Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0020081-48.2015.8.26.0000

Suscitante: 15ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

Ementa:

1.      Constitucional e Tributário. ISSQN. Tomador de serviços de administradoras de cartões de débito e/ou crédito. Decreto Municipal que lhe impõe as obrigações tributárias acessórias de prestar declaração eletrônica das operações realizadas e de reter o imposto incidente sobre os serviços contratados na qualidade de substituto tributário. Arguição que não comporta admissibilidade. No mérito, inconstitucionalidade reconhecida.

2.      Decreto não autônomo que extrai sua legitimidade do art. 6º da Lei Complementar Federal nº 116/03 e do art. 88 da Lei Complementar Municipal nº 574/10. Questão sobre o lugar de cumprimento da obrigação tributária - nas hipóteses de incidência do ISSQN sobre operações de cartões de crédito ou débito – não regulada pelo art. 3º da Lei Complementar Federal nº 116/03. Inconstitucionalidade reflexa. Matéria de fato que deve ser dirimida pela C. Câmara Julgadora. Parecer que, em preliminar, opina pelo não acolhimento do incidente.

3.      Ineficácia do ato normativo que impõe obrigação inexequível. Constrangimento ilegal decorrente de sanção imposta por seu descumprimento e ofensa ao princípio da razoabilidade (CF, art. 5º, II e CE, art. 111).

4.      Inconstitucionalidade de Decreto Municipal que, à guisa de exercer o poder regulamentar de dispor sobre substituição tributária outorgado por leis complementares federal e municipal, extrapola os limites desse poder legiferante ao dispor, indiretamente, sobre o sujeito ativo e o lugar de cumprimento da obrigação tributária, relativamente ao ISSQN incidente sobre operações realizadas com cartões de crédito ou débito, matéria reservada à lei federal (CF, art. 146).

5.      Conflito de competência tributária entre o Município sede da administradora do cartão e o do estabelecimento comercial do tomador de seu serviço que não pode ser dirimido por Decreto Municipal autônomo. Inconstitucionalidade por vício de forma e iniciativa.

6.      Exação tributária indireta, ilegitimamente instituída pelo Município de Estância Balneária de Praia Grande, por Decreto, em seu favor, pela via oblíqua da regulamentação do sujeito ativo e do lugar de cumprimento da obrigação tributária, em detrimento de tomador de serviço de administradora de cartão de débito e/ou crédito.

7.      Parecer que, no mérito, opina pela declaração da inconstitucionalidade do Decreto Municipal nº 5.111/2012.

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

No julgamento de Apelação nº 0003676-29.2013.8.26.047 da Comarca de Praia Grande, a C. 15ª Câmara de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo suscitou a instauração do presente incidente, determinando a remessa dos autos ao Excelso Órgão Especial, para apreciação da inconstitucionalidade incidentalmente do Decreto Municipal nº 5.111, de 4 de maio de 2012, cujos arts. 1º, 2º e 5º assim dispõem:

"Art. 1º. Todos os tomadores de serviços, das administradoras de cartões de débito e /ou crédito, pessoas jurídicas ou físicas que estiverem inscritas no cadastro mobiliário deste município, ficam obrigadas a realizarem mensalmente as declarações eletrônicas dos serviços contratados desta natureza.

"Art. 2º. Para os efeitos deste Decreto, considera-se administradora de cartões de débito e/ou crédito, a pessoa jurídica responsável pela administração da rede de estabelecimentos credenciados, assim como pela captura e transmissão das transações eletrônicas realizadas com cartões de crédito e/ou débito.

(...)

"Art. 5º. Nos termos do artigo 88 da Lei Complementar nº 574, de 17 de novembro de 2010, são consideradas como substitutas tributárias do ISSQN, incidente sobre as operações realizadas pelas administradoras de cartões de débito e/ou crédito no município de Praia Grande, todas as pessoas jurídicas tomadoras dos referidos serviços, excetuando-se desta obrigação aquelas que se enquadrem como EPP, ME, MEI ou profissional liberal."

O art. 88 da Lei Complementar Municipal nº 574/2010, a que alude a lei, ao seu turno, prescreve:

"Art. 88. A pessoa jurídica de qualquer natureza, ou a ela equiparada, ainda que imune ou isenta, que utilizar serviços prestados por firmas inscritas na repartição fiscal competente ou de firmas ou profissionais liberais e autônomos não inscritos na repartição fiscal competente, é considerada substituta tributária e responsável pela retenção na fonte do imposto sobre serviços, efetuando seu recolhimento dentro do prazo regulamentar, exceto quando:

I - tomar serviços prestados por instituições bancárias;

II - estiver classificada no regime de microempresa e empresa de pequeno porte.

§ 1º. Os contribuintes classificados no regime de microempresa e empresa de pequeno porte somente estarão obrigados a realizar a retenção na fonte, quando o prestador estiver localizado em outro município e o serviço for executado dentro dos limites do Município de Praia Grande.

§ 2º. Para efeitos desta Lei Complementar, os substitutos tributários equiparam-se aos contribuintes do imposto no que tange às obrigações principal e acessória.

§ 3º. Independentemente da retenção do imposto na fonte a que se refere este artigo, fica o responsável tributário obrigado a recolher o imposto integral, multa e demais acréscimos legais, na conformidade da legislação, eximida, neste caso, a responsabilidade do prestador de serviços.

§ 4º. O disposto neste artigo não exclui o direito do Município de exigir do contribuinte o imposto eventualmente não retido na fonte ou a complementação do valor do imposto quando for retida quantia inferior ao montante devido.

§ 5º. O prazo para recolhimento será até o dia 15 (quinze) do mês seguinte ao vencido.

§ 6º. Para fins de contratação dos serviços elencados neste artigo, deverá ser consultado o Departamento da Receita desta Municipalidade sobre a situação fiscal do prestador do serviço.

§ 7º. Ficam os contribuintes dos tributos mobiliários, bem como os responsáveis tributários, obrigados a franquear o acesso da Fiscalização Tributária Municipal a quaisquer impressos, documentos, papéis, livros, declarações de dados, programas e arquivos magnéticos ou eletrônicos, armazenados por qualquer meio, de natureza contábil ou fiscal."

Como se vê, o Decreto Municipal nº 5.111, de 4 de maio de 2012, cuja inconstitucionalidade se argui, estendeu a obrigação tributária acessória prevista no art. 88 da Lei Complementar Municipal nº 574/2010 aos tomadores de serviços das administradoras de cartões de débito e/ou crédito, além de lhes impor a obrigação de prestar declarações eletrônicas mensais das operações realizadas.

O v. acórdão está assim ementado (fls. 293/297):

“ISS - MANDADO DE SEGURANÇA - Municipalidade de Praia Grande - Exigibilidade em face de empresa que exerce o comércio varejista de roupas, acessórios, calçados etc, na qualidade de substituto tributário de administradoras de cartões de crédito - Alegação de inconstitucionalidade do Decreto Municipal nº 5.111/2012 de Praia Grande que instituiu a obrigatoriedade para os tomadores de serviços das Administradoras de Cartões de Débito e/ou Crédito, de realizarem as respectivas declarações eletrônicas no sistema "ISS.net", bem como regulamenta a substituição tributária quando ao recolhimento do ISSQN, incidente nas operações realizadas, no âmbito do Município de Praia Grande - Hipótese que viola o permissivo constitucional - Súmula vinculante 10 do STF - Suspensão do julgamento, com a remessa dos autos ao E. Órgão Especial."

Em primeira instância, o MM. Juiz de Direito da Vara da Fazenda Pública da Comarca de Praia Grande denegou a segurança pleiteada pela AFK CALÇADOS LTDA., convencido da "competência do Município de Praia Grande para instituir e obter o recolhimento do tributo, bem como que a Impetrante é sim a substituta tributária e como tal deve mesmo pagar o tributo devido" (r. sentença a fls. 191/196). A r. sentença foi declarada, para que constasse o local da prestação do serviço como sendo o do lugar onde a máquina do cartão de crédito ou débito está instalada e que a Impetrante deveria arcar com o pagamento do imposto como substituto tributário (fls. 205/206).

A AFK CALÇADOS LTDA. apelou e, em razões instrumentalizadas a fls. 213/236, alegou que: i) a exigência é ilegítima, porque o lugar da prestação do serviço é o da sede da administradora do cartão; ii) o Decreto Municipal nº 5.111/2012 é inconstitucional, porque invade a competência tributária de outros municípios; iii) é impossível o cumprimento da obrigação pela Impetrante, porque esta recebe e não repassa valores, pelo que não tem como retê-los; iv) a exigência é abusiva e ilegal porque a Impetrante é quem arcará com as consequências econômicas da exação.

 

Em contrarrazões de apelação (fls. 272/284), a Prefeitura Municipal de Praia Grande contra-argumentou: i) O art. 4º da Lei Complementar Federal nº 116/03 (que dispõe sobre o ISSQN) considera como sendo estabelecimento prestador do serviço "O local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utlizadas"; ii) O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que o Município competente para realizar a cobrança do ISS é aquele onde se realizou a efetiva prestação dos serviços, pois é nele que ocorreu o fato gerador do imposto; iii) é irrelevante a circunstância da prestadora possuir sede ou filial fora do Município de Praia Grande; iv) a notificação levada a cabo pela Administração Pública é corolário do exercício do direito de fiscalizar e cobrar impostos.

O recurso começou a ser analisado, mas a conclusão no sentido da inconstitucionalidade levou à instauração do presente incidente.

É o relatório.

Preliminarmente, a arguição de inconstitucionalidade não comporta admissibilidade.

Quanto ao mérito, a inconstitucionalidade do Decreto Municipal nº 5.111, de 4 de maio de 2012, é manifesta e, pois, merece ser declarada.

Para melhor compreensão da questão, algumas considerações preambulares são úteis.

1) Preâmbulo

Na vigência do Decreto-lei nº 406/68 discutia-se a legitimidade da incidência do ISS sobre os serviços prestados pelas administradoras de cartões, em razão da falta de previsão taxativa do serviço em seu anexo.

Na ocasião firmou-se entendimento no Superior Tribunal de Justiça no sentido da não incidência do ISS sobre os serviços prestados pelas empresas administradoras de cartão de crédito, tendo em vista que as atividades de emissão e administração de cartões não integravam a lista de serviços anexa ao Decreto-lei nº 406/68 (REsp nº 439432/RJ, relatado pelo Min. João Otávio de Noronha, 2ª Turma, j. em 03/08/2006, DJ de 18/08/2006, p. 363; REsp nº 1170222/RJ, relatado pelo Min. Benedito Gonçálves, 1ª Turma, j. em 15.03.2011, DJe de 24/03/2011; AgRg no REsp 1285895/PR, relatado pelo Min. Humberto Martins, 2ª Turma, j. em 01/12/2011, DJe de 07/12/2011).

A Lei Complementar Federal nº 116/03 suprimiu a omissão, ao prever no item 15.01 do anexo o serviço em questão, possibilitando, a partir de então, a cobrança do ISSQN sobre os serviços prestados pelas administradoras de cartões.

Mais adiante, firmou-se naquele Sodalício orientação segura no sentido de que o ISSQN era devido ao Município do lugar da efetiva prestação do serviço, conforme pertinente jurisprudência trazida à colação pela Prefeitura Municipal de Estância de Praia Grande.

Ocorre que em se tratando de serviços prestados pelas administradoras de cartões de crédito e/ou débito, há grande dificuldade de se compreender a complexidade da operação e, consequentemente, de se definir o lugar da efetiva prestação do serviço.

Em elucidativo estudo apresentado por Hernani Zanin Junior e Philippe Gail, recentemente divulgado pela web sob o título "Municípios erram ao tentar tributar ISS sobre operação de cartão", advogando que "Não há nenhuma ilegalidade no fato de as instituições financeiras criarem empresas administradoras de cartões de crédito, com sede em municípios com benesses fiscais, desde que seja nesse município com legislação tributária vantajosa que efetivamente o núcleo do tipo tributário se consume (no caso: "administrar cartões de crédito"),  os autores concluem:

"Em suma, os serviços de "captura de transmissão de dados" prestados pelas credenciadoras (item 17.01), pelos quais elas recebem a comissão (também denominada como taxa de administração), são tributáveis no local onde se consumam as condições necessárias e suficientes à ocorrência desses fatos imponíveis (artigos 114 e 116, inciso I, CTN), ou seja, no município onde o usuário do cartão o utiliza nos "pontos de venda" da empresa credenciadora. Quanto ao serviço de "administração de cartões de crédito", igualmente tipificado no item 15.01 da lista de serviços da LC 116/03, concluíamos, sob a mesma base de raciocínio, que essa administração se consuma nos domicílios bancários dos usuários dos cartões de débito. Por fim, no que pertine à "administração de cartões de crédito", igualmente tipificada no item 15.01 da supracitada lista, é possível afirmar com convicção que o fato jurídico tributário ocorre no local onde a administradora tem sua estrutura apta a administrar esses cartões de crédito, o que em regra fica nas sedes das administradoras."

 Mesmo que assim não se entenda, denuncia o vácuo legislativo a tramitação de projetos de lei que alteram a Lei Complementar nº 116/03, de modo a definir o local da cobrança do ISSQN incidente sobre serviços relativos a cartão de crédito e débito (PLS 414/2012 e PLC 34/11).

Lê-se da exposição de motivos do PLS 414/212:

"A determinação do sujeito ativo do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) é um problema que a Lei Complementar (LCP) nº 116, de 31 de julho de 2003, não conseguiu resolver integralmente. Especificamente em relação à prestação dos diversos serviços inerentes à operação com cartões de crédito e débito, a fórmula atual é injusta, uma vez que propicia a concentração da arrecadação em poucos municípios, onde se estabeleceram as principais credenciadoras, a fim de usufruir das baixas alíquotas oferecidas. A nossa proposta visa a corrigir a distorção" (Senador Cidinho Santos).

 

2) Preliminarmente

A arguição não comporta admissibilidade.

A Lei Complementar Federal nº 116/03, que regulamenta o ISSQN, em seu art. 6º, autoriza o Município a legislar sobre substituição tributária.

A Lei nº 574/10 (Código Tributário do Município), de igual modo, autoriza a substituição tributária quanto aos tributos municipais incidentes sobre serviços (art. 88).

 No tocante ao ISSQN incidente nas operações de cartões de débito e/ou crédito realizadas no Município de Praia Grande, a substituição tributária foi disciplinada pelo Decreto nº 5.111/2012, cuja constitucionalidade é ora arguida.

Como se vê, não se cuida de Decreto autônomo, na medida em que extrai sua legitimidade da lei, podendo-se, por conseguinte, cogitar somente de ilegalidade ou inconstitucionalidade reflexa.

 

A questão posta à apreciação deste C. Órgão Especial diz respeito ao lugar de cumprimento da obrigação tributária, que não foi especificamente regulada pelo art. 3º da Lei Complementar Federal nº 116/03 no que se refere às operações de cartões de crédito ou débito.  

Trata-se de matéria de fato, cuja apreciação escapa da competência funcional deste C. Órgão Especial, na medida em que deve ser dirimida pela C. Câmara Julgadora, a quem compete julgar eventual ilegalidade ou o reconhecimento da inconstitucionalidade reflexa.

Logo, o incidente não comporta acolhida.

 

3) Mérito

Quanto ao mérito, quer se entenda que o Decreto não seja autônomo, quer se entenda tratar-se de Decreto autônomo, a conclusão pela inconstitucionalidade é a mesma.

Inicialmente cumpre reconhecer que a obrigação é inexequível, porque a pessoa jurídica a quem o Decreto impõe a obrigação de retenção e repasse não detém o valor do serviço ou produto, que é pago à administradora do cartão.

No primeiro caso, não sendo autônomo o Decreto, na medida em que extrai sua legitimidade do art. 6º da Lei Complementar Federal nº 116/03 e do art. 88 da Lei Complementar Municipal nº 574/10, ao impor obrigação inexequível ao tomador de serviços de administradoras de cartões de crédito ou débito, ofende o princípio da razoabilidade, previsto no art. 111 da Constituição Bandeirante. 

 

Em adição, a imposição de sanção pelo descumprimento de obrigação inexequível configura constrangimento ilegal - em razão da ineficácia do ato normativo que a prescreve – e, assim, viola o art. 5º, inc. II, da Constituição Federal.

Portanto, impende o reconhecimento da inconstitucionalidade do Decreto Municipal nº 5.111/2012, por ofensa ao art. 111 da Constituição Estadual e ao art. 5º, inc. II, da Constituição Federal.

De outro modo, mesmo que se entenda que o Decreto cuja constitucionalidade se argui seja autônomo, na parte em que extrapola sua competência normativa, com maior razão se impõe a declaração de sua inconstitucionalidade.

Estampada no preâmbulo a lacuna legislativa, a controvérsia se restringe a saber se a mesma pode ser suprida por Decreto Municipal.

Obviamente ao exigir a retenção e o repasse do imposto, o Município de Estância de Praia Grande reverteu em seu favor valores antes recolhidos a outro Município, de modo a solver, por via oblíqua, conflito de competência em matéria tributária, o que lhe é vedado, além de legislar sobre o sujeito ativo da obrigação tributária.

Ora, o art. 146, I, da CF prevê que cabe à lei complementar dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, de onde concluir pela inconstitucionalidade do Decreto Municipal, seja pela forma seja pela iniciativa (falta de competência do Município para legislar sobre a matéria).

De igual modo, compete à União editar normas gerais de observância obrigatória para todos os entes tributantes, restando a competência suplementar apenas aos Estados e ao Distrito Federal, não porém aos Municípios.

Nesse contexto, dispõe o art. 3º, caput, da Lei Complementar nº 116/03:

"Art. 3º. O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador ou, na fase do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o imposto será devido no local: (...)".

Em suma, a Prefeitura Municipal de Estância de Praia Grande, de modo engenhoso, ao estabelecer obrigação tributária secundária - a de substituição tributária - ao tomador de serviços das administradoras de cartão, avocou-se credora do imposto, resolvendo o conflito de competência tributária, à míngua de positivação.

Como se disse, a iniciativa legiferante é inconstitucional, por falta de competência legislativa, e também pela forma, na medida em que Decreto municipal não constitui espécie normativa legítima à positivação do sujeito ativo ou lugar de cumprimento de obrigação tributária.

De outra parte, ao prescrever a competência tributária dos Municípios, dispõe o art. 156, III, da CF:

"Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

(...)

III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.

(...)"

A lei complementar a que alude o dispositivo constitucional não é "lei complementar municipal", de modo que o art. 88 da Lei Complementar Municipal não se presta a conferir legitimidade ao contestado Decreto nº 5.111/12 para dispor sobre sujeito ativo e lugar de cumprimento de obrigação tributária.

Nesse sentido:

"O ISS é um imposto municipal. É dizer, ao Município competirá institui-lo (CF, art. 156, III). Todavia, está ele jungido à norma de caráter geral, vale dizer, à lei complementar que definirá os serviços tributáveis, lei complementar do Congresso Nacional (CF, art. 156, III) (...) a lei complementar definindo aqueles [serviços] sobre os quais incidirá o ISS, realiza a sua finalidade principal, que é afastar os conflitos de competência, em matéria tributária, entre as pessoas políticas (CF, art. 146, I). E isso ocorre em obséquio ao pacto federativo, princípio fundamental do Estado e da República (CF, art. 1º)." (STF, RE 361.829, voto do Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 13/12/2005, 2ª Turma, DJ de 24/02/2006).

Portanto, a inconstitucionalidade do Decreto nº 5.111/12 é manifesta.

De resto, como se disse alhures, lei não pode impor a alguém obrigação inexequível sob pena de sua ineficácia. Nessa circunstância, a imposição de sanção por seu descumprimento configura constrangimento ilegal (CF, art. 5º, II), sobre ofender o princípio da razoabilidade (CE, art. 111).

Isso porque o tomador dos serviços das administradoras de cartão não detém a disponibilidade dos valores por ele eletronicamente comunicados, que lhe são repassados, com o desconto contratual, pelas administradoras dos cartões, de sorte que a obrigação de retê-los e repassá-los à Municipalidade é inexequível.

Rigorosamente o que se verifica na hipótese dos autos é a implementação de uma exação tributária indireta, ilegitimamente instituída em favor do Município de Estância Balneária de Praia Grande pela via obliqua da criação de obrigação acessória inexequível.

Ainda que se deva concordar com a justificativa das iniciativas parlamentares, sem a aprovação da lei o decreto avulta exorbitante, a recomendar seu expurgo do ordenamento jurídico.

Apesar de a EC 32/2001 ter dado nova redação ao inciso VI do art. 84 da CF, permitindo a edição de decretos autônomos, nas restritas matérias ali enumeradas, em se tratando de matéria especificamente tributária, a utilização do decreto autônomo continua vedada.

Assim, ainda são inteiramente aplicáveis aos decretos as restrições decorrentes da interpretação conjunta do art. 99 do CTN e do art. 84, IV, da CF.

Acrescente-se que a exigibilidade imposta pelo Decreto Municipal, de obrigação tributária acessória não delineada na lei complementar federal instituidora do tributo, configura indevida transposição dos limites do poder de tributar e ofensa ao princípio da legalidade (CF, art. 146, II).

Portanto, a inconstitucionalidade do Decreto nº 5.111/12  há que ser declarada.

 

4) Conclusão

Ante o exposto, nosso parecer é no sentido do não conhecimento do incidente e, quanto ao mérito, pela sua procedência, para que seja declarada a inconstitucionalidade do Decreto nº 5.111, de 4 de maio de 2012, do Município de Estância de Praia Grande.

 

       

São Paulo, 23 de abril de 2015.

 

 

        NILO SPINOLA SALGADO FILHO

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

 

 

 

 

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