Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.534722-3

Suscitante: 18ª. Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Objeto: art. 134 do Código de Trânsito Brasileiro

 

Ementa: Incidente de inconstitucionalidade suscitado pela 18ª. Câmara de Direito Público, tendo por objeto o art. 134 do Código de Trânsito Brasileiro, que estende ao alienante do veículo a responsabilidade pelo pagamento de multas de trânsito até que proceda à comunicação da venda ao órgão de trânsito. Suposta ofensa ao “princípio da intranscendência” (art. 5º, XLV, da Constituição Federal). Considerações doutrinárias sobre o princípio. Hipótese, no caso, de responsabilidade subsidiária, fundada em lei, destinada a induzir determinado comportamento no administrado. Previsibilidade da sanção. Princípio da segurança jurídica atendido. Precedentes do STJ, que considera a regra legítima e a interpreta em consonância com o art. 257 do CTB. Parecer pela rejeição da arguição.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 18ª Câmara de Direito Público, nos autos de Agravo de Instrumento nº 990.10.045272-0, em que figuram como partes (...) (agravante) e PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO BERNARDO DO CAMPO (agravada).

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade, do art. 134 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97), in verbis:

Art. 134 – No caso de transferência de propriedade, o proprietário antigo deverá encaminhar ao órgão executivo de trânsito do Estado dentro de um prazo de trinta dias, cópia autenticada do comprovante de transferência de propriedade, devidamente assinado e datado, sob pena de ter que se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas e suas reincidências até a data da comunicação.

Para o Órgão fracionário, a regra que estende ao alienante do veículo a responsabilidade solidária pelo pagamento de multas de trânsito, até que haja a comunicação da venda, viola o denominado “princípio da intranscendência”, previsto no art. 5º, XLV, da Constituição Federal, que, na dicção do STF, “impede que sanções e restrições de ordem jurídica superem a dimensão estritamente pessoal do infrator” (AC 1.033 – AgR-QO, rel. Min. Celso de Mello, j. 25.5.2006).

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal sobre a questão suscitada (art. 481, parágrafo único, do CPC).

Este é resumo do que consta dos autos.

O art. 5º, XLV, da Constituição Federal estabelece que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”.

O dispositivo, segundo a melhor doutrina, refere-se à sanção penal (cf. José Afonso da Silva, Comentário contextual à Constituição, 4ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 142) e se liga à ideia de que a pena “tem finalidade retributiva, pois, se ela é uma reação ao mal do crime, claro está que só pode recair sobre quem praticou esse mal” (idem, p. 143).

Na mesma toada, explica Luiz Guilherme Arcaro Conci:

[O] padrão civilizatório alcançado exige que a pena seja direcionada àquele que é o responsável pela prática do ilícito, não podendo o Estado perseguir, para seu cumprimento, os familiares ou outros, exceto quando a pena alcança bens do próprio apenado, caso em que o patrimônio de seus sucessores, adquirido por herança, é atingido (Paulo Bonavides e Jorge Miranda (coord.), Comentários à Constituição Federal de 1988, Rio de Janeiro, Forense, 2009, p. 202).

Reconhece-se, porém, que o STF tem afirmado que o princípio da intranscendência se aplica, igualmente, na esfera administrativa. E, com base nisso, considerou ilegítima a inscrição do Estado de São Paulo no CADIN (Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal), fundada em dívida da CPTM, que é sociedade de economia mista vinculada à Secretaria de Estado dos Transportes Metropolitanos (AC 266-QO/SP).

No acórdão, ficou consignado que:

“as consequências gravosas resultantes do ato de incrição no CADIN (Lei nº 10.522/2002), por configurarem limitação de direitos, não podem ultrapassar a esfera individual das empresas governamentais ou das entidades paraestatais alegadamente devedoras, que nesse cadastro federal tenham sido incluídas, sob pena de violação ao princípio da intranscendência (ou da personalidade) das sanções e das medidas restritivas de ordem jurídica.

Disso resulta, considerando o princípio em questão, a consequente impossibilidade de o Estado-membro sofrer limitações em sua esfera jurídica, motivadas pela só circunstância de, a ele, enquanto ente político maior, acharem-se administrativamente vinculadas às entidades paraestatais, as empresas governamentais ou as sociedades sujeitas ao seu poder de controle (Questão de Ordem em Ação Cautelar 266-4, São Paulo, rel. Min. Celso de Mello, j. 27.05.2004).

Nem por isso, há de se reconhecer a inconstitucionalidade do art. 134 do CTB, no que concerne à possibilidade de se imputar ao antigo proprietário de veículo automotor as infrações cometidas após a alienação do veículo não oficializada perante o órgão competente.

Ao contrário do entendimento esposado no v. Acórdão, o dispositivo em tela não estende indistintamente a pena a terceiro, pois esta, a teor do art. 257 do CTB, recairá, a princípio, sobre o condutor do veículo.

Nesse sentido, confira-se ilustrativo exceto de Acórdão do STJ relatado pela Min. ELIANA CALMON:

A questão posta para análise diz respeito à possibilidade de imputar-se ao antigo proprietário de veículo automotor as infrações cometidas após ter sido feita a alienação do veículo, embora não oficializada a venda, por falta do registro perante o órgão competente ou, ao menos, a informação, ignorando o Detran, inteiramente, a mudança de propriedade.

Assim agindo, deixou o recorrido de atender ao disposto no art. 134 do Código de Trânsito Brasileiro, não sendo demais transcrevê-lo:

Art. 134. No caso de transferência de propriedade, o proprietário antigo deverá encaminhar ao órgão executivo de trânsito do Estado, dentro de um prazo de trinta dias, cópia autenticada do comprovante de transferência de propriedade, devidamente assinado e datado, sob pena de ter que se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas e suas reincidências até a data da comunicação.

O dispositivo transcrito tem ensejado interpretações as mais diversas, refletindo-se as discussões em indagações quanto à natureza jurídica da obrigação imputada. Há, inclusive, os mais extremados, para os quais é o artigo em análise inconstitucional, em razão de ofender o princípio da pessoalidade da pena. Afirmam, ainda, que o dispositivo também vulnera os princípios gerais que regem a responsabilidade civil, como a imputação da responsabilidade sem nexo de causalidade entre a conduta do antigo proprietário e a infração praticada pelo novo adquirente.

Entendo que a questão deve ser examinada em outra direção, porque pode a lei, e só ela, criar a responsabilidade solidária para alcançar pessoas que nada têm a ver, sob o prisma jurídico, com o causador do dano, como o fez em relação às infrações de trânsito, prevendo o art. 257, caput, do CTB:

Art. 257. As penalidades serão impostas ao condutor, ao proprietário do veículo, ao embarcador e ao transportador, salvo os casos de descumprimento de obrigações e deveres impostos a pessoas físicas ou jurídicas expressamente mencionados neste Código.

O proprietário somente é responsável pela infração cometida pelo condutor, embarcador e transportador, se o real infrator não for identificado. É o que dispõe o § 7º:

§ 7º Não sendo imediata a identificação do infrator, o proprietário do veículo terá quinze dias de prazo, após a notificação da autuação, para apresentá-lo, na forma em que dispuser o CONTRAN, ao fim do qual, não o fazendo, será considerado responsável pela infração.

Verifica-se, pelo artigo transcrito, que o proprietário não responde solidariamente, em caráter absoluto, pelas infrações praticadas pelo adquirente, tendo sido mitigada a responsabilidade solidária. Somente quando não for identificado o infrator, é que o proprietário é responsabilizado pelas infrações cometidas após a alienação do veículo, mesmo sem a sua participação. O que o faz responsável é, em verdade, a não-comunicação da transferência ao Detran, assumindo a culpa, pela desídia do seu proceder.

Assim, o art. 134 do CTB deve ser interpretado como norma de imposição de solidariedade limitada, ou seja, só há responsabilidade do antigo proprietário, na hipótese de não ser identificado o novo adquirente, o real infrator.

Essa interpretação vem em benefício do antigo proprietário, de tal forma que, uma vez comunicado o órgão de trânsito a transferência da propriedade, fica a Administração compelida a fazer as anotações nos registros do veículo, para efeito de intimar o novo proprietário, mesmo quando ele deixou de providenciar a transferência de registro,  na forma do art. 123, § 1º, do mesmo Código.

Sem essa regra, ou seja, sem que a Administração fosse obrigada a realizar a anotação, estaria o antigo proprietário sem mecanismo para se livrar da responsabilidade em relação ao bem que não mais lhe pertence.

Para a Administração, enquanto não houver a comunicação prevista no art. 134 do CTB ou a expedição do novo certificado de registro, a titularidade da propriedade será de quem consta no registro antigo. Desse modo, qualquer infração deverá ser comunicada ao proprietário que consta na sua base de dados.

Verifica-se, por tudo que foi dito, que a  comunicação não é ato constitutivo da transferência da propriedade, serve apenas para declarar que houve  alienação.

Portanto, a expressão “sob pena de ter que se responsabilizar” (art. 134) só existe “até a data da comunicação” (REsp 656896/RS, rel. Min. ELIANA CALMON, j. 6.12.2005).

A norma questionada consagra, na verdade, a regra da responsabilidade subsidiária, que sempre terá a lei por fundamento.

Consubstancia-se, assim, na consequência jurídica da ausência de comunicação ao órgão de trânsito acerca da transferência da propriedade, cumprindo, destarte, a finalidade de induzir o administrado a determinado comportamento.

Cuida-se, portanto, de norma legítima, porque atende à garantia da segurança, assentada na previsibilidade de que a omissão pode causar a consequência jurídica prevista na lei, que é a solidariedade para o pagamento das multas que recaem sobre o veículo, independentemente de se saber quem cometeu a infração.

Não há, nesse campo, que se indagar sobre o dolo ou a culpa do proprietário do veículo, que, aliás, é irrelevante para a generalidade dos ilícitos administrativos (cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 27ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2010, p. 855). Basta, para tanto, a mera voluntariedade, notando-se que o dispositivo não exige a presença das referidas figuras.

Consigne-se, finalmente, que o STJ, interpretando o art. 134 do CTB, tem avalizado a responsabilização do proprietário do veículo, que não comunica a sua alienação, por infrações cometidas infrações cometidas, mesmo sem a sua participação.

Confiram-se:

MULTA DE TRÂNSITO. TRANSFERÊNCIA DA PROPRIEDADE DO VEÍCULO. INOBSERVÂNCIA DO ÔNUS DE INFORMAR AO ÓRGÃO DE TRÂNSITO. DESINCUMBÊNCIA DAS INFRAÇÕES. IMPOSSIBILIDADE.

I - O artigo 134 do Código de Trânsito Brasileiro dispõe que, no caso de transferência de propriedade de veículo, deve o antigo proprietário encaminhar ao órgão de trânsito, dentro do prazo legal, o comprovante de transferência de propriedade, sob pena de se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas.

II - Na hipótese dos autos, em que não houve a comunicação ao órgão executivo de trânsito acerca da transferência de propriedade do veículo alienado, deverá o antigo proprietário responder solidariamente pelas penalidades impostas. Precedentes: REsp nº 722927RS, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ de 17082006 e REsp nº 762.974RS, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, DJ de 19122005.

III - Recurso especial provido (REsp 970.961RS, Rel. Ministro  Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 1922008, DJe 2632008).

ADMINISTRATIVO. ALIENAÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. MULTAS, RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO ALIENANTE. INTERPRETAÇÃO DO ART. 134 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO.

1. "Alienado veículo automotor sem que se faça o registro, ou ao menos a comunicação da venda, estabelece-se, entre o novo e o antigo proprietário, vínculo de solidariedade pelas infrações cometidas, só afastadas quando é o Detran comunicado da alienação, com a indicação do nome e endereço do novo adquirente. Não havendo dúvidas, in casu, de que as infrações não foram cometidas no período em que tinha o recorrido a propriedade do veículo, não deve ele sofrer qualquer tipo de sanção" (REsp 965.847PR, Rel. Min. Eliana Calmon, DJU de 14.03.08).

2. Recurso especial não provido (REsp 1024815RS, Rel. Ministro  Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 782008, DJe 492008).

RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - ROUBO DE VEÍCULO - TRANSFERÊNCIA DA PROPRIEDADE À SEGURADORA - ART. 134 DO CTN - APLICAÇÃO AOS CASOS DE INFRAÇÃO DE TRÂNSITO - NÃO OCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE - OBRIGAÇÃO DO ADQUIRENTE DE REQUERER O REGISTRO DA TRANSFERÊNCIA DO VEÍCULO PERANTE O ÓRGÃO DE TRÂNSITO - PROVIDÊNCIA NÃO ADOTADA, NA ESPÉCIE - RESPONSABILIDADE DO NOVO PROPRIETÁRIO PELOS DÉBITOS, NÃO RELACIONADOS À INFRAÇÕES DE TRÂNSITO, POSTERIORES À TRANSFERÊNCIA - RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.I - Embora o art. 134 do Código Brasileiro de Trânsito atribua ao antigo proprietário a responsabilidade de comunicar ao órgão executivo de trânsito a transferência do veículo, sob pena de ter que arcar solidariamente com as penalidades impostas, referida disposição legal somente se aplica às infrações de trânsito, não se estendendo a todos os débitos do veículo após a transferência da propriedade, tal como a cobrança de IPVA;

II - Realizada a transferência da propriedade do veículo, incumbe ao novo proprietário requerer, perante os órgãos competentes, a emissão do novo Certificado de Registro do Veículo (art. 123, § 1º, I, do CTB), providência não adotada, in casu.

III - Recurso especial improvido (REsp 938553DF, Rel. Ministro  Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 2652009, DJe 862009).

Diante do exposto, por entender que o art. 134 do CTB é constitucional, opino pela rejeição da arguição.

 

São Paulo, 7 de dezembro de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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