Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo n.º 990.10.498750-4

Suscitante: 13.ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo

 

 

EMENTA: Emenda constitucional (19/98) que suprimiu direito social originalmente reconhecido em favor de servidores públicos (CF, art. 7.º, XXIII) – Cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4.º) – Irrelevância, porém, desse assunto para a resolução do caso porque o art. 97, e seu § 1.º, da Lei Complementar n.º 01/02, do Município de Mauá, reconheceu esse mesmo direito em favor dos servidores públicos municipais – Entretanto, o decreto que regulamentou a matéria não previu a atividade de merendeira como insalubre – O direito constitucionalmente assegurado não é auto-aplicável, ante a ressalva ‘na forma da lei’ – Norma constitucional de eficácia limitada – A eventual incompletude da norma não é suficiente para torná-la inconstitucional – A omissão total ou parcial de uma lei não é passível de aferição no controle incidental (CF, art. 97) – O Mandado de Injunção e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão são os instrumentos jurídico-processuais adequados nos casos de omissão legislativa – Nas ações em geral, o Poder Judiciário não pode agir como legislador positivo, isto é, à vista de uma omissão normativa, ele não poderá substituir-se ao legislador e proceder à integração de norma incompleta, sob pena de ofensa ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes – Rejeição do Incidente de Inconstitucionalidade.

 

 

Egrégio Órgão Especial

Eméritos Desembargadores:

 

         Cuida-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela 13.ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, de conformidade com o Voto do Relator, nos autos da Apelação/Reexame Necessário n.º 990.10.297804-4, da Comarca de Mauá, em ação ordinária na qual servidora pública municipal postula a concessão de adicional de insalubridade, benefício este que, porém, foi-lhe negado por não figurar a atividade de merendeira no rol daquelas que fariam jus à aludida vantagem funcional, a qual vem disciplinada no art. 97, e seu § 1.º, da Lei Complementar n.º 01/02, do Município de Mauá, e no Anexo LXXXI do Decreto n.º 6.465/2003, que a regulamentou.

         O parecer é pela rejeição do incidente.

         Com efeito, o art. 7.º, inciso XXIII, da Constituição Federal, assegura aos trabalhadores urbanos e rurais o direito ao adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei, e o art. 39, § 2.º, da referida Carta Política, na sua redação primitiva, tratou de estender esse direito social aos servidores públicos, mas, com a entrada em vigor da Emenda n.º 19/1998, tal previsão foi afastada.

         Se o constituinte derivado poderia ou não suprimir esse direito social, à luz do disposto no art. 60, § 4.º, da Constituição Federal (‘clausulas pétreas’), é questão cujo enfrentamento por si só não é suficiente para por fim à controvérsia jurídica instaurada nesta ação ordinária, à medida que a norma inscrita no art. 7.º, inciso XXIII, da Carta Política em vigor, não é de eficácia plena, mas sim limitada, pois que o exercício do direito nela previsto não prescinde de legislação integradora, ante a ressalva ‘na forma da lei’.

         De qualquer modo, essa discussão está superada, em definitivo, porque a lei municipal em comento tratou de reproduzir o mesmo direito social, no seu art. 97, que, por sua vez, outorgou ao Executivo a regulamentação da matéria (§ 1.º), qual seja a definição das atividades cujo exercício autorizaria o pagamento do adicional de remuneração.

         Sem querer adentrar no mérito da questão subjacente, o Mm. Juiz de Direito negou o pagamento do adicional de remuneração porque a atividade laboral desenvolvida pela Autora desta ação não figuraria no decreto regulamentador da matéria.

         Ocorre, porém, que, se fosse declarado inconstitucional o § 1.º do art. 97 do Estatuto municipal ou mesmo o decreto que o regulamentou – na primeira hipótese por suposta violação da reserva legal e na última por reconhecimento de sua ilegalidade –, a ausência de norma definidora das atividades insalubres criaria uma lacuna que tornaria impossível o reconhecimento do direito pleiteado na inicial, ao pagamento do adicional de insalubridade, lacuna esta que não poderia ser suprida nem mesmo com a interpretação direta do art. 7.º, inciso XXIII, da Carta Política Federal, cuja eficácia é limitada.

         Deveras, a vigente Constituição incumbiu o legislador da tarefa de definir as atividades penosas, insalubres ou perigosas, para fins de concessão do adicional de remuneração, e, nessa linha de raciocínio, a ausência de previsão – no decreto regulamentador da matéria – da atividade desenvolvida pela Autora da ação (merendeira), impeditiva de percepção da aludida vantagem funcional, traduz-se em opção que, sob uma perspectiva eminentemente material, é insindicável pelo Poder Judiciário.

         Ou seja, o reconhecimento da inconstitucionalidade do § 1.º do art. 97 da Lei Complementar n.º 01/02, do Município de Mauá, e consequentemente do decreto que o regulamentou, sob o aspecto formal ou material, resultaria, em termos práticos, apenas num vácuo legislativo, sem, contudo, possibilitar a reforma da respeitável sentença ora recorrida, à medida que o direito social de que trata o art. 7.º, inciso XXIII, da Constituição da República, vem consubstanciado numa norma que não é auto-aplicável porque simplesmente omissa na definição das atividades penosas, insalubres ou perigosas.

         Demais, no caso em análise, com a edição do decreto, em cumprimento à determinação legal e constitucional, descabe cogitar a omissão intencional dos Poderes Políticos locais na regulamentação da matéria, de molde a impossibilitar o exercício de direito que vem expressamente consagrado na Constituição, e, outrossim, o não enquadramento da atividade de merendeira no rol das atividades insalubres não induz, necessariamente, ao reconhecimento de uma inconstitucionalidade material, mas pode revelar quando muito a incompletude da norma, sem força suficiente, porém, para invalidá-la. 

         Quanto ao decreto em si, o seu distanciamento das balizas fixadas por lei, que por sua vez deriva da própria Constituição, não enseja um problema de inconstitucionalidade, mas sim crise de legalidade, insuscetível de apuração no controle incidental.

         Nessa ordem de idéias, cumpre obtemperar que o Judiciário não pode atuar como legislador positivo, ou seja, é-lhe vedado substituir o legislador na definição das atividades insalubres, sob pena de vulneração do postulado básico da independência e harmonia entre os Poderes, o que ocorrerá se for declarada a inconstitucionalidade da legislação integradora e o reconhecimento, na ação principal, do direito postulado na inicial. 

         É bem de ver, aliás, que o mandado de injunção é o instrumento jurídico-processual adequado em caso de omissão do legislador (CF, art. 5.º, LXXI), isto é, ‘sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania’.

         Nem é possível cogitar-se, por outro lado, a aplicação subsidiária da CLT (art. 189 e segs.), ante a lacuna existente na norma municipal regedora do assunto e à vista do que restou decidido no julgamento do RE n.º 169.173-5/SP (Rel. Min. Moreira Alves), pelo Supremo Tribunal Federal, que, em caso análogo, no qual servidores estatutários da USP pleitearam o pagamento de adicional de periculosidade, em simetria com vantagem paga a servidores submetidos ao regime trabalhista, assentou o seguinte:

 

                   “EMENTA: Servidor público. Adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei. Art. 7.º, XXIII, da Constituição Federal.

                   - o art. 39, § 2.º, da Constituição Federal apenas estendeu aos servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios alguns dos direitos sociais por meio de remissão, para não ser necessária a repetição de seus enunciados, mas com isso não quis significar que, quando algum deles dependesse de legislação infraconstitucional para ter eficácia, essa seria, no âmbito federal, estadual ou municipal, a trabalhista. Com efeito, por força da Carta Magna Federal, esses direitos sociais integrarão necessariamente o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, mas, quando dependem de lei que os regulamente para dar eficácia plena aos dispositivos constitucionais de que eles decorrem, essa legislação infraconstitucional terá de ser, conforme o âmbito a que pertence o servidor público, da competência dos mencionados entes públicos que constituem a federação.

                   Recurso extraordinário conhecido, mas não provido.”

 

         Em suma, a exclusão de direito social originalmente reconhecido em favor dos servidores públicos (CF, art. 7.º, XXIII, c/c o art. 39, § 9.º), pela Emenda Constitucional n.º 19/98, é indiferente à resolução da controvérsia jurídica instaurada nesta ação. Isso porque, nada obstante a mudança operada, a lei municipal reconheceu o mesmo direito, mas a ausência de previsão – no ato normativo local – da atividade de merendeira no rol das atividades que autorizam o pagamento do adicional de insalubridade não revela uma situação de inconstitucionalidade em si, mas sim a incompletude da norma em exame, o que é insuscetível de apuração no controle incidental.

         Assim, como não há inconstitucionalidade formal ou material a ser declarada, à luz da argumentação acima exposta, opina o Ministério Público pela rejeição do incidente.

 

                   São Paulo, 12 de novembro de 2010.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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