Parecer

 

Processo n. 0016591-81.2016.8.26.0000

Suscitante: 8ª Câmara de Direito Público

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Processo Civil. Urbanístico. Incidente de inconstitucionalidade. Art. 103 da Lei Complementar nº 428/10, do Município de São José dos Campos. Inconstitucionalidade anteriormente pronunciada pelo Órgão Especial. Não conhecimento. Exigência de doação de 5% da área total do imóvel e de sua área non aedificandi como condição para aprovação do desmembramento. Procedência.

1. Não conhecimento: os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário ou ao órgão especial a arguição de inconstitucionalidade quando já houver pronunciamento destes.

2. Inconstitucionalidade do art. 103, LC 428/10, de São José dos Campos, já declarada pelo Órgão Especial.

3. Lei municipal que cria forma anômala de desapropriação, expropriação ou confisco, não previstos na legislação federal ou na Constituição Federal, ao impor, como condição para o desmembramento de imóveis, prévia doação de fração para uso público institucional.

4. Desrespeito ao direito de propriedade, à competência privativa da União para legislar sobre desapropriação e direito processual, e à competência concorrente da União e dos Estados para legislar sobre direito urbanístico (arts. 5º, XXII e XXIV, 22, I e II, e 24, I, CF/88).

5. Procedência se não acolhida a preliminar.

 

 

Eminente Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

 

         Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela colenda 8ª Câmara de Direito Público em recurso que impugna sentença que julgou procedente ação declaratória cumulada com obrigações de fazer e não fazer, em face do art. 103, caput, da Lei Complementar nº 428/10, do Município de São José dos Campos, que estabelece como condição para aprovação de desmembramento a doação de, no mínimo, 5% (cinco por cento) do total da gleba para uso público institucional (fls. 393/399).

         É o relato do essencial.

                   A fundamentação do acórdão se reporta a acórdãos precedentes das Câmaras de Direito Público e do Órgão Especial para vislumbrar a inconstitucionalidade, satisfazendo, deste modo, a suscitação do incidente em seu aspecto formal.

                   Porém, o colendo Órgão Especial já teve a oportunidade de julgar a matéria, declarando a inconstitucionalidade do art. 103 da Lei Complementar n. 428, de 2010, do Município de São José dos Campos, como se nota da ementa de venerando acórdão adiante transcrita:

“INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE - Artigo 103, inciso II, alínea ‘a’, da Lei Complementar nº 428, de 9 de agosto de 2010, do Município de São José dos Campos, que estabelece a doação de parte do imóvel para uso institucional como condição para aprovação de seu desmembramento - Disposição legal que regulou matéria atinente ao direito urbanístico, acerca da qual compete apenas à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar, na forma estabelecida no artigo 24, inciso I, da Carta Magna - Eventual suplementação da norma federal pelo Município, com esteio no art. 30, incisos I e II, da CF, que deveria ficar restrita às questões de manifesto interesse local, sem estender-se em regras gerais, afetas apenas à competência legislativa da União - Tema, ademais, que já havia sido inteiramente regulado na Lei Federal nº 6.766/79, impedindo a edição de ato normativo pelo ente público local que inove a matéria Invasão de competência legislativa de outros entes federados pelo Município que restou, portanto, evidenciada Ato normativo questionado, ademais, que criou espécie anômala de desapropriação, não prevista no ordenamento jurídico pátrio, em desconsideração ao direito de propriedade - Precedentes deste Órgão Especial - Arguição de inconstitucionalidade julgada procedente” (II 0069735-04.2015.8.26.0000, Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, v.u., 24-02-2016).

                   Destarte, o incidente não merece ser conhecido à luz do parágrafo único do art. 949 do Código de Processo Civil que assim dispõe:

“Art. 949. Se a arguição for:

I - rejeitada, prosseguirá o julgamento;

II - acolhida, a questão será submetida ao plenário do tribunal ou ao seu órgão especial, onde houver.

Parágrafo único. Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário ou ao órgão especial a arguição de inconstitucionalidade quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão”.

                   No caso, como exposto acima, já houve pronunciamento do colendo Órgão Especial, e que tem eficácia vinculante para o Tribunal.

                   Nem se alegue que referido julgamento teve objeto distinto – a alínea b do inciso II do art. 103 da Lei Complementar n. 428/10.

                   Com efeito, a lei em foco assim dispõe:

“Art. 103. No desmembramento com área igual ou superior a 20.000,00m2 (vinte mil metros quadrados), deverão ser doados, no mínimo, 5% (cinco por cento) do total da gleba para uso público institucional:

I - para ·imóveis localizados em zonas de uso onde seja permitido somente o uso residencial unifamiliar, ou que esteja em zona industrial, o percentual de área institucional será o definido no ‘caput’ deste artigo;

II - para imóveis localizados em zonas de uso onde seja permitido o uso residencial multifamiliar, compete ao interessado declarar, por escrito, a finalidade para a qual o desmembramento se destina, sendo que neste caso, a reserva de área institucional deverá observar:

a) 10,00m2 (dez metros quadrados) para cada unidade habitacional, não podendo ser inferior ao percentual mínimo fixado no ‘caput’ deste artigo.

b) o empreendedor deverá informar no alvará de construção para o uso residencial multifamiliar o número do processo administrativo do desmembramento, para verificação do atendimento das disposições da alínea ‘a’ deste artigo.

Parágrafo único. Nos desmembramentos de que trata o ‘caput’ deste artigo, aplicam-se as disposições urbanísticas e ambientais para loteamentos previstas na Seção II do Capítulo II desta lei complementar, no que couber”.

                   A decisão precedente que estorva o trânsito deste incidente pronunciou a inconstitucionalidade da imposição legal de doação de fração de gleba ao poder público municipal, como condição indispensável para a autorização do desdobro do imóvel, o que engloba a inconstitucionalidade por dependência de incisos e alíneas que definem as condições e requisitos do comando emergente do caput.

                   Aliás, esta foi a conclusão dispensada em outro incidente de inconstitucionalidade, como se verifica da transcrição da ementa do venerando acórdão proferido pelo colendo Órgão Especial tendo como objeto o art. 103 da Lei Complementar n. 428/10 do Município de São José dos Campos:

“ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. Impugnação do artigo 103 da Lei Complementar nº 428/2010, do município de São José dos Campos, que dispõe que ‘no desmembramento com área igual ou superior a 20.000,00m2 (vinte mil metros quadrados), deverão ser doados, no mínimo, 5% (cinco por cento) do total da gleba para uso público institucional’.

Questão controvertida, entretanto, que já foi objeto de exame em julgado recente (Arguição de Inconstitucionalidade nº 0069735-04.2015.8.26.0000, Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, j. 24/02/2016).

Naquele precedente, o C. Órgão Especial, ao reconhecer a ocorrência de ofensa à disposição do art. 24, inciso I, da Constituição Federal, esgotou todo o tema envolvendo o questionamento da exigência de doação (como condição para autorização de desmembramento imobiliário), com abrangência, inclusive, da disposição do ‘caput’ do art. 103, objeto da presente impugnação.

Incidência, portanto, da regra do art. 481, parágrafo único, do CPC (ainda que o mencionado precedente tenha se referido apenas ao inciso II do art. 103, e não ao caput), pois, conforme orientação do Supremo Tribunal Federal, ‘a aplicação do precedente não precisa ser absolutamente literal. Se a partir do julgado for possível concluir um posicionamento acerca de determinada matéria, já se afigura suficiente a invocação do aresto para afastar a vigência da norma maculada pelo vício já reconhecido...’ (RE 578582 AgR, Relator Ministro Dias Tofolli, Primeira Turma, julgamento em 27.11.2012. DJe de 19.12.2012).

Arguição não conhecida, com determinação de retorno dos autos à C. 5ª Câmara de Direito Público” (II 0001937-89.2016.8.26.0000, Rel. Des. Ferreira Rodrigues, v.u., 16-03-2016).

                   Destarte, opino pelo não conhecimento do incidente.

                   Se superada a preliminar, é procedente a declaração de inconstitucionalidade.

                   A questão a ser examinada no presente incidente resolve-se na discussão a respeito da inconstitucionalidade da imposição legal de doação de fração de gleba ao poder público municipal, como condição indispensável para a autorização do desdobro do imóvel.

                   É manifestamente inconstitucional a exigência de doação de fração do terreno ao Município como condição prévia ao deferimento do ato de desmembramento do imóvel, prevista no art. 103, antes transcrito.

         E a razão para tal conclusão é objetiva, qual seja, que ao prever tal condição, o legislador municipal criou, ainda que de forma disfarçada, uma hipótese de expropriação forçada ou confisco, não previstos nem na Constituição nem na legislação federal.

                   Recorde-se, por primeiro, que a Constituição garante o direito de propriedade, estabelecendo que a desapropriação depende da tipificação, em lei, dos casos em que poderá ocorrer, bem como do respectivo procedimento (art. 5º, XXII e XXIV, Constituição).

                   Por outro lado, compete privativamente ao legislador federal legislar a respeito da desapropriação, bem como do direito processual, no qual se insere, obviamente, a regulamentação do processo de desapropriação (art. 22, I e II, Constituição).

                   Não menos importante lembrar que mesmo que se enxergasse, na hipótese, situação de desapropriação em benefício da função social da propriedade, seria necessário que ela ocorresse mediante o cumprimento dos requisitos para tanto, estabelecidos na própria Constituição Federal, bem como através do processo especificamente destinado a tal fim, previsto em lei igualmente federal (arts. 182, § 4º, III, e 184, caput, e § 3º, Constituição).

                   Acrescente-se finalmente que, na perspectiva em que foi tratada a matéria, revela-se que o legislador municipal invadiu a esfera da legislação a respeito do direito urbanístico, que compete, de forma concorrente, ao legislador federal e ao legislador estadual (art. 24, I, Constituição).

                   Por tais motivos, mostra-se evidentemente inconstitucional a imposição prevista na legislação municipal.

                   Esta é a orientação deste colendo Órgão Especial do Tribunal de Justiça, como se constata do seguinte julgado:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Lei Complementar nº 111, de 25 de julho de 2006, do Município de Santa Fé do Sul, que alterou a redação anterior do Plano Diretor, impondo novas condições para aprovação de projetos de parcelamento do solo - Legislação que regulou matéria atinente ao direito urbanístico, acerca da qual compete apenas à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar, na forma estabelecida no artigo 24, inciso I, da Carta Magna - Eventual suplementação da norma federal pelo Município, com esteio no art. 30, incisos I e II, da CF, que deveria ficar restrita às questões de manifesto interesse local, sem estender-se em regras gerais, afetas apenas à competência legislativa da União - Tema, ademais, que já havia sido inteiramente regulado na Lei Federal nº 6.766/79, impedindo a edição de ato normativo em sentido contrário pelo ente público local - Invasão de competência legislativa de outros entes federados pelo Município que restou, portanto, evidenciada - Ato normativo questionado que, ainda, impôs a doação de percentual do loteamento ao Município, como condição à aprovação do projeto, exigência não contida no art. 4º, inciso I, da Lei Federal nº 6.766/79, criando espécie anômala de desapropriação, não prevista no ordenamento jurídico pátrio, em desconsideração ao direito de propriedade - Inexistência, também, de pertinência entre a exigência legal contestada e o interesse público envolvido (ordenação do espaço urbano), pois a obrigação de ‘doação’ de percentual da área dos loteamentos ao Município não importa em benefícios aos moradores locais, o que evidencia, igualmente, violação aos princípios que devem reger a atuação da Administração, insculpidos no art. 111 da Carta Estadual, especialmente os da legalidade, razoabilidade, finalidade e interesse público - Áreas recebidas pelo Município em razão da legislação ora questionada que foram objeto de dezenas de alienações públicas, desde a vigência do ato normativo, no ano de 2006, em negócios que atingiram valor substancial envolveram terceiros de boa-fé, não se mostrando razoável e nem recomendando a desconstituição dessas transações - Presença, destarte, de razões de segurança jurídica na espécie que recomenda a modulação dos efeitos da presente declaração de inconstitucionalidade, a partir da concessão da medida liminar nestes autos, por aplicação da regra contida no art. 27 da Lei Federal nº 9868/99 - Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, com modulação dos efeitos” (TJSP, ADI 0128604-28.2013.8.26.0000, Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, 14-05-2014).

                   Face ao exposto, opino pelo não conhecimento e, se superada a preliminar, pela procedência da declaração de inconstitucionalidade.

                   São Paulo, 07 de abril de 2016.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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