Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0020174-45.2014.8.26.0000

Suscitante: 13ª Câmara de Direito Público

 

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Incidente de Inconstitucionalidade. expressão “pagamentos referentes a contrato” da Lei Municipal n. 14.094/05 do Município de São Paulo. Impedimento de pagamentos de crédito aqueles que estão inscritos no cadin Municipal. Ofensa aos princípios de razoabilidade, da proporcionalidade e do devido processo legal. Procedência. Ao vedar o pagamento de valores devidos, em razão de imóvel locado pela Prefeitura Municipal de São Paulo em razão de contrato, a pessoas com débito inscrito no CADIN (Cadastro Informativo dos Créditos não Quitados de Órgãos e Entidades Estaduais), a expressão “pagamentos referentes a contratos”, constante do inciso II do art. 3º, da Lei Municipal n. 14.094/05, de São Paulo, ofende a razoabilidade, a proporcionalidade e o devido legal, pois, implica meio coercitivo indireto de satisfação de créditos municipais.

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

         Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela colenda 13ª Câmara de Direito Público no julgamento de apelações contrariando respeitável sentença que julgou procedente ação declaratória com pedido de antecipação de tutela ajuizada por proprietários de imóvel locado para a Prefeitura Municipal de São Paulo, objetivando que a Autarquia Hospitalar Municipal se abstenha de reter alugueres, liberando os já retidos, ou que subsidiariamente a retenção seja limitada ao valor das dívidas apontadas no CADIN.

 

         O venerando acórdão que aponta a referida expressão como cerceadora do exercício do direito de defesa e contrária ao teor das Súmulas 70, 323 e 547 do Supremo Tribunal Federal, está assim ementado:

 

“DECLARATÓRIA – INAPLICABILIDADE DE LEI MUNICIPAL QUE IMPEDE O PAGAMENTO DE CRÉDITOS AQUELES QUE ESTÃO INSCRITOS NO CADIN MUNICIPAL – INCONSTITUCIONALIDADE DA EXPRESSÃO “PAGAMENTOS REFERENTES A CONTRATO” CONTIDA NO INCISO II DO ART. 3º DA LEI MUNICIPAL N. 14.094/05 – COMPETÊNCIA PARA A DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI DO ÓRGÃO ESPECIAL- INCIDENTE QUE SE IMPÕE HAJA VISTA O CONTIDO NAS SÚMULAS 70, 323 E 547 DO STF E EM PRECEDENTE DO ÓRGÃO ESPECIAL DESTA CORTE-INTELIGÊNCIA DO ART. 97 DA CF E DA SÚMULA VINCULANTE N. 10 – REMESSA DOS AUTOS AO ÓRGÃO ESPECIAL DESTA CORTE” (fl.442)

 

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         É o relatório.

 

         A Lei n. 14.094, de 06 de dezembro de 2005, do Município de São Paulo, regulamentada pelo Decreto n. 47.096, de 21 de março de 2006, criou o Cadastro Informativo Municipal – Cadin Municipal, que contém as pendências de pessoas físicas e jurídicas perante os órgãos e entidades da Administração Pública Direta e Indireta do Município de São Paulo.

 

         Com efeito, o art. 3º da referida lei apresenta a seguinte redação:

 

“Artigo 3º - A existência de registro no Cadin Municipal impede os órgãos e entidades da Administração Municipal de realizarem os seguintes atos, com relação às pessoas físicas e jurídicas a que se refere:

I- celebração de convênios, acordos, ajustes ou contratos que envolvam o desembolso, a qualquer título, de recursos financeiros;

II- repasses de valores de convênios ou pagamentos referentes a contratos; (grifei)

III- concessão de auxílio e subvenções;

IV- concessão de incentivos fiscais e financeiros.

Parágrafo único. O disposto nesse artigo não se aplica às operações destinadas à composição e regularização das obrigações e deveres objeto de registro no Cadin Municipal, sem desembolso de recursos por parte do órgão ou entidade credora”.

 

         O cerne da questão é a interpretação da expressão “pagamentos referentes a contratos”, constante do inciso II do art. 3º, II, da Lei n. 14.094/05, do Município de São Paulo, sob o enfoque das Súmulas 70, 323 e 547 do Supremo Tribunal Federal e da garantia do devido processo legal (art. 5º, LIV, Constituição Federal), pois, a inscrição no cadastro é impeditiva de pagamentos referentes a contratos firmados com a Administração Direta e Indireta.

 

         Não parece razoável nem proporcional que o devedor com registro no CADIN seja impedido de receber pagamentos devidos em razão de locação de imóvel pela Prefeitura Municipal de São Paulo, o que já foi repelido pelas Súmulas 70, 323 e 547 do Supremo Tribunal Federal, dado que o poder público tem meios para haver seus créditos e raciocínio contrário premiaria o locupletamento ilícito.

        

         Calha a invocação da jurisprudência em caso análogo:

        

“SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO. INADMISSIBILIDADE DA UTILIZAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DE MEIOS GRAVOSOS E INDIRETOS DE COERÇÃO ESTATAL DESTINADOS A COMPELIR O CONTRIBUINTE INADIMPLENTE A PAGAR O TRIBUTO (SÚMULAS 70, 323 E 547 DO STF). RESTRIÇÕES ESTATAIS, QUE, FUNDADAS EM EXIGÊNCIAS QUE TRANSGRIDEM OS POSTULADOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO, CULMINAM POR INVIABILIZAR, SEM JUSTO FUNDAMENTO, O EXERCÍCIO, PELO SUJEITO PASSIVO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA, DE ATIVIDADE ECONÔMICA OU PROFISSIONAL LÍCITA. LIMITAÇÕES ARBITRÁRIAS QUE NÃO PODEM SER IMPOSTAS PELO ESTADO AO CONTRIBUINTE EM DÉBITO, SOB PENA DE OFENSA AO ‘SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW’. IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE O ESTADO LEGISLAR DE MODO ABUSIVO OU IMODERADO (RTJ 160/140-141 - RTJ 173/807-808 - RTJ 178/22-24). O PODER DE TRIBUTAR - QUE ENCONTRA LIMITAÇÕES ESSENCIAIS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL, INSTITUÍDAS EM FAVOR DO CONTRIBUINTE – ‘NÃO PODE CHEGAR À DESMEDIDA DO PODER DE DESTRUIR’ (MIN. OROSIMBO NONATO, RDA 34/132). A PRERROGATIVA ESTATAL DE TRIBUTAR TRADUZ PODER CUJO EXERCÍCIO NÃO PODE COMPROMETER A LIBERDADE DE TRABALHO, DE COMÉRCIO E DE INDÚSTRIA DO CONTRIBUINTE. A SIGNIFICAÇÃO TUTELAR, EM NOSSO SISTEMA JURÍDICO, DO ‘ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO CONTRIBUINTE’. DOUTRINA. PRECEDENTES. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. DECISÃO: O litígio em causa envolve discussão em torno da possibilidade constitucional de o Poder Público impor restrições, ainda que fundadas em lei, destinadas a compelir o contribuinte inadimplente a pagar o tributo e que culminam, quase sempre, em decorrência do caráter gravoso e indireto da coerção utilizada pelo Estado, por inviabilizar o exercício, pela empresa devedora, de atividade econômica lícita. No caso ora em análise, põe-se em destaque o exame da legitimidade constitucional de exigência estatal que erigiu a prévia satisfação de débito tributário em requisito necessário à outorga, pelo Poder Público, de autorização para a impressão de documentos fiscais. A E. Presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao admitir o recurso extraordinário interposto pela empresa ora requerente, ressaltou, de modo bastante expressivo, esse aspecto da controvérsia (fls. 272): ‘Mesmo a v. decisão recorrida tendo consignado que o exercício de atividades mercantis e profissionais está condicionado a disposições da legislação ordinária, o que não se contesta, ao entender legítima a exigência de garantias para a autorização de impressão de documentos fiscais coibiu o livre exercício dessas atividades, que poderiam, inclusive, garantir ao contribuinte meios para saldar o débito com a Fazenda Pública. A exigência do Estado, de condicionar a autorização para impressão de notas fiscais ao pagamento dos tributos e/ou prestação de fiança, confronta com as Súmulas nºs 70, 323 e 547 do STF, que proclamam não ser admissível coagir o devedor ao pagamento do tributo devido, modo indireto, atingindo seu livre exercício de atividade lícita, quando previstos mecanismos próprios para a cobrança do crédito da Fazenda...’. (grifei) Cabe acentuar, neste ponto, que o Supremo Tribunal Federal, tendo presentes os postulados constitucionais que asseguram a livre prática de atividades econômicas lícitas (CF, art. 170, parágrafo único), de um lado, e a liberdade de exercício profissional (CF, art. 5º, XIII), de outro - e considerando, ainda, que o Poder Público dispõe de meios legítimos que lhe permitem tornar efetivos os créditos tributários -, firmou orientação jurisprudencial, hoje consubstanciada em enunciados sumulares (Súmulas 70, 323 e 547), no sentido de que a imposição, pela autoridade fiscal, de restrições de índole punitiva, quando motivada tal limitação pela mera inadimplência do contribuinte, revela-se contrária às liberdades públicas ora referidas (RTJ 125/395, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI). Esse entendimento - cumpre enfatizar - tem sido observado em sucessivos julgamentos proferidos por esta Suprema Corte, quer sob a égide do anterior regime constitucional, quer em face da vigente Constituição da República (RTJ 33/99, Rel. Min. EVANDRO LINS - RTJ 45/859, Rel. Min. THOMPSON FLORES - RTJ 47/327, Rel. Min. ADAUCTO CARDOSO - RTJ 73/821, Rel. Min. LEITÃO DE ABREU - RTJ 100/1091, Rel. Min. DJACI FALCÃO - RTJ 111/1307, Rel. Min. MOREIRA ALVES - RTJ 115/1439, Rel. Min. OSCAR CORREA - RTJ 138/847, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - RTJ 177/961, Rel. Min. MOREIRA ALVES - RE 111.042/SP, Rel. Min. CARLOS MADEIRA, v.g.): "CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICMS: REGIME ESPECIAL. RESTRIÇÕES DE CARÁTER PUNITIVO. LIBERDADE DE TRABALHO. CF/67, art. 153, § 23; CF/88, art. 5º, XIII. I. - Regime especial de ICM, autorizado em lei estadual: restrições e limitações, nele constantes, à atividade comercial do contribuinte, ofensivas à garantia constitucional da liberdade de trabalho (CF/67, art. 153, § 23; CF/88, art. 5º, XIII), constituindo forma oblíqua de cobrança do tributo, assim execução política, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sempre repeliu (Súmulas nºs 70, 323 e 547). II. - Precedente do STF: ERE 115.452-SP, Velloso, Plenário, 04.l0.90, 'DJ' de 16.11.90. III. - RE não admitido. Agravo não provido." (RE 216.983-AgR/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - grifei) É certo - consoante adverte a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal - que não se reveste de natureza absoluta a liberdade de atividade empresarial, econômica ou profissional, eis que inexistem, em nosso sistema jurídico, direitos e garantias impregnados de caráter absoluto: ‘OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.’ (RTJ 173/807-808, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) A circunstância de não se revelarem absolutos os direitos e garantias individuais proclamados no texto constitucional não significa que a Administração Tributária possa frustrar o exercício da atividade empresarial ou profissional do contribuinte, impondo-lhe exigências gravosas, que, não obstante as prerrogativas extraordinárias que (já) garantem o crédito tributário, visem, em última análise, a constranger o devedor a satisfazer débitos fiscais que sobre ele incidam. O fato irrecusável, nesta matéria, como já evidenciado pela própria jurisprudência desta Suprema Corte, é que o Estado não pode valer-se de meios indiretos de coerção, convertendo-os em instrumentos de acertamento da relação tributária, para, em função deles - e mediante interdição ou grave restrição ao exercício da atividade empresarial, econômica ou profissional - constranger o contribuinte a adimplir obrigações fiscais eventualmente em atraso. Esse comportamento estatal - porque arbitrário e inadmissível - também tem sido igualmente censurado por autorizado magistério doutrinário (HUGO DE BRITO MACHADO, ‘Sanções Políticas no Direito Tributário’, in Revista Dialética de Direito Tributário nº 30, p. 46/47): ‘Em Direito Tributário a expressão sanções políticas corresponde a restrições ou proibições impostas ao contribuinte, como forma indireta de obrigá-lo ao pagamento do tributo, tais como a interdição do estabelecimento, a apreensão de mercadorias, o regime especial de fiscalização, entre outras. Qualquer que seja a restrição que implique cerceamento da liberdade de exercer atividade lícita é inconstitucional, porque contraria o disposto nos artigos 5º, inciso XIII, e 170, parágrafo único, do Estatuto Maior do País. São exemplos mais comuns de sanções políticas a apreensão de mercadorias sem que a presença física destas seja necessária para a comprovação do que o fisco aponta como ilícito; o denominado regime especial de fiscalização; a recusa de autorização para imprimir notas fiscais; a inscrição em cadastro de inadimplentes com as restrições daí decorrentes; a recusa de certidão negativa de débito quando não existe lançamento consumado contra o contribuinte; a suspensão e até o cancelamento da inscrição do contribuinte no respectivo cadastro, entre muitos outros. Todas essas práticas são flagrantemente inconstitucionais, entre outras razões, porque: a) implicam indevida restrição ao direito de exercer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, assegurado pelo art. 170, parágrafo único, da vigente Constituição Federal; e b) configuram cobrança sem o devido processo legal, com grave violação do direito de defesa do contribuinte, porque a autoridade que a este impõe a restrição não é a autoridade competente para apreciar se a exigência é ou não legal.’ (grifei) Cabe referir, a propósito da controvérsia suscitada no recurso extraordinário em questão - recusa de autorização estatal para impressão de notas fiscais -, a lição de EDISON FREITAS DE SIQUEIRA, em obra monográfica que versou o tema das chamadas ‘sanções políticas’ impostas ao contribuinte inadimplente (‘Débito Fiscal - análise crítica e sanções políticas’, p. 61/62, item 2.3, 2001, Sulina): ‘Portanto, emerge incontroverso o fato de que uma empresa, para que possa exercer suas atividades, necessita de sua inscrição estadual, bem como de permanente autorização da expedição de notas fiscais, sendo necessário obter nas Secretarias da Fazenda de cada estado da federação onde vendam seus produtos, o respectivo reconhecimento de direito à utilização de sistemas especiais de arrecadação, bem como na transferência de créditos acumulados, além da obtenção da respectiva Autorização para Impressão de Documentos Fiscais (AIDF), em paralelo às notas fiscais. Salienta-se que qualquer ação contrária do Estado, quanto à concessão e reconhecimento dos direitos inerentes às questões no parágrafo anterior referendadas, constitui 'sanção política', medida despótica e própria de ditadores, porque subverte o sistema legal vigente. Nesse sentido, vale tecer algumas considerações do efetivo SIGNIFICADO DA NOTA FISCAL para uma empresa ou profissional que mantenha a atividade lícita 'trabalho', até porque, o instrumento alternativo posto à disposição do contribuinte, notas fiscais avulsas, é situação equivalente à marginalidade, além de tratar-se de meio absolutamente inviável a uma atividade econômica significativa (volumosa). A importância da nota fiscal ou AIDF para o desenvolvimento das atividades comerciais de uma empresa seja ela de indústria ou comércio, decorre do fato de que somente por meio destas é que se torna possível oficializar e documentar operações de circulação de mercadorias, a ponto de que sem essas, a circulação de mercadoria é atividade ilícita, punível, inclusive, com a respectiva apreensão das mesmas. Neste sentido, revela-se, pois, totalmente imprópria à figura da nota fiscal avulsa, solução muito justificada por fiscais de ICMS e Procuradores de Estado em audiências que solicitam ao Poder Judiciário, mas que, na prática, constitui artimanha muito maliciosa que só serve para prejudicar o contribuinte, em circunstância totalmente defesa em lei, como adiante ficará elucidado. Não raro, a fiscalização aponta, como recurso em situações de desagrado ao contribuinte, o uso das chamadas 'notas fiscais avulsas'. Fazem-no, por certo, por desconhecimento de toda a gama de obtusa burocracia que envolve a sua expedição, ou pretendendo iludir os órgãos do Poder Judiciário, caso esses sejam chamados a impor 'poder de controle' contra exacerbação do exercício do poder de tributar, por parte do Poder Executivo.’ (grifei) Cumpre assinalar, por oportuno, que essa percepção do tema, prestigiada pelo saudoso e eminente Ministro ALIOMAR BALEEIRO (‘Direito Tributário Brasileiro’, p. 878/880, item n. 2, 11ª ed., atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi, 1999, Forense), é também compartilhada por autorizado magistério doutrinário que põe em destaque, no exame dessa matéria, o direito do contribuinte ao livre exercício de sua atividade profissional ou econômica, cuja prática legítima - qualificando-se como limitação material ao poder do Estado - inibe a Administração Tributária, em face do postulado que consagra a proibição de excesso (RTJ 176/578-580, Rel. Min. CELSO DE MELLO), de impor, ao contribuinte inadimplente, restrições que configurem meios gravosos e irrazoáveis destinados a constranger, de modo indireto, o devedor a satisfazer o crédito tributário (HUMBERTO BERGMANN ÁVILA, ‘Sistema Constitucional Tributário’, p. 324 e 326, 2004, Saraiva; SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO, ‘Infração Tributária e Sanção’, in ‘Sanções Administrativas Tributárias’, p. 420/444, 432, 2004, Dialética/ICET; HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO, ‘Processo Tributário’, p. 93/95, item n. 2.7, 2004, Atlas; RICARDO LOBO TORRES, ‘Curso de Direito Financeiro e Tributário’, p. 270, item n. 7.1, 1995, Renovar, v.g.). A censura a esse comportamento inconstitucional, quando adotado pelo Poder Público em sede tributária, foi registrada, com extrema propriedade, em precisa lição, por HELENILSON CUNHA PONTES (‘O Princípio da Proporcionalidade e o Direito Tributário’, p. 141/143, item n. 2.3, 2000, Dialética): ‘O princípio da proporcionalidade, em seu aspecto necessidade, torna inconstitucional também grande parte das sanções indiretas ou políticas impostas pelo Estado sobre os sujeitos passivos que se encontrem em estado de impontualidade com os seus deveres tributários. Com efeito, se com a imposição de sanções menos gravosas, e até mais eficazes (como a propositura de medida cautelar fiscal e ação de execução fiscal), pode o Estado realizar o seu direito à percepção da receita pública tributária, nada justifica validamente a imposição de sanções indiretas como a negativa de fornecimento de certidões negativas de débito, ou inscrição em cadastro de devedores, o que resulta em sérias e graves restrições ao exercício da livre iniciativa econômica, que vão da impossibilidade de registrar atos societários nos órgãos do Registro Nacional do Comércio até a proibição de participar de concorrências públicas. O Estado brasileiro, talvez em exemplo único em todo o mundo ocidental, exerce, de forma cada vez mais criativa, o seu poder de estabelecer sanções políticas (ou indiretas), objetivando compelir o sujeito passivo a cumprir o seu dever tributário. Tantas foram as sanções tributárias indiretas criadas pelo Estado brasileiro que deram origem a três Súmulas do Supremo Tribunal Federal. Enfim, sempre que houver a possibilidade de se impor medida menos gravosa à esfera jurídica do indivíduo infrator, cujo efeito seja semelhante àquele decorrente da aplicação de sanção mais limitadora, deve o Estado optar pela primeira, por exigência do princípio da proporcionalidade em seu aspecto necessidade. As sanções tributárias podem revelar-se inconstitucionais, por desatendimento à proporcionalidade em sentido estrito (...), quando a limitação imposta à esfera jurídica dos indivíduos, embora arrimada na busca do alcance de um objetivo protegido pela ordem jurídica, assume uma dimensão que inviabiliza o exercício de outros direitos e garantias individuais, igualmente assegurados pela ordem constitucional. Exemplo de sanção tributária claramente desproporcional em sentido estrito é a interdição de estabelecimento comercial ou industrial motivada pela impontualidade do sujeito passivo tributário relativamente ao cumprimento de seus deveres tributários. Embora contumaz devedor tributário, um sujeito passivo jamais pode ver aniquilado completamente o seu direito à livre iniciativa em razão do descumprimento do dever de recolher os tributos por ele devidos aos cofres públicos. O Estado deve responder à impontualidade do sujeito passivo com o lançamento e a execução céleres dos tributos que entende devidos, jamais com o fechamento da unidade econômica. Neste sentido, revelam-se flagrantemente inconstitucionais as medidas aplicadas, no âmbito federal, em conseqüência da decretação do chamado 'regime especial de fiscalização'. Tais medidas, pela gravidade das limitações que impõem à livre iniciativa econômica, conduzem à completa impossibilidade do exercício desta liberdade, negligenciam, por completo, o verdadeiro papel da fiscalização tributária em um Estado Democrático de Direito e ignoram o entendimento já consolidado do Supremo Tribunal Federal acerca das sanções indiretas em matéria tributária. Esta Corte, aliás, rotineiramente afasta os regimes especiais de fiscalização, por considerá-los verdadeiras sanções indiretas, que se chocam frontalmente com outros princípios constitucionais, notadamente com a liberdade de iniciativa econômica.’ (grifei) É por essa razão que EDUARDO FORTUNATO BIM, em excelente trabalho dedicado ao tema ora em análise (‘A Inconstitucionalidade das Sanções Políticas Tributárias no Estado de Direito: Violação ao 'Substantive Due Process of Law' (Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade)’ in ‘Grandes Questões Atuais do Direito Tributário’, vol. 8/67-92, 83, 2004, Dialética), conclui, com indiscutível acerto, ‘que as sanções indiretas afrontam, de maneira autônoma, cada um dos subprincípios da proporcionalidade, sendo inconstitucionais em um Estado de Direito, por violarem não somente este, mais ainda o 'substantive due process of law’ (grifei). Cabe relembrar, neste ponto, consideradas as referências doutrinárias que venho de expor, a clássica advertência de OROSIMBO NONATO, consubstanciada em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (RE 18.331/SP), em acórdão no qual aquele eminente e saudoso Magistrado acentuou, de forma particularmente expressiva, à maneira do que já o fizera o Chief Justice JOHN MARSHALL, quando do julgamento, em 1819, do célebre caso ‘McCulloch v. Maryland’, que ‘o poder de tributar não pode chegar à desmedida do poder de destruir’ (RF 145/164 - RDA 34/132), eis que - como relembra BILAC PINTO, em conhecida conferência sobre ‘Os Limites do Poder Fiscal do Estado’ (RF 82/547-562, 552) - essa extraordinária prerrogativa estatal traduz, em essência, ‘um poder que somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, de comércio e de indústria e com o direito de propriedade’ (grifei). Daí a necessidade de rememorar, sempre, a função tutelar do Poder Judiciário, investido de competência institucional para neutralizar eventuais abusos das entidades governamentais, que, muitas vezes deslembradas da existência, em nosso sistema jurídico, de um ‘estatuto constitucional do contribuinte’, consubstanciador de direitos e garantias oponíveis ao poder impositivo do Estado (Pet 1.466/PB, Rel. Min. CELSO DE MELLO, in ‘Informativo STF’ nº 125), culminam por asfixiar, arbitrariamente, o sujeito passivo da obrigação tributária, inviabilizando-lhe, injustamente, o exercício de atividades legítimas, o que só faz conferir permanente atualidade às palavras do Justice Oliver Wendell Holmes, Jr. (‘The power to tax is not the power to destroy while this Court sits’), em ‘dictum’ segundo o qual, em livre tradução, ‘o poder de tributar não significa nem envolve o poder de destruir, pelo menos enquanto existir esta Corte Suprema’, proferidas, ainda que como ‘dissenting opinion’, no julgamento, em 1928, do caso ‘Panhandle Oil Co. v. State of Mississippi Ex Rel. Knox’ (277 U.S. 218). Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, em face do conteúdo evidentemente arbitrário da exigência estatal ora questionada na presente sede recursal, o fato de que, especialmente quando se tratar de matéria tributária, impõe-se, ao Estado, no processo de elaboração das leis, a observância do necessário coeficiente de razoabilidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do ‘substantive due process of law’ (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 160/140-141 - RTJ 178/22-24, v.g.): ‘O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador.’ (RTJ 176/578-580, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) Em suma: a prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental, constitucionalmente assegurados ao contribuinte, pois este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos por este editados. A análise dos autos evidencia que o acórdão proferido pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul diverge da orientação prevalecente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, reafirmada em julgamentos recentes emanados desta Suprema Corte (RE 413.782/SC, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Pleno - RE 409.956/RS, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - RE 409.958/RS, Rel. Min. GILMAR MENDES - RE 414.714/RS, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA - RE 424.061/RS, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RE 434.987/RS, Rel. Min. CEZAR PELUSO, v.g.). Sendo assim, e considerando as razões expostas, conheço e dou provimento ao presente recurso extraordinário (CPC, art. 557, § 1º - A), em ordem a conceder o mandado de segurança impetrado pela parte ora recorrente. (...)” (STF, RE 374.981-RS, Rel. Min. Celso de Mello, 28-03-2005, DJ 08-04-2005, p. 82).

“ADMINISTRATIVO- MANDADO DE SEGURANÇA- INSCRIÇÃO NO SIAFI E NO CADIN- LIBERAÇÃO DE VERBAS DE CONVÊNIO- SUPENSÃO – Lei n. 10.552/2002. 1. O Município inadimplente, inscrito como tal no SIAFI e no CADIN, sofre restrições quanto á liberação de verbas públicas oriundas de convênio. 2. Esta Corte, aplicando a legislação posterior à MP 2.176, ou seja, a Lei n. 10.55/02, entende ilegal a imposição de restrições para a liberação de verbas ou para a concretização de transações, pelo fato de estar o ente estatal inadimplente, inscrito como tal no SIAFI e no CADIN (precedentes MS 8. 440/DF e MS 8.117/DF). 3. Mandado de Segurança concedido” (STJ, MS 12.320/DF, 1ª Seção, j. 28.02.2007, DJU 19.03.2007, pág 271, Rel. Mim. ELIANA CALMON)”.

         Neste sentido, já decidiu esse Egrégio Tribunal de Justiça:

 

“ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. Artigo6°, II, §1º, da Lei Estadual n. 12.799/2008, o qual impede repasses de dinheiro público em razão de inscrição no rol de inadimplente do CADIN. Inadmissibilidade. Meio indireto de cobrança de Tributo. Vedação. Arts. 5º, XIII, LIV e 170, parágrafo único da CF/88, Súmulas 547 do STF e 70 e 323 do STJ. Arguição acolhida. Deve ser acolhida a arguição de inconstitucionalidade de lei estadual que abriga meio coercitivo indireto de cobrança de tributos, a ofender os princípios do contraditório, ampla defesa, devido processo legal e liberdade do exercício profissional. (TJSP, 9ª Câmara de Direito Público, Apelação Cível 0047242-44.2010.8. 26.0053, j. 17.10.2012, Rel. o Des. LUIS GANZERLA)”.

  

“Incidente de Inconstitucionalidade do art. 6º, §1º, da Lei Estadual n. 12.799/08. Restrições estatais indevidas. Interpretação do §1º, conforme texto constitucional. Ofensa ao devido processo legal e ao livre exercício da atividade econômica e profissional. Incidente acolhido para o fim de, em interpretação conforme a Constituição, reconhecer a inconstitucionalidade do §1º do art. 6º, da Lei Estadual n. 12.799/08, exclusivamente em relação a expressão “pagamentos referentes a contratos, constante do inciso II do mesmo dispositivo.

 

“CONTRATO ADMINISTRATIVO- Impetração voltada ao afastamento de retenção de pagamentos de medições de serviços prestados e aprovados em sede de contrato administrativo em razão da empresa credora no CADIN Municipal- Concessão da ordem que se impõe- Execução contratual que demanda a respectiva contrapartida pecuniária pelo ente público contratante, sob pena de enriquecimento sem causa da Administração- Restrição imposta pelo art. 3º, inciso II, da Lei Municipal n. 14.094/2005 que se mostra de manifesta ilegalidade, visto que cria espécie anômala de execução de créditos tributários, além de impor obrigação ao contratado não prevista na Lei de Licitações – Ato coator consistente no impedimento de realização dos pagamentos devidos à impetrante, destarte, que não pode prevalecer- Apelo da autora provido para conceder a segurança impetrada, improvidos o reexame necessário, pertinente na espécie, e o recurso da Municipalidade de São Paulo” (TJSP, 8ª Câmara de Direito Público, Apelação Cível 9152970-17.2009.8. 26.0000, j. 26.01.2011, Rel. o Des. PAULO DIMAS MASCARETTI).

 

           Ancorado nestas premissas, a expressão “pagamentos referentes a contrato”, constante do inciso II do art. 3º da Lei n. 14.095/05, do Município de São Paulo padece de inconstitucionalidade, razão pela qual procede a arguição correlata.

 

         São Paulo, 15 de abril de 2014.

 

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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