

Em razão disso é que o Código de Processo Civil estabelece o procedimento previsto nos seus art. 480 a 482.

O procedimento relativo ao incidente de inconstitucionalidade é dividido em três fases: (a) a primeira, com a manifestação do órgão colegiado fracionário, admitindo o recurso e determinando a instauração do incidente por vislumbrar a possibilidade de declaração da inconstitucionalidade do ato normativo; (b) a segunda perante o Tribunal ou respectivo Órgão Especial, para exame efetivo da questão constitucional; (c) a terceira, com o retorno dos autos ao órgão fracionário, para conclusão do julgamento do recurso, com aplicação do direito à espécie.

Isso decorre expressamente do CPC, na medida em que: (a) o art. 481 caput prevê que se for acolhida, no órgão fracionário, a alegação de inconstitucionalidade, “será lavrado acórdão, a fim de ser submetida a questão ao tribunal pleno”; e (b) tratar o art. 482 e §§ do procedimento relativo ao julgamento do incidente no Tribunal Pleno ou Órgão Especial.

Esse sistema estabelece, nesse caso, o julgamento como um ato complexo, na medida em que o resultado final será formado pela manifestação de vontade de diferentes órgãos, todos eles com competência funcional e absoluta: (a) primeiro, a deliberação do colegiado fracionário, imprescindível à instauração do incidente; (b) depois, a deliberação do Tribunal, que se limita a examinar a quaestio iuris consubstanciada na discussão constitucional; (c) por último, o retorno dos autos com o acórdão relativo ao incidente ao colegiado fracionário, a quem caberá concluir o julgamento.

No caso ora em análise, insta transcrever as ponderadas observações do Ilustre Desembargador EDSON FERREIRA DA SILVA:

“É certo que compete ao Município a exploração do serviço de transporte de passageiros de âmbito local, diretamente ou mediante concessão, permissão ou autorização, conforme o disposto no artigo 30, V, da Constituição Federal.

No caso do transporte escolar, em que não há participação do Município na renda do serviço, pode a lei municipal estabelecer os requisitos que devem ser satisfeitos para operar esse serviço, mas a limitação de um número máximo de veículos por pessoa jurídica (quatro) fere princípios constitucionais concernentes à ordem econômica, como os da livre iniciativa e da ordem econômica.

Uma vez que o serviço é entregue à iniciativa privada, sem a participação do Município, o texto constitucional não permite que, em relação aos usuários do serviço, seja limitada as suas possibilidades de escolha quanto ao melhor serviço e ao melhor preço” (fls. 117).

O § 3º art. 18 da Lei Municipal n. 4.170/2006, do Município de Sumaré, contraria a livre iniciativa, a autonomia da vontade, a livre concorrência, a proporcionalidade e a razoabilidade, assentados no art. 1º, IV, art. 170, caput e inciso IV, e art. 5º, LIV, todos da Constituição da República.

Se, por um lado, o princípio da livre iniciativa não impede que o legislador estabeleça parâmetros normativos, voltados à preservação de outros valores igualmente prestigiados pela Constituição, no exercício de qualquer atividade, por outro lado não pode afetar a livre concorrência, mormente considerando que a principal destinação é o transporte escolar, serviço de interesse de comunidade.

Ora, a disposição de lei municipal que limita o serviço ao máximo de quatro veículos por pessoa jurídica utiliza-se de critério desarrazoado. E quanto à possibilidade de reconhecer-se a inconstitucionalidade com base na violação do aludido princípio, em sede doutrinária, Gilmar Ferreira Mendes, examinando a aplicação do princípio da proporcionalidade pelo E. STF anotou “de maneira inequívoca a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade da lei em caso de sua dispensabilidade (inexigibilidade), inadequação (falta de utilidade para o fim perseguido) ou de ausência de razoabilidade em sentido estrito (desproporção entre o objetivo perseguido e o ônus imposto ao atingido)” (cf. A proporcionalidade na jurisprudência do STF, publicado em Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e Celso Bastos Editor, 1998, p.83).

Cumpre recordar que o art.144 da Constituição do Estado determina que “Os municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

Em função do referido preceito, aplicam-se aos Estados e aos Municípios os seguintes dispositivos da Constituição Federal:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

IV – livre concorrência

(...)

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”

 Os dispositivos constitucionais acima evidenciam dois importantes princípios da ordem e da atividade econômica, consistentes na livre iniciativa e na livre concorrência.

 

Eros Roberto Grau, em sede doutrinária, anotou, recorrendo a trabalho da lavra de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, que “(...)’a livre concorrência de que fala a atual Constituição como um dos princípios da ordem econômica (art.170, IV) não é a do mercado concorrencial oitocentista de estrutura atomística e fluida, i. é, exigência de pluralidade de agentes e influência isolada e dominadora de um ou uns sobre outros. Trata-se, modernamente, de um processo comportamental competitivo que admite gradações tanto de pluralidade quanto de fluidez. É este elemento comportamental – a competitividade – que define a livre concorrência. A competitividade exige, por sua vez, descentralização de coordenação como base de formação de preços, o que supõe a livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Neste sentido, a livre concorrência é forma de tutela do consumidor, na medida em que competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço. De um ponto de vista político, a livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é uma forma de desconcentração de poder. Por fim, de um ângulo social, a competitividade deve gerar extratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada’” (A ordem econômica na Constituição de 1988, 11ª ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p.210).

É sugestiva a afirmação, portanto, de que a livre iniciativa e a livre concorrência, que integram o rol de princípios constitucionais inerentes à nossa ordem econômica, têm por escopo tanto tutelar o próprio equilíbrio do mercado, como ainda a posição do consumidor na dinâmica das relações de consumo.

 

As intervenções do Estado-administrador e do Estado-legislador, que evidentemente podem ocorrer, não devem perder de vista as balizas decorrentes das finalidades acima indicadas, amalgamadas na própria sedimentação constitucional dos princípios da ordem econômica. A tendência, no Pretório Excelso, é, também, propugnar-se pela defesa da livre iniciativa e da livre concorrência.

A título de exemplificação, cumpre recordar que o verbete nº. 646 da súmula da jurisprudência dominante do E. STF estipula que “Ofende o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área.” No mesmo sentido, em decisões que, mutatis mutandis, são aplicáveis ao caso em comento, já se decidiu, no STF, que:

"Autonomia municipal. Disciplina legal de assunto de interesse local. Lei municipal de Joinville, que proíbe a instalação de nova farmácia a menos de 500 metros de estabelecimento da mesma natureza. Extremo a que não pode levar a competência municipal para o zoneamento da cidade, por redundar em reserva de mercado, ainda que relativa, e, conseqüentemente, em afronta aos princípios da livre concorrência, da defesa do consumidor e da liberdade do exercício das atividades econômicas, que informam o modelo de ordem econômica consagrado pela Carta da República (art. 170 e parágrafo, da CF)." (RE 203.909, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 14-10-97, DJ de 6-2-98).

(...).

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ARTIGO 1º DA LEI Nº 6.545/91, DO MUNICÍPIO DE CAMPINAS. LIMITAÇÃO GEOGRÁFICA À INSTALAÇÃO DE DROGARIAS. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A limitação geográfica à instalação de drogarias cerceia o exercício da livre concorrência, que é uma manifestação do princípio constitucional da liberdade de iniciativa econômica privada (CF/88, artigo 170, inciso IV e § único c/c o artigo 173, § 4º). 2. O desenvolvimento do poder econômico privado, fundado especialmente na concentração de empresas, é fator de limitação à própria iniciativa privada à medida que impede ou dificulta a expansão das pequenas iniciativas econômicas. 3. Inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei nº. 6.545/91, do Município de Campinas, declarada pelo Plenário desta Corte. Recurso extraordinário conhecido, porém não provido.”( RE 199517/SP, rel. Min.  CARLOS VELLOSO, rel. p. ac.  Min. MAURÍCIO CORRÊA, j. 04/06/1998, Pleno, DJ 13-11-1998, PP-00015, EMENT VOL-01931-03, PP-00608).

 A hipótese examinada na presente ação é análoga às situações contidas nos precedentes do Pretório Excelso aqui coligidos.

A incompatibilidade do § 3º art. 18 da Lei n. 4.170/2006 com nosso ordenamento constitucional decorre, ainda, do desrespeito à razoabilidade, princípio adotado no art. 111 da Carta Paulista, e aplicável aos Municípios por força do art. 144 da referida Carta.

 Como anota Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o princípio da razoabilidade “visa a afastar o arbítrio que decorrerá da desadequação entre meios e fins”, tendo importância tanto quando da criação da norma como quando de sua aplicação. Ademais, prossegue o autor, “o princípio da proporcionalidade, uma vez admitido como um princípio substantivo autônomo, como é considerado na doutrina alemã do Direito Público, e não apenas com o sentido estrito contido no conceito de razoabilidade, prescreve, especificamente, o justo equilíbrio entre os sacrifícios e os benefícios resultantes da ação do Estado” (Curso de direito administrativo, 14ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p.101). Também nesse sentido Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito administrativo, 19ªed., São Paulo, Atlas, 2006, p.95).

Daí a violação ao art.111 da Constituição do Estado de São Paulo.

O § 3º art. 18 da Lei n. 4.170/2006 fere também os preceitos constitucionais que estipulam a defesa do consumidor como princípio a ser seguido na ordem econômica e na atividade financeira (art.170 V da CF), e como garantia fundamental (art.5º XXXII da CF), cuja aplicação aos Municípios decorre do art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo. A livre iniciativa e a livre concorrência, como princípios da ordem econômica, têm por escopo não apenas a proteção da autonomia e equilibro do mercado, mas também a defesa do consumidor.

Respeitando-se a liberdade de exercício de atividade comercial lícita, assegura-se a viabilidade de apresentação de ofertas de produtos e serviços que ostentem maior qualidade e melhores condições de preço ao consumidor final. A vedação acaba por retirar do consumidor a possibilidade de escolha. Por essa razão, entre outras, que a própria Constituição Federal, no art. 173 § 4º prevê que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”, preceito este concretizado na esfera infraconstitucional através da Lei nº. 8.884/94, que trata da prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica. Limitar o espectro de conhecimento e escolha do consumidor quanto a atividades, bens e serviços lícitos, significa tolhê-lo, ainda que indiretamente, de um aspecto fundamental da proteção que nossa sistemática constitucional lhe confere.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente, e por seu acolhimento, declarando-se a  inconstitucionalidade do§ 3º art. 18 da Lei n. 4.170/2006.

 

 

São Paulo,  11 de novembro de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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