Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0011458-58.2016.8.26.0000

Suscitante: 9° Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo

 

 

Ementa:

1) Lei Municipal nº 5.362, de 20 de maio de 2008, de Indaiatuba, que “dispõe sobre a obrigatoriedade das concessionárias de automóveis plantarem árvores para  a mitigação do efeito estufa”.

2) Competência concorrente da União e dos Estados para legislar sobre proteção ao meio ambiente e controle da poluição (art. 24, VI, da CR). Competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, para cuidar da saúde, proteger o meio ambiente e combater a poluição (art. 23, II, VI e VII, da CR).

3) Legislação municipal editada para atender ao interesse local, suplementando a legislação da União e do Estado relativa à proteção do meio ambiente (art. 30, I e II, da CR). Incumbência do Poder Público, em todas as suas esferas, de controlar a produção, comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (art. 225, § 1º, V, da CR/88).

4) Exigência legal que viola, no entanto, o princípio da razoabilidade (art. 111, CE).

 

Colendo Órgão Especial:

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 9ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento do Agravo de Instrumento nº 2222940-19.2015.8.26.0000, relator o Desembargador Moreira de Carvalho, na sessão de julgamento realizada em 11 de novembro de 2015 (v. acórdão às fls. 49/54).

A Col. Câmara suscitou a inconstitucionalidade relativamente à Lei n. 5.362/08, do Município de Indaiatuba, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade das concessionárias de automóveis plantarem árvores para a mitigação do efeito estufa, e dá outras providências”, constando do julgado a seguinte ementa:

 “(...)

AGRAVO DE INSTRUMENTO – Decisão que concedeu tutela antecipada para suspender os efeitos da Lei Municipal n. 5.362/08, que determinou o plantio de uma árvore para cada veículo novo vendido por concessionária – Aparente inconstitucionalidade da norma que extrapola a competência municipal e não trata de assunto de interesse local – O reconhecimento da inconstitucionalidade em Segundo Grau, de maneira incidental, é de competência do Plenário desta Corte – Remessa dos autos ao Órgão Especial.

(...)”            

         É o relatório.

Cabe destacar, inicialmente, não se vislumbrar, na lei municipal em questão, qualquer inconstitucionalidade por afronta ao rol de competências atribuídas a cada um dos entes federativos.

De fato, não há dúvida de que o Município tem competência administrativa e legislativa para fins de promover a defesa do meio ambiente, bem como para zelar pela saúde dos munícipes.

Nada fácil se mostra conceituar “interesse local”.  Hely Lopes Meirelles esclarece que O que define e caracteriza o “interesse local”, inscrito como dogma constitucional, é a predominância do interesse do Município sobre o do Estado ou da União.”  Mais adiante, o mencionado autor citando Sampaio Dória, coloca que “O entrelaçamento dos interesses dos Municípios com os interesses dos Estados, e com os interesses da Nação, decorre da natureza mesma das coisas. O que diferencia é a predominância, e não a exclusividade”. Assim, “(...) tudo quanto repercutir direta e imediatamente na vida municipal é de interesse peculiar do Município, embora possa interessar também indireta e mediatamente ao Estado-membro e à União.” (“Direito Municipal Brasileiro”, 6ª edição, Malheiros Editores, pág. 98 e 99). Não é outro o entendimento de Fernanda Dias Menezes, para quem “é inegável que mesmo atividades e serviços tradicionalmente desempenhados pelos municípios, como transporte coletivo, polícia das edificações, fiscalização das condições de higiene de restaurantes e similares, coletas de lixo, ordenação do uso do solo urbano, etc., dizem secundariamente com o interesse estadual e nacional” (in “Competências na Constituição de 1988, Atlas, 1991).

No caso em apreço, as condutas impostas aos particulares referem-se diretamente à defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado, tutelam as futuras gerações e protegem a qualidade de vida dos munícipes, estando, pois, o Município apto a legislar a tal respeito, sem ofensa ao princípio da autonomia dos entes federativos.

Nesse sentido, o que dispõe o art. 23, II, VI, VII, da Constituição Republicana, que atribui competência concorrente à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para: (a) cuidar da saúde; (b) proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; e (c) preservar as florestas, a fauna e a flora.

Do mesmo modo, a competência dos Municípios, em temas relacionados ao meio ambiente, pode ser extraída da previsão contida nos incisos I e II do art. 30 da Constituição Republicana, por força dos quais o legislador municipal pode regular temas de interesse local, e ainda suplementar a legislação federal no que couber.

Acrescente-se que a competência do Município para legislar sobre o meio ambiente foi reconhecida por este Pretório Excelso em data recente:

O Município é competente para legislar sobre meio ambiente com União e Estado, no limite de seu interesse local e desde que tal regramento seja e harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados (art. 24, VI c/c 30, I e II da CRFB)” (RE 586.224/SP, Relator Min. LUIZ FUX, Julgamento: 05/03/2015, Tribunal Pleno).

Entretanto, não obstante a nobre intenção estampada na lei impugnada, de buscar maior proteção ao meio ambiente, o ato normativo atacado criou exigência desarrazoada, imposta somente aos estabelecimentos que desenvolvem atividade empresarial de venda de veículos novos, violando, desta forma, o princípio da razoabilidade.

A lei local não é compatível com o princípio da razoabilidade, inscrito no art. 111 da Constituição Estadual, e que exige dos atos normativos padrões como justiça, bom senso, racionalidade, logicidade, coerência, proporcionalidade, e isonomia, interditando medidas arbitrárias e destituídas de interesse público e pautando a igualdade na lei, consistente na proibição de normas discriminatórias desarrazoadas, como reflexo da cláusula do substantive due process of law.

A Constituição de 1988 consagra o devido processo legal nos aspectos substantivo e processual nos incisos LIV e LV do art. 5º, respectivamente. Em sua evolução histórica, o princípio do due process of law dilatou sua compreensão processual ou adjetiva (garantia de um procedimento judicial justo, com direito de defesa) para, a latere, uma conceituação substantiva ou material no direito norte-americano, como limitação do mérito das ações estatais, exigente da elaboração normativa com justiça, reasonableness (razoabilidade) e racionality (racionalidade), devendo ostentar real e substancial nexo com o objetivo que se quer atingir. No direito germânico, o princípio da proporcionalidade (proibição do excesso) impõe a avaliação da compatibilidade entre meios e fins, de modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas contra os direitos fundamentais. No fundo, entrosam-se tais conceitos com a dimensão da igualdade na lei (proibição de normas discriminatórias desarrazoadas) e perante a lei (vedação da execução da norma com tratamento discriminatório desarrazoado).

Por força desse princípio é necessário que a norma passe pelo denominado “teste de razoabilidade”, de maneira que preencha os seguintes elementos: adequação (aptidão a produção do resultado desejado), necessidade (infungibilidade por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcionalidade em sentido estrito (relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto).

Neste contexto, não há na lei enfocada qualquer elemento razoável para se arquitetar a obrigação nela contida e na forma concebida.

Se é lícito ao Município legislar, de forma complementar, acerca de normas de proteção ao meio ambiente (art. 24, VI, da CF), as obrigações daí geradas devem estar acompanhadas de justificativa racional que as sustente.

A imposição de obrigação de plantio de árvores apenas aos estabelecimentos apontados na lei atacada não é razoável, tendo em vista que direcionada somente às concessionárias da cidade de Indaiatuba, que vendam veículos novos, enquanto que as montadoras de veículos, e até mesmo comerciantes de carros usados, que estejam instalados em outras cidades, não são atingidos pela mesma obrigação, embora os veículos possam vir a circular naquela urbe, onde culminam por dispersar os indesejáveis agentes poluentes, o que, de toda sorte, acaba por malferir o princípio da isonomia.

 Aliás, este tratamento desigual aos concessionários de veículos demanda a existência de relação entre o fator ou elemento discriminante, o discrímen e a finalidade da discriminação, ou seja, impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo(Celso Antonio Bandeira de Mello. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 49).

A diferenciação feita pelo legislador só será possível quando, objetivamente, constatar-se um fator de discrímen que dê razoabilidade à diferenciação de tratamento contida na lei, pois a igualdade pressupõe um juízo de valor e um critério justo de valoração, proibindo o arbítrio, que ocorrerá “quando a disciplina legal não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável” (J. J. Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoria da constituição, Coimbra: Almedina, 3ª ed., 1998, pp. 400-401).

Esse raciocínio tem sido acolhido pela doutrina como argumento suficiente para, por desconsideração a um dos três aspectos do “teste de razoabilidade”, afastar-se a legitimidade do ato normativo ou administrativo. Confira-se: Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Curso de direito administrativo, 14. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 101; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, 19. ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.95; Gilmar Ferreira Mendes, “A proporcionalidade na jurisprudência do STF”, publicado em Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e Celso Bastos Editor, 1998, p.83.

Portanto, a Lei nº 5.362 de 20 de maio de 2008, do Município de Indaituba, viola o princípio da razoabilidade (art. 111 da CE).

         Face ao exposto, opino pelo acolhimento do incidente.

        

São Paulo, 30 de março de 2016.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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