Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0006941-78.2014.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 8ª Câmara de Direito Público

Apelante: (...)

Apelada: MUNICIPALIDADE DE CUBATÃO

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Art. 138, § 2º, da Lei Orgânica Municipal de Cubatão.  Previsão de que “o piso salarial dos servidores municipais não será inferior a três salários mínimos”.

2)      Inconstitucionalidade. Utilização de valor múltiplo do salário mínimo como piso para o funcionalismo municipal. Contrariedade ao art. 7º, IV da CF. Súmula Vinculante nº 04 do STF. Precedentes do STF.

3)      Iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo. Matéria que, nos termos do entendimento assente do STF, deve ser regulada pela legislação ordinária (art. 24, § 2º, n. 4 da Constituição Paulista; art. 61, § 1º, II, “c” da Constituição Federal). Precedentes do STF.

4)      Parecer no sentido do conhecimento e acolhimento da arguição de inconstitucionalidade.

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 8ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da Apelação nº 0008904-43.2011.8.26.0157, relatora a Desembargadora Cristina Cotofre, na sessão realizada em 30 de outubro de 2013 (v. acórdão às fls. 157/160).

A Col. Câmara suscitou a inconstitucionalidade relativamente à previsão de que “o piso salarial dos servidores municipais não será inferior a três salários mínimos”, constando do julgado a seguinte ementa:

 “(...)

APELAÇÃO CÍVEL – Servidores Municipais de Cubatão – Piso salarial vinculado a salários mínimos – Impossibilidade – inteligência do art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal e Súmula Vinculante nº 04 do C. STF – Inaplicabilidade do artigo 138, § 2º da Lei Orgânica de Cubatão – Incidente de Inconstitucionalidade suscitado – Inteligência da Súmula Vinculante nº 10 do C. STF. Remessa dos autos ao E. Órgão Especial.

 (...)”

Do voto da relatora consta a seguinte elucidativa passagem:

“(...)

Extrai-se dos autos que o apelante, em nome de seus representados, visa que a Municipalidade de Cubatão cumpra imediatamente o disposto no artigo 138, § 2º, da Lei Orgânica municipal, que assim determina:

‘art. 138. A despesa com pessoal ativo e inativo do Município não poderá exceder os limites estabelecidos na Constituição Federal.

(...)

§ 2º. O piso salarial dos Servidores Municipais não será inferior a três salários mínimos.’

Ocorre que, referido norma municipal viola o art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal, o qual veda a vinculação do salário mínimo para qualquer fim.

Neste sentido, inclusive, foi editada a súmula vinculante n. 4 pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, que dispõe:

‘Salvo nos casos previstos na Constituição Federal, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial.’

(...)”

É o relato do essencial.

O incidente deve ser admitido, e deve ser acolhida a arguição de inconstitucionalidade.

O § 2º do art. 138 da Lei Orgânica Municipal de Cubatão, tido pelo órgão suscitante como inconstitucional, estabelece que o piso salarial dos servidores municipais, naquela cidade, não será inferior a três salários mínimos.

Evidencia-se, no conteúdo do referido dispositivo legal, a inconstitucionalidade.

A razão é singela.

A lei utiliza valor que se refere ao salário mínimo como piso da remuneração dos servidores municipais. Isso contraria frontalmente o art. 7º, IV da CF. Tal vedação, como enunciado no v. acórdão que suscitou o incidente, foi explicitada pela Súmula Vinculante nº 04 do STF.

A casuística relativa à jurisprudência do Col. STF confirma tal entendimento:

“Piso salarial dos técnicos em radiologia. Adicional de insalubridade. Vinculação ao salário mínimo. Súmula Vinculante 4. (...) O art. 16 da Lei 7.394/1985 deve ser declarado ilegítimo, por não recepção, mas os critérios estabelecidos pela referida lei devem continuar sendo aplicados, até que sobrevenha norma que fixe nova base de cálculo, seja lei federal, editada pelo Congresso Nacional, sejam convenções ou acordos coletivos de trabalho, ou, ainda, lei estadual, editada conforme delegação prevista na LC 103/2000. Congelamento da base de cálculo em questão, para que seja calculada de acordo com o valor de dois salários mínimos vigentes na data do trânsito em julgado desta decisão, de modo a desindexar o salário mínimo. Solução que, a um só tempo, repele do ordenamento jurídico lei incompatível com a Constituição atual, não deixe um vácuo legislativo que acabaria por eliminar direitos dos trabalhadores, mas também não esvazia o conteúdo da decisão proferida por este STF.” (ADPF 151-MC, Rel. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 2-2-2011, Plenário, DJE de 6-5-2011.)

“O Supremo assentou o entendimento de que não é possível a vinculação do piso-base ao salário mínimo, nos termos do disposto na parte final do inciso IV do art. 7º da CB.” (AI 763.641-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 17-11-2009, Segunda Turma, DJE de 4-12-2009.) No mesmo sentido: RE 258.386-AgR, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 14-8-2001, Segunda Turma, DJE de 5-10-2001. 

“Impossibilidade de fixação do piso salarial em múltiplos do salário mínimo.” (AI 467.011-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 15-9-2009, Primeira Turma, DJE de 16-10-2009.) No mesmo sentido: RE 431.427-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 19-10-2010, Primeira Turma, DJE de 14-3-2011. Vide: RE 409.427-AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 16-3-2004, Primeira Turma, DJ de 2-4-2004.

"Norma impugnada que trata da remuneração do pessoal de autarquia estadual, vinculando o quadro de salários ao salário mínimo. (...) Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada procedente para declarar a ilegitimidade (não recepção) do Regulamento de Pessoal do extinto IDESP em face do princípio federativo e da proibição de vinculação de salários a múltiplos do salário mínimo (art. 60, § 4º, I, c/c art. 7º, IV, in fine, da CF). (ADPF 33, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 7-12-2005, Plenário, DJ de 27-10-2006.) No mesmo sentido:  AC 2.288-MC-REF, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 10-3-2009, Segunda Turma, DJE de 10-8-2012;  ADPF 47, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 12-12-2007, Plenário, DJ de 18-4-2008.

Mas não é só.

Trata, a norma questionada, do regime jurídico do servidor público municipal, matéria que, seja por disposição da Constituição Estadual (art. 24, § 2º, n. 4), seja por disposição da Constituição Federal (art. 61, § 1º, II, “c”), é de iniciativa legislativa privativa do Chefe do Poder Executivo.

Daí a impossibilidade de regulação dessa temática no âmbito da Lei Orgânica do Município.

Essa solução é afirmada pela jurisprudência do C. STF, que destaca, em precedentes que são aplicáveis à hipótese “mutatis mutandis”, que a matéria de iniciativa privativa do Chefe do Executivo deve ser tratada por meio da legislação ordinária, excluída, assim, a sua regulamentação na Constituição do Estado ou mesmo na Lei Orgânica da entidade federativa. Confira-se:

“Estado do Rio Grande do Sul. Constituição Estadual. Art. 29, I, que assegura aos servidores militares vencimento básico nunca inferior ao salário mínimo fixado pela União. Inconstitucionalidade formal. Dispositivo ofensivo ao princípio da iniciativa legislativa privativa do chefe do Poder Executivo, prevista no art. 61, § 1º, II, a, da Constituição, corolário do postulado da separação dos poderes, de observância imperiosa pelos Estados-membros, por instituir mecanismo de reajuste automático de vencimentos de servidores. Aliás, a garantia do salário mínimo, quando da edição da norma sob enfoque, ainda não havia sido estendida aos militares, o que somente ocorreu com a EC 18/1998, havendo de entender-se, entretanto, como referida à remuneração global do servidor, visto destinar-se a assegurar o atendimento das necessidades vitais básicas deste, sendo vedada, ademais, sua vinculação para qualquer fim. Inconstitucionalidade que se declara, no art. 47 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, da referência feita ao inciso I do art. 29 da mesma Carta.” (RE 198.982, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 5-8-1998, Plenário, DJ de 19-4-2002.)

 “Tratando-se de criação de funções, cargos e empregos públicos ou de regime jurídico de servidores públicos impõe-se a iniciativa exclusiva do chefe do Poder Executivo nos termos do art. 61, § 1º, II, da CF, o que, evidentemente, não se dá com a Lei Orgânica." (ADI 980, Rel. Min. Menezes Direito, julgamento em 6-3-2008, Plenário, DJE de 1º-8-2008.)

"Dentre as regras básicas do processo legislativo federal, de observância compulsória pelos Estados, por sua implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos Poderes, encontram-se as previstas nas alíneas a e c do art. 61, § 1º, II, da CF, que determinam a iniciativa reservada do chefe do Poder Executivo na elaboração de leis que disponham sobre o regime jurídico e o provimento de cargos dos servidores públicos civis e militares. Precedentes: ADI 774, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 26-2-1999, ADI 2.115, Rel. Min. Ilmar Galvão e ADI 700, Rel. Min. Maurício Corrêa. Esta Corte fixou o entendimento de que a norma prevista em Constituição estadual vedando a estipulação de limite de idade para o ingresso no serviço público traz em si requisito referente ao provimento de cargos e ao regime jurídico de servidor público, matéria cuja regulamentação reclama a edição de legislação ordinária, de iniciativa do chefe do Poder Executivo. Precedentes: ADI 1.165, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 14-6-2002 e ADI 243, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, DJ de 29-11-2002. Ação direta cujo pedido se julga procedente." (ADI 2.873, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 20-9-2007, Plenário, DJ de 9-11-2007.) No mesmo sentido: ADI 2.856, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 10-2-2011, Plenário, DJE de 1º-3-2011; ADI 3.167, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 18-6-2007, Plenário, DJ de 6-9-2007.

"Processo legislativo: normas de lei de iniciativa parlamentar que cuidam de jornada de trabalho, distribuição de carga horária, lotação dos profissionais da educação e uso dos espaços físicos e recursos humanos e materiais do Estado e de seus Municípios na organização do sistema de ensino: reserva de iniciativa ao Poder Executivo dos projetos de leis que disponham sobre o regime jurídico dos servidores públicos, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria (art. 61, II, § 1º, c)." (ADI 1.895, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 2-8-2007, Plenário, DJ de 6-9-2007.)

Por todo o exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento e acolhimento da arguição, declarando-se a inconstitucionalidade § 2º do art. 138 da Lei Orgânica Municipal de Cubatão.

São Paulo, 06 de fevereiro de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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