Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0008436-60.2014.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 12ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Apelante: (...) - Espólio

Apelado: Prefeitura Municipal de São Paulo

 

 

Ementa:

1)      Constitucional. Administrativo. Incidente de Inconstitucionalidade.  Lei n. 15.442, de 09 de setembro de 2012, do Município de São Paulo. ausência de inconstitucionalidade por vício de iniciativa ou violação ao princípio da separação dos poderes. inexistência de invasão da competência legislativa da união (art. 22, i, da cf). ofensa ao princípio da razoabilidade (art. 111 da ce). 1. Não há iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo para a imposição de multa e de responsabilidade por danos pela conservação de bem público de uso comum do povo atribuída a particulares. 2. A reserva de iniciativa legislativa reclama expressa previsão e não admite interpretação ampliativa. 3. Ato normativo impugnado que não dispõe acerca de responsabilidade civil, por má conservação do passeio público, não se divisando ofensa ao art. 22, I, da CF. 4. Inconstitucionalidade, todavia, revelada pela ofensa ao princípio da razoabilidade. Parecer pela admissão e acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

         Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 12ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação cível nº 0011136-15.20128.26.0053 da Comarca de São Paulo, na sessão realizada em 27 de novembro de 2013, figurando como Relatora a Desembargadora Isabel Cogan.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade da Lei nº 15.442, de 09 de setembro de 2012, do Município de São Paulo, por vício de iniciativa, violação ao princípio da separação de poderes e, ainda, invasão da competência legislativa privativa da União, prevista no art. 22, I, da Constituição Federal.

É o relato do essencial.

O incidente deve ser conhecido e merece acolhimento.

Preliminarmente, requer-se o julgamento em conjunto deste Incidente de Inconstitucionalidade com a ADIN nº 0195280-55.2013.8.26.0000, pois em ambos os feitos se discute acerca da constitucionalidade ou não da Lei nº 15.442/2011, do Município de São Paulo.

A lei 15.442/2012 assim dispõe:

“Art. 7º Os responsáveis por imóveis, edificados ou não, lindeiros a vias ou logradouros públicos dotados de guias e sarjetas, são obrigados a executar, manter e conservar os respectivos passeios na extensão correspondente à sua testada, na conformidade da normatização específica expedida pelo Executivo.

§ 1º Ficam excluídos da obrigação de execução dos passeios, prevista no "caput" deste artigo, os responsáveis por imóveis localizados nas vias integrantes:

I - do Plano de Pavimentação Urbana Comunitária - PPUC, instituído pela Lei nº 10.558, de 17 de junho de 1988;

II - das rotas definidas, mediante decreto, nos termos do disposto no art. 2º da Lei nº 14.675, de 23 de janeiro de 2008, que instituiu o Plano Emergencial de Calçadas - PEC;

III - da Rede Viária Estrutural dos tipos N1, N2 e N3, a teor dos §§1º e 3º do art. 6º da Lei nº 13.885, de 25 de agosto de 2004.

§ 2º Para os efeitos desta lei, o passeio será considerado:

I - inexistente, quando executado em desconformidade com as normas técnicas vigentes à época de sua construção ou reconstrução;

II - em mau estado de manutenção e conservação, quando apresentar buracos, ondulações, desníveis não exigidos pela natureza do logradouro ou obstáculos que impeçam a circulação livre e segura dos pedestres, bem como execução de reparos em desacordo com o aspecto estético ou harmônico do passeio existente.

(...)

 Art. 10. Consideram-se responsáveis pelas obras e serviços previstos nos arts. 1º a 7º desta lei:

I - o proprietário, o titular do domínio útil ou da nua propriedade, o condomínio ou o possuidor do imóvel, a qualquer título, ressalvadas as hipóteses previstas no § 1º do art. 7º desta lei;

II - a União, o Estado, o Município e os órgãos e entidades da respectiva Administração Indireta, quanto aos próprios de seu domínio, posse, guarda ou administração.

§ 1º O Município reparará os danos que causar às obras e serviços de que trata esta lei quando da realização dos melhoramentos públicos de sua responsabilidade.

§ 2º As permissionárias do uso das vias públicas para a implantação de equipamentos de infraestrutura urbana destinados à prestação de serviços públicos e privados repararão os danos causados aos passeios públicos na conformidade do disposto em legislação específica.

§ 3º Os responsáveis referidos no inciso I do "caput" deste artigo serão solidariamente responsáveis pela regularidade dos imóveis nos termos das disposições desta lei, bem como pelas penalidades decorrentes do seu descumprimento.

Art. 11. O descumprimento das disposições desta lei acarretará a lavratura, por irregularidade constatada, de autos de multa e de intimação para regularizar a limpeza, o fechamento ou o passeio, conforme o caso, no prazo improrrogável de 30 (trinta) dias.

Parágrafo único. O prazo estabelecido no "caput" deste artigo ficará reduzido a 20 (vinte) dias nos casos das irregularidades previstas no art. 8º desta lei.

Art. 12. Os autos de multa e de intimação serão dirigidos ao responsável ou seu representante legal, assim considerados o mandatário, o administrador ou o gerente, pessoalmente ou por via postal com aviso de recebimento, no endereço constante do Cadastro Imobiliário Fiscal, nos termos da Lei nº 10.208, de 5 de dezembro de 1986.

§ 1º Presumir-se-á o recebimento dos autos de multa e de intimação quando encaminhados ao endereço constante do Cadastro Imobiliário Fiscal.

§ 2º A multa e a intimação serão objeto de publicação por edital no Diário Oficial da Cidade.

§ 3º O prazo para atendimento da intimação será contado em dias corridos, a partir da data da publicação do edital, excluído o dia do início e incluído o dia do fim.”

A instituição de sanção ao administrado pelo descumprimento de obrigação não pode ser concebida como matéria sujeita à reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. O caso é de iniciativa comum ou concorrente.

Conforme cediça manifestação doutrinária e iterativa orientação pretoriana, regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

 

Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

“As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36).  

 

Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144). 

Não se verifica nesse preceito reserva de iniciativa legislativa instituída de maneira expressa. Tampouco competência privativa do Chefe do Poder Executivo com base no art. 47. Esse dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

Na espécie, a norma local impõe sanção a particulares, sem, no entanto, conferir nova obrigação ao Poder Executivo, o que desautoriza arguição de ofensa aos arts. 5º, 24, § 2º, 2 e 47, II e XIX, a, da Constituição Estadual.

Colhe-se da jurisprudência da Suprema Corte que a matéria respeitante à polícia administrativa em geral é da iniciativa legislativa concorrente:

“Recurso extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade contra lei municipal, dispondo sobre matéria tida como tema contemplado no art. 30, VIII, da Constituição Federal, da competência dos Municípios. 2. Inexiste norma que confira a Chefe do Poder Executivo municipal a exclusividade de iniciativa relativamente à matéria objeto do diploma legal impugnado. Matéria de competência concorrente. Inexistência de invasão da esfera de atribuições do Executivo municipal. 3. Recurso extraordinário não conhecido” (STF, RE 218.110-SP, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, 02-04-2002, v.u., DJ 17-05-2002, p. 73).

 

Não há, também, invasão da esfera legislativa da União (artigo 22, I, da Constituição Federal), pois o diploma normativo impugnado nada dispôs acerca de direito civil, como, por exemplo, eventual responsabilidade civil, em caso de acidentes causados por má conservação do passeio público. A lei impugnada contém apenas disposições relativas às obrigações administrativas, por parte dos proprietários dos imóveis, relativas à conservação de calçadas, bem como as respectivas penalidades por seu eventual descumprimento.

Porém, a norma local impugnada padece de inconstitucionalidade, por ofensa ao princípio da razoabilidade, inscrito no art. 111 da Constituição do Estado:

 

“Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.”

 

Com efeito, a lei contestada impõe sanção pecuniária e responsabilidade administrativa, em decorrência da inobservância de obrigação imposta aos particulares, de manutenção e conservação de bem público de uso comum do povo (art. 99 do Código Civil).

Ocorre que a titularidade e a natureza desse bem são incompatíveis com a prescrição adotada, sob o prisma da racionalidade e da justiça, manifestando a inconsistência jurídica dos ônus impostos.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que a Lei Municipal nº 15.442, de 09 de setembro de 2012, de São Paulo, viola o artigo 111 da Constituição do Estado.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e de seu acolhimento, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 15.442, de 09 de setembro de 2012, de São Paulo, pois viola o artigo 111 da Constituição do Estado.

               São Paulo, 18 de fevereiro de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

 

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