Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0026644-58.2015.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 18ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Apelante: Município de Limeira

Apelado: (...)

Objeto: inconstitucionalidade do art. 1º e parágrafo único da Lei nº 4.781/11 do Município de Limeira

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Art. 1º e parágrafo único da Lei nº 4.781/11, do Município de Limeira. Alegação de inconstitucionalidade por afronta ao art. 5º e ao art. 150, II, da Constituição Federal.

2)      Exclusão do Programa Especial para Pagamentos de Tributos e outros créditos não tributários, de contribuintes que não estejam em atraso com o parcelamento dos créditos tributários ou não, vencidos e não pagos, inscritos ou não em divida ativa, ajuizados ou não. Violação aos princípios da igualdade (art. 5°, I, da CF) e da isonomia tributária (art. 150, II, da CF), por estabelecer discriminação sem fundamento sério, legítimo e razoável.

3)      Inconstitucionalidade da expressão “e estejam em atraso” do art. 1º e do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 4.781/11 do Município de Limeira. Parecer pelo conhecimento e acolhimento do incidente.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 18ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação cível nº 0022300-83.2011.8.26.0320 da Vara da Fazenda Pública de Limeira, na sessão realizada em 11 de dezembro de 2014, figurando como Relatora a Des. Beatriz Braga.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade do art. 1º e parágrafo único da Lei nº 4.781/11 do Município de Limeira, que exclui do Programa Especial para Pagamentos de Tributos e outros créditos não tributários, contribuintes que não estejam em atraso com o parcelamento dos créditos tributários ou não, vencidos e não pagos, inscritos ou não em divida ativa, ajuizados ou não.

Em conformidade com o v. acórdão (fls. 271/275), a inconstitucionalidade do referido dispositivo decorre de sua contrariedade ao princípio da isonomia, pois, nos termos do voto da relatora:

“(...)

Ora, percebe-se que a Lei comentada estabelece nítida distinção entre contribuintes que possuem débitos para com o Município. É que apenas são beneficiados com a anistia aqueles que possuem parcelamentos com mais de duas parcelas vencidas e não pagas, excluindo, de outra banda, aqueles que parcelaram sua dívida e estão honrando mensalmente o compromisso assumido. Tal situação pode até incentivar o inadimplemento por parte dos contribuintes, prejudicando, inclusive, os interesses do Município.

Com acerto é a constatação do impetrante, que concluiu: “por honrar rigorosamente este parcelamento, não se encontra inadimplente. Eis nosso pecado! Posto que a nova regra somente aceita o reparcelamento com os benefícios recém instituídos (muito mais vantajosos) para aqueles que não cumpriam o ajuste administrativo e se encontram com duas ou mais parcelas já vencidas e não pagas na data de publicação da Lei. Translúcida a mácula ao Princípio da Igualdade” (fls.11).

O argumento do impetrante convence. Em razão disso, ao supor-se que a LC Municipal 4.781/11 contraria princípio constitucional da isonomia, arguiu-se a sua inconstitucionalidade, impondo-se, desta feita, nos termos do art. 97 da CF1 e 480 a 482 do CPC, a submissão da questão ao Órgão Especial deste Tribunal, inclusive por inexistir notícia de anterior pronunciamento deste órgão a respeito (parte final do parágrafo único do art. 481 do CPC).

Com efeito, a limitação contida no artigo 19, Anexo I, do Regulamento do ICMS, aprovado pelo Decreto Estadual nº 45.490/00, de apenas conceder isenção de ICMS na aquisição de veículo automotor aos deficientes motoristas, não pode prevalecer, devendo também ser aplicada aos casos não abrangidos pelo seu teor literal (deficiente usuário), a fim de não se chocar com os princípios constitucionais da igualdade, da proteção à pessoa com necessidades especiais e da dignidade da pessoa humana.

No caso, para se alcançar a justa solução do litígio, o deslinde da controvérsia posta não admitiria uma simples técnica de interpretação extensiva do RICMS, por força do que prevê o artigo 111, inciso II, do Código Tributário Nacional. De rigor a declaração incidental de inconstitucionalidade do artigo 19, Anexo I, do Regulamento do ICMS, aprovado pelo Decreto Estadual nº 45.490/00, ato normativo de caráter restritivo que causa ofensa direta aos princípios albergados pela Lei Maior.

Dessa forma, com a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo legal acima aludido impedir-se-ia odiosa e arbitrária discriminação, proibida no campo tributário expressamente pelo artigo 150, II, da Constituição Federal, assegurando-se, ainda, a preservação dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Note-se que no âmbito do IPI, a legislação federal reconhece a isenção do tributo de maneira geral às pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autista, diretamente ou por intermédio de seu representante legal (artigo 1º da Lei 8.989/1995, com a redação da Lei nº 10.690/2003).

É o relato do essencial.

O incidente deve ser conhecido e merece acolhimento.

O art. 1º da Lei nº 4.781/11, do Município de Limeira, que Institui no Município de Limeira o programa especial para pagamentos de tributos e outros créditos não tributários e dá outras providências, tem a seguinte redação:

“Art. 1º Fica instituído no Município de Limeira o Programa Especial para Pagamentos de Tributos e outros créditos não tributários, que visa incentivar o adimplemento de créditos tributários ou não, vencidos e não pagos, inscritos ou não em dívida ativa, ajuizados ou não, inclusive os que tenham sido objeto de parcelamento e estejam em atraso, mesmo aqueles abrangidos pela Lei Municipal nº 4231, de 19 de dezembro de 2007, constituídos ou não, assim como aqueles que venham a ser declarados e assumidos formalmente pelo responsável.

Parágrafo único. Será considerado parcelamento em atraso aqueles que estiverem com duas ou mais parcelas vencidas e não pagas na data de publicação desta Lei.”

Verifica-se, portanto, que o Município instituiu um Programa Especial para Pagamentos de Tributos e outros créditos não tributários, em benefício de contribuintes inadimplentes.

Embora o programa tenha abrangido os créditos tributários ou não objeto de parcelamento, restringiu apenas àqueles que estivessem em atraso com duas ou mais parcelas vencidas e não pagas.

Tais dispositivos trazem, porém, discriminação não razoável e ofensiva aos princípios da igualdade (art. 5º da Constituição Federal) e da isonomia tributária (art.150, II, da Constituição Federal).

Com efeito, o princípio da igualdade, em sua verdadeira acepção, significa tratar igualmente situações iguais, e de forma diferenciada situações desiguais.

Daí ser possível aduzir que viola o princípio da igualdade tanto o tratamento desigual para situações idênticas, como o tratamento idêntico para situações diferenciadas.

Como anota Celso Antônio Bandeira de Mello, “o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais. E, por fim, consoante averbado insistentemente, cumpre ademais que a diferença do regime legal esteja correlacionada com a diferença que se tomou em conta” (Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3ª ed., 12ª tir., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 35).

Esse é o sentido do princípio da isonomia, salientado por José Afonso da Silva, ao afirmar que “a realização da igualdade perante a justiça, assim, exige a busca da igualização de condições dos desiguais” (Curso de direito constitucional positivo, 13ª ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 215).

A diferenciação feita pelo legislador é possível quando, objetivamente, constatar-se um fator de discrímen que dê razoabilidade à diferenciação de tratamento contida na lei, pois a igualdade pressupõe um juízo de valor e um critério justo de valoração, proibindo o arbítrio, que ocorrerá “quando a disciplina legal não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável” (J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, 3ª ed., Coimbra, Livraria Almedina, 1998, p. 400/401).

Além disso, no constitucionalismo moderno “a função de impulso e a natureza dirigente do princípio da igualdade aponta para as leis como um meio de aperfeiçoamento da igualdade através da eliminação das desigualdades fácticas” (J.J. Gomes Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, 2ª ed., Coimbra editora, 2001, p. 383).

O que o princípio em verdade impede é que a lei vincule uma “consequência a um fato que não justifica tal ligação”, pois o vício de inconstitucionalidade por violação da isonomia deve incidir quando a norma que promove diferenciações sem que haja “tratamento razoável, equitativo, aos sujeitos envolvidos” (Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, 18ª ed. São Paulo, Saraiva, 1997, p. 181/182).

A valoração daquilo que constitui o conteúdo jurídico do princípio constitucional da igualdade, ou seja, a vedação de uma “regulação desigual de fatos iguais, deve ser realizada caso a caso, com base na razoabilidade e proporcionalidade quando da análise dos valores envolvidos, pois “não há uma resposta de uma vez para sempre estabelecida” (cf. Konrad Hesse, Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, tradução da 20ª ed. alemã, por Luís Afonso Heck, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris editor, 1998, p. 330/331).

Em outras palavras, além do aspecto negativo do princípio, como vedação de tratamento desigual a situações e pessoas em condição similar, traz conotação positiva, para conceder ao legislador a missão de, pela elaboração normativa, com parâmetro nos obstáculos e nas desigualdades reais, equiparar, ou equilibrar situações, materializando efetivamente o conteúdo concreto da isonomia. Pela elaboração normativa, o legislador poderá afastar óbices de qualquer ordem que limitem a aproximação efetiva daqueles que se encontram sob a égide do ordenamento jurídico (cf. Paolo Biscaretti Di Ruffia, Diritto constituzionale, XV edizione, Napoli, Jovene, 1989, p. 832).

Os critérios anteriormente expostos, que conferem validade e legitimidade à discriminação, têm inteira aplicação em matéria tributária.

No caso dos autos, o Programa Especial para Pagamentos de Tributos, concebido para incentivar o adimplemento de créditos tributários ou não, concede descontos diferenciados sobre o valor da multa de mora e juros moratórios em função da forma de pagamento (à vista ou parcelado) escolhida pelo contribuinte ou devedor (art. 8º da Lei nº 4.781/11).

A exclusão do direito aos benefícios do programa dos contribuintes e devedores que tivessem parcelado o debito e se encontrassem adimplentes com as parcelas não se mostra razoável.

Os contribuintes e devedores de tributos ou não, cujos fatos geradores ou lançamentos ocorreram até 31 de dezembro de 2010, ainda que tenham parcelado o débito, indiferente da situação atual de adimplência, estão na mesma situação daqueles outros inadimplentes.

A discriminação operada pelo ato normativo não se mostra razoável, pois beneficia a inadimplência em prejuízo daquele que, embora inadimplente, acabou parcelando o débito e está honrando com a avença.

Está claro, na hipótese em análise, que o fator de diferenciação entre os contribuintes inadimplentes não se funda em critério justo, não sendo razoável, nem mesmo equitativo.

Não há fundamento sério para a diferenciação da situação dos créditos parcelados até então com parcelas adimplidas com os demais créditos inadimplidos. Nem mesmo se vislumbra sentido legítimo para tal discriminação ou fundamento razoável para justificá-la.

Assim, ainda que o débito tenha sido parcelado e esteja o contribuinte ou devedor adimplente com as parcelas, existe o débito e o programa por questão de igualdade tributária e, em atenção ao princípio da isonomia, deve abrangê-lo.

Correto concluir, assim, que, tendo o legislador tratado de forma diversa os devedores tributários ou não do município, obstando o benefício aos créditos parcelados e até então adimplidos, violou o princípio da isonomia.

Os contribuintes e devedores que parcelaram o débito tributário ou não, que se encontram adimplentes com as respectivas parcelas, encontram-se na mesma situação jurídica que a gama de outros devedores inadimplentes, constituem, aliás, uma subespécie daquela classe de indivíduos. E não se vislumbra fundamento sério, legítimo e razoável para não estender a eles os benefícios do programa (descontos sobre a multa de mora e juros moratórios).

A condição de atraso no pagamento de créditos tributários ou não inadimplidos objeto de parcelamento, não se compatibiliza com os princípios da igualdade (art. 5º, I, da CF) e da isonomia tributária (art.150, II, da CF).

A lei tributária deve ser igual para todos e a todos deve ser aplicada com igualdade. Esta igualdade deve ser verificada entre aqueles que estejam na mesma situação jurídica.

Levando em consideração a ratio legis do dispositivo que concedeu o benefício, os devedores tributários ou não de débitos parcelados até então com parcelas adimplidas estão na mesma situação jurídica do universo dos demais devedores.

Não pode a lei tributária, sob pena de inconstitucionalidade por violação ao princípio republicano e ao da isonomia, selecionar determinado grupo de inadimplentes para submetê-las a regras peculiares, que não alcançam outras, também inadimplentes, ocupantes de idêntica posição jurídica. Aliás, para as pessoas que estão adimplentes com as parcelas do crédito tributário ou não é que talvez o benefício mais seria justificável.

O fator de discriminação carece de fundamento e razoabilidade, razão pela qual afronta os princípios da igualdade e da isonomia tributária. Assim, forçoso o reconhecimento da inconstitucionalidade da expressão “e estejam em atraso” do art. 1º e do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 4.781/11, do Município de Limeira.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e do seu acolhimento, declarando-se a inconstitucionalidade da expressão “e estejam em atraso” do art. 1º e do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 4.781/11, do Município de Limeira.

 

  São Paulo, 13 de maio de 2015.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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