Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.527183-9

Suscitante: 15ª. Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Objeto: art. 19 da Lei nº 7.614/97, com as alterações da Lei nº 8.581/2003, do Município de Santo André

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade, suscitado pela 15ª Câmara de Direito Público, do art. 19 da Lei nº 7.614/97, com as alterações da Lei nº 8.581/2003, do Município de Santo André, que estabelece o preço do serviço como base de cálculo do Imposto Sobre Serviço (ISS) incidente sobre os serviços de registros públicos, cartorários e notariais. Suposta ofensa aos princípios constitucionais da isonomia e da capacidade contributiva, ao argumento de que, como profissionais liberais que são, os registradores e tabeliães já recolhem o imposto de renda, fazendo jus, portanto, ao cálculo do tributo segundo a regra do § 1º do art. 9º do Decreto-lei nº 406/68, ou seja, por “valor fixo”.  Considerações sobre a realidade fática dos cartórios que – autorizados pelos arts. 20 e 21 da Lei nº 8.935/94 – funcionam como verdadeiras empresas. Possibilidade de distribuição do serviço a terceiros, ainda que os notários e oficiais de registro não se desonerem da responsabilidade pessoal pelo funcionamento da serventia. Precedentes do STF e STJ sobre o tema. Constitucionalidade da lei local.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 15ª Câmara de Direito Público, nos autos da Apelação nº 994.09.267802-0, da Comarca de Santo André, em que figuram como partes (...) e outros (apelantes) e o SECRETÁRIO DE FINANÇAS DO MUNICÍPIO DE SANTO ANDRÉ (apelado).

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), pois se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, do art. 19 da Lei nº 7.614/97, com as alterações da Lei nº 8.581/2003, do Município de Santo André, que estabelece o preço do serviço como base de cálculo do Imposto Sobre Serviço (ISS), inclusive para os serviços de registros públicos, cartorários e notariais.

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal especificamente sobre a questão suscitada (art. 481, parágrafo único, do CPC).

Este é resumo do que consta dos autos.

O tema conduzido ao C. Órgão Especial diz respeito à forma de calcular o ISS sobre os serviços de registros públicos, cartorários e notariais.

Para o Órgão Fracionário, dado que os serviços dessa natureza são atividades estatais delegadas às pessoas naturais, que as exercem em caráter privado (art. 236, CF)[1], deveriam ser tributados segundo a regra do § 1º do art. 9º do Decreto-lei nº 406/68 (norma especial em relação à Lei Complementar nº 116/03)[2], ou seja, por “valor fixo”.

Por isso, a fórmula adotada na lei municipal, que toma o preço do serviço como base de cálculo (art. 19 da Lei nº 7.614/97)[3], seria ofensiva aos princípios constitucionais da “igualdade, isonomia e capacidade contributiva” (fls. 309), pois, como profissionais liberais e autônomos que são, os registradores e tabeliães já recolhem o imposto de renda. Teriam direito, portanto, ao tratamento privilegiado de quem realiza o trabalho pessoal.

De partida, tem-se como justa a atenuação do ISS que recai sobre o trabalho pessoal, tal como previsto no Decreto-lei nº 406/68[4]. É que a remuneração direta do profissional é a renda e, esta, como se sabe, sofre a imediata incidência do imposto de renda.

Por isso, o tratamento fiscal diferenciado entre empresa e trabalho pessoal se justifica em termos constitucionais, pois aquela, embora também se sujeite ao imposto de renda, reúne capital, trabalho e organização. É, como resume Sacha Calmon Navarro Coêlho, uma “realidade bem diversa” (Curso de Direito Tributário Brasileiro, 9ª. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 593).

O benefício do art. 9º, § 1º, do Decreto-lei nº 406/68 concretiza, nesse sentir, o princípio da capacidade contributiva, segundo o qual “os impostos terão caráter pessoal” (art. 145, § 1º, da Constituição Federal), e também o princípio da isonomia, ao prever regime tributário diferenciado para o trabalho pessoal em relação ao de empresa (art. 150, II, da Constituição)[5].

Os recorrentes reivindicam o privilégio tributário, valendo-se, especialmente, dos seguintes argumentos: a) o tabelionato não detém personalidade jurídica; b) o titular do cartório possui responsabilidade pessoal pelo serviço prestado; e c) a nomeação decorre de concurso público.

Essas circunstâncias, embora verdadeiras, não se constituem em óbice à distribuição do serviço entre terceiros, funcionários dos registradores e tabeliães.

E, de fato, muitos cartórios funcionam como verdadeiras empresas, pois, para cumprir seus objetivos – dentre os quais o de lucro[6] – seus titulares recrutam escreventes e auxiliares como empregados celetistas, inclusive para escolher, entre eles, os seus substitutos.

Os notários e oficiais de registro, aliás, gerenciam administrativa e financeiramente o cartório, inclusive no que diz respeito às despesas de custeio, investimento e pessoal, o que descaracteriza, em muitos casos, o trabalho pessoal, isto é, aquele que não pode ser cometido a terceiros.

Isso tudo é feito sob o comando dos arts. 20 e 21 da Lei nº 8.935/94 (“Lei dos Cartórios”), in verbis:

Art. 20. Os notários e os oficiais de registro poderão, para o desempenho de suas funções, contratar escreventes, dentre eles escolhendo os substitutos, e auxiliares como empregados, com remuneração livremente ajustada e sob o regime da legislação do trabalho.

(...)

Art. 21. O gerenciamento administrativo e financeiro dos serviços notariais e de registro é da responsabilidade exclusiva do respectivo titular, inclusive no que diz respeito às despesas de custeio, investimento e pessoal, cabendo-lhe estabelecer normas, condições e obrigações relativas à atribuição de funções e de remuneração de seus prepostos de modo a obter a melhor qualidade na prestação dos serviços.   

Bem por isso, não se reconhece a inconstitucionalidade da lei municipal que adota, para estabelecer o valor do imposto devido, a regra geral, que toma como base de cálculo o preço do serviço. É solução consentânea com a da Lei Complementar nº 116/03, cujos itens 21 e 21.1 da Lista Anexa conjugados com seu art. 7º, permitem a tributação dos serviços de registros públicos, cartorários e notariais da forma como quis o legislador de Santo André.

Consigne-se, em abono ao que foi dito, que, ao afirmar a constitucionalidade da Lei Complementar nº 116/03, o Supremo Tribunal Federal, pelo voto vista do Min. MARCO AURÉLIO, deixou registrado o seguinte:

No tocante à base de incidência, descabe a analogia – profissionais liberais, Decreto nº 406/68 -, caso ainda em vigor o preceito respectivo, quando existente lei dispondo especificamente sobre a matéria. O art. 7º da Lei Complementar nº 116/03 estabelece a incidência do tributo sobre o preço do serviço

(ADI 3089, Rel. Min. CARLOS BRITTO, Rel. p Acórdão. Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 13022008, DJe-142).

Recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça têm, igualmente, rechaçado pretensões idênticas a dos recorrentes. Firma-se nessa Corte jurisprudência no sentido de ser inaplicável o regime de tributação fixa do ISS sobre os serviços de registros públicos, cartorários e notariais.

Confiram-se:

“TRIBUTÁRIO.  ISSQN. SERVIÇOS NOTARIAIS. CARTÓRIO. ALÍQUOTA FIXA. IMPOSSIBILIDADE.

1. Hipótese em que se discute a base de cálculo do ISS incidente sobre serviços de registros públicos, cartorários e notariais. O contribuinte defende tributação fixa, nos termos do art. 9º, § 1º, do DL n. 4061968, e não alíquota sobre o preço do serviço (art. 7º, caput, da LC n. 1162003), ou seja, sobre os emolumentos cobrados dos usuários.

2. O acórdão do Supremo Tribunal Federal, focado na possibilidade de os emolumentos (que são taxas) servirem de base de cálculo para o ISS, afastou, por imperativo lógico, a possibilidade datributação fixa em que não há cálculo e, portanto, base de cálculo.

Agravo regimental improvido.”

(AgRg no Recurso Especial nº 1.206.873-RS, rel. Min. Humberto Martins, j. 21/10/2010).

TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ISS. ATIVIDADE NOTARIAL E DE REGISTRO PÚBLICO. REGIME DE TRIBUTAÇÃO FIXA. ARTIGO 9º, § 1º, DO DECRETO-LEI N. 40668. AUSÊNCIA DE PESSOALIDADE NA ATIVIDADE. INAPLICABILIDADE.

1. A controvérsia do recurso especial cinge-se ao enquadramento dos cartórios no regime de tributação fixa, conforme disposição do artigo 9º, § 1º, do Decreto-Lei 40668, cuja vigência é reconhecida pela jurisprudência deste Tribunal Superior. Precedentes: REsp 1.016.688RS, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJe de 5.6.2008; REsp 897.471ES, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 30.3.2007.

2. Os serviços notariais e de registro público, de acordo com o artigo 236 da Constituição Federal, são exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público.

3. Ainda que essa delegação seja feita em caráter pessoal, intransferível e haja responsabilidade pessoal dos titulares de serviços notariais e de registro, tais fatores, por si só, não permitem concluir as atividades cartoriais sejam prestadas pessoalmente pelo titular do cartório.

4. O artigo 20 da Lei n. 8.93594 autoriza os notários e os oficiais de registro a contratarem, para o desempenho de suas funções, escreventes, dentre eles escolhendo os substitutos, e auxiliares como empregados. Essa faculdade legal revela que a consecução dos serviços cartoriais não importa em necessária intervenção pessoal do tabelião, visto que possibilita empreender capital e pessoas para a realização da atividade, não se enquadrando, por conseguinte, em prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, nos moldes do § 1º do artigo 9º do Decreto-Lei n. 40668.

5. Recurso especial não provido."

(REsp 1.185.119RS, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 20.8.2010.)

“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. ISS. SERVIÇOS DE REGISTROS PÚBLICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS. BASE DE CÁLCULO. ART. 9º, § 1º, DO DL 4061968. TRIBUTAÇÃO FIXA. MATÉRIA APRECIADA PELO STF. ADIN 3.089DF.

1. Hipótese em que se discute a base de cálculo do ISS incidente sobre serviços de registros públicos, cartorários e notariais. A contribuinte defende tributação fixa, nos termos do art. 9º, § 1º, do DL 4061968, e não alíquota sobre o preço do serviço (art. 7º, caput, da LC 1162003), ou seja, sobre os emolumentos cobrados dos usuários.

2. O Supremo Tribunal Federal reconheceu a incidência do ISS, in casu, ao julgar a Adin 3.089DF, proposta pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil – Anoreg. Na oportunidade, ratificou a competência municipal e afastou a alegada imunidade pretendida pelos tabeliães e cartorários (i) ao analisar a natureza do serviço prestado e, o que é relevante para a presente demanda, (ii) ao reconhecer a possibilidade de o ISS incidir sobre os emolumentos cobrados (base de cálculo), mesmo em se tratando de taxas.

3. O acórdão do Supremo Tribunal Federal, focado na possibilidade de os emolumentos (que são taxas) servirem de base de cálculo para o ISS, afastou, por imperativo lógico, a possibilidade da tributação fixa, em que não há cálculo e, portanto, base de cálculo.

4. Nesse sentido, houve manifestação expressa contrária à tributação fixa no julgamento da Adin, pois 'descabe a analogia – profissionais liberais, Decreto nº 40668 –, caso ainda em vigor o preceito respectivo, quando existente lei dispondo especificamente sobre a matéria. O art. 7º da Lei Complementar nº 11603 estabelece a incidência do tributo sobre o preço do serviço'.

5. Ademais, o STF reconheceu incidir o ISS à luz da capacidade contributiva dos tabeliães e notários.

6. A tributação fixa do art. 9º, § 1º, do DL 4061968 é o exemplo clássico de exação ao arrepio da capacidade contributiva, porquanto trata igualmente os desiguais. A capacidade contributiva somente é observada, no caso do ISS, na cobrança por alíquota sobre os preços, conforme o art. 9º, caput, do DL 4061968, atual art. 7º, caput, da LC 1162003.

7. Finalmente, o STF constatou que a atividade é prestada com intuito lucrativo, incompatível com a noção de simples 'remuneração do próprio trabalho', prevista no art. 9º, § 1º, da LC 1162003.

8. A Associação dos Notários e Registradores do Brasil – Anoreg, quando propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade, pretendia afastar o ISS calculado sobre a renda dos cartórios (preço dos serviços, emolumentos cobrados do usuário).

9. A tentativa de reabrir o debate no Superior Tribunal de Justiça, em Recurso Especial, reflete a inconfessável pretensão de reverter, na seara infraconstitucional, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade, o que é, evidentemente, impossível.

10. De fato, a interpretação da legislação federal pelo Superior Tribunal de Justiça – no caso a aplicação do art. 9º, § 1º, do DL 4061968 – deve se dar nos limites da decisão com efeitos erga omnes proferida pelo STF na Adin 3.089DF.

11. Nesse sentido, inviável o benefício da tributação fixa em relação ao ISS sobre os serviços de registros públicos, cartorários e notariais.

12. Recurso Especial não provido."

(REsp 1.187.464RS, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 7.7.2010.)

Pelo exposto, opino pela constitucionalidade do art. 19 da Lei nº 7.614/97, com as alterações da Lei nº 8.581/2003, do Município de Santo André.

 

São Paulo, 26 de novembro de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

jesp



[1] Art. 236 - Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

[2]  Art 9º - A base de cálculo do impôsto é o preço do serviço.

§ 1º Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o imposto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho.

[3] Artigo 19 - A base de cálculo do imposto é o preço do serviço.

[4] Cuida-se, segundo o Supremo Tribunal Federal, de norma recepcionada pela Constituição de 88, nos termos da Súmula nº 663: ‘Os §§ 1º e 3º do art. 9º do DL 406/68 foram recebidos pela Constituição’.

[5] Cf.: Marcelo Magalhães Peixoto e Marcelo de Lima Castro Diniz, Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza in: Ives Gandra da Silva Martins (coord.), Curso de Direito Tributário, 12ª. ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 943.

[6] O STF reconheceu expressamente a finalidade lucrativa da atividade cartorária (ADI 3089, Rel. Min. CARLOS BRITTO, Rel. p Acórdão. Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 13022008, DJe-142).