Parecer

 

Processo n. 0001937-89.2016.8.26.0000

Suscitante: 5ª Câmara de Direito Público

 

 

 

Ementa: Constitucional. Urbanístico. Incidente de inconstitucionalidade. Art. 103, II, “a”, da Lei Complementar nº 428/10, do Município de São José dos Campos. Exigência de doação de 5% da área total do imóvel e de sua área non aedificandi como condição para aprovação do desmembramento. Procedência. 1. Lei municipal que cria forma anômala de desapropriação, expropriação ou confisco, não previstos na legislação federal ou na Constituição Federal, ao impor, como condição para o desmembramento de imóveis, prévia doação de fração para uso público institucional. 2. Desrespeito ao direito de propriedade, à competência privativa da União para legislar sobre desapropriação e direito processual, e à competência concorrente da União e dos Estados para legislar sobre direito urbanístico (arts. 5º, XXII e XXIV, 22, I e II, e 24, I, CF/88).

 

 

Eminente Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

 

         Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela colenda 5ª Câmara de Direito Público em recurso que impugna sentença que julgou procedente ação declaratória cumulada com obrigação de fazer, em face do art. 103, II, “a”, da Lei Complementar Municipal nº 428/10, do Município de São José dos Campos, que estabelece como condição para aprovação de desmembramento a doação de, no mínimo, 5% (cinco por cento) da área total e da área non aedificandi do imóvel para uso público institucional, alegando sua incompatibilidade com os arts. 5º, XXII e XXIV, e 182, §§ 2º a 4º, da Constituição Federal (fls. 182/190).

         É o relato do essencial.

                   Conquanto a matéria esteja pendente de deliberação em precedente arguição de inconstitucionalidade (Processo n. 0069735-04.2015.8.26.0000), o incidente deve ser conhecido, declarando-se a inconstitucionalidade dos dispositivos que são o objeto da arguição.

                   A questão a ser examinada no presente incidente resolve-se na discussão a respeito da inconstitucionalidade da imposição legal de doação de fração de gleba ao poder público municipal, como condição indispensável para a autorização do desdobro do imóvel.

                   Para maior clareza, o dispositivo aqui analisado, da Lei Complementar Municipal nº 428/10, de São José dos Campos, segue transcrito:

“Art. 103. No desmembramento com área igual ou superior a 20.000,00m² (vinte mil metros quadrados), deverão ser doados, no mínimo, 5% (cinco por cento) do total da gleba para uso público institucional:

(...)

II - para imóveis localizados em zonas de uso onde seja permitido o uso residencial multifamiliar, compete ao interessado declarar, por escrito, a finalidade para a qual o desmembramento se destina, sendo que neste caso, a reserva de área institucional deverá observar:

a) 10,00m² (dez metros quadrados) para cada unidade habitacional, não podendo ser inferior ao percentual mínimo fixado no “caput” deste artigo”.

                   É manifestamente inconstitucional a exigência de doação de fração do terreno ao Município como condição prévia ao deferimento do ato de desmembramento do imóvel, prevista no art. 103, II, “a”, antes transcrito.

         E a razão para tal conclusão é objetiva, qual seja, que ao prever tal condição, o legislador municipal criou, ainda que de forma disfarçada, uma hipótese de expropriação forçada ou confisco, não previstos nem na Constituição nem na legislação federal.

                   Recorde-se, por primeiro, que a Constituição garante o direito de propriedade, estabelecendo que a desapropriação depende da tipificação, em lei, dos casos em que poderá ocorrer, bem como do respectivo procedimento (art. 5º, XXII e XXIV, Constituição).

                   Por outro lado, compete privativamente ao legislador federal legislar a respeito da desapropriação, bem como do direito processual, no qual se insere, obviamente, a regulamentação do processo de desapropriação (art. 22, I e II, Constituição).

                   Não menos importante lembrar que mesmo que se enxergasse, na hipótese, situação de desapropriação em benefício da função social da propriedade, seria necessário que ela ocorresse mediante o cumprimento dos requisitos para tanto, estabelecidos na própria Constituição Federal, bem como através do processo especificamente destinado a tal fim, previsto em lei igualmente federal (arts. 182, § 4º, III, e 184, caput, e § 3º, Constituição).

                   Acrescente-se finalmente que, na perspectiva em que foi tratada a matéria, revela-se que o legislador municipal invadiu a esfera da legislação a respeito do direito urbanístico, que compete, de forma concorrente, ao legislador federal e ao legislador estadual (art. 24, I, Constituição).

                   Por tais motivos, mostra-se evidentemente inconstitucional a imposição prevista na legislação municipal.

                   Neste sentido já se posicionou o colendo Órgão Especial do Tribunal de Justiça em caso análogo, precedente que, mutatis mutandis, aplica-se ao caso em exame:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Lei Complementar nº 111, de 25 de julho de 2006, do Município de Santa Fé do Sul, que alterou a redação anterior do Plano Diretor, impondo novas condições para aprovação de projetos de parcelamento do solo - Legislação que regulou matéria atinente ao direito urbanístico, acerca da qual compete apenas à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar, na forma estabelecida no artigo 24, inciso I, da Carta Magna - Eventual suplementação da norma federal pelo Município, com esteio no art. 30, incisos I e II, da CF, que deveria ficar restrita às questões de manifesto interesse local, sem estender-se em regras gerais, afetas apenas à competência legislativa da União - Tema, ademais, que já havia sido inteiramente regulado na Lei Federal nº 6.766/79, impedindo a edição de ato normativo em sentido contrário pelo ente público local - Invasão de competência legislativa de outros entes federados pelo Município que restou, portanto, evidenciada - Ato normativo questionado que, ainda, impôs a doação de percentual do loteamento ao Município, como condição à aprovação do projeto, exigência não contida no art. 4º, inciso I, da Lei Federal nº 6.766/79, criando espécie anômala de desapropriação, não prevista no ordenamento jurídico pátrio, em desconsideração ao direito de propriedade - Inexistência, também, de pertinência entre a exigência legal contestada e o interesse público envolvido (ordenação do espaço urbano), pois a obrigação de “doação” de percentual da área dos loteamentos ao Município não importa em benefícios aos moradores locais, o que evidencia, igualmente, violação aos princípios que devem reger a atuação da Administração, insculpidos no art. 111 da Carta Estadual, especialmente os da legalidade, razoabilidade, finalidade e interesse público - Áreas recebidas pelo Município em razão da legislação ora questionada que foram objeto de dezenas de alienações públicas, desde a vigência do ato normativo, no ano de 2006, em negócios que atingiram valor substancial envolveram terceiros de boa-fé, não se mostrando razoável e nem recomendando a desconstituição dessas transações - Presença, destarte, de razões de segurança jurídica na espécie que recomenda a modulação dos efeitos da presente declaração de inconstitucionalidade, a partir da concessão da medida liminar nestes autos, por aplicação da regra contida no art. 27 da Lei Federal nº 9868/99 - Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, com modulação dos efeitos” (TJSP, ADI 0128604-28.2013.8.26.0000, Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, 14-05-2014).

                   Face ao exposto, opino pela declaração de inconstitucionalidade.

                   São Paulo, 21 de janeiro de 2016.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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