Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0031652-84.2013.8.26.0000

Suscitante: 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo

 

 

 

Ementa:

1) Incidente de inconstitucionalidade. Lei nº 7.444/2011, do Município de Araraquara, de iniciativa parlamentar que determinou tombamento de fachada de imóvel.

2)    Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista). Ato normativo que revela, na prática, verdadeiro ato de gestão administrativa.

3) Parecer no sentido do conhecimento e acolhimento do incidente.

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator:

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade, suscitado pela 5ª Câmara de Direito Público desse E. Tribunal de Justiça de São Paulo, nos termos do v. acórdão de fls. 281/289, rel. Des. Maria Laura de Assis Moura Tavares, proferido nos autos da apelação nº 9000459-49.2011.8.26.0037, da Comarca de Araraquara, na sessão de julgamento realizada em 17.09.2012.

Ao suscitar a instauração do incidente, a C. 5ª Câmara de Direito Público desse E. Tribunal de Justiça afirmou a inconstitucionalidade da Lei n. 7.444/2011, do Município de Araraquara, por vício de iniciativa e usurpação da competência privativa do Chefe do Poder Executivo pela Câmara Municipal que não teria observado parâmetros dos arts. 47, II e 144, da Constituição Estadual.

É o relato do essencial.

O incidente deve ser conhecido e acolhido.

O objeto do presente incidente de inconstitucionalidade é a Lei 7.444, de 15 de abril de 2011, do Município de Araraquara, que “dispõe sobre o tombamento da fachada externa da edificação referente ao imóvel localizado na Avenida Sete de Setembro n. 1142-antigo Cine Coral e dá outras providências”, de autoria parlamentar, cuja redação é a seguinte:

“Art. 1º. Fica tombada, por seu valor cultural, histórico e arquitetônico, a fachada externa da edificação referente ao imóvel localizado na Avenida Sete de Setembro, n. 1142- antigo Cine Coral, compreendendo:

Parágrafo único. A fachada principal com vista para a Avenida Sete de Setembro.

Art. 2º - O Município por meio do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Arquitetônico, Palentológico, Etnográfico, Arquivístico, Bibliográfico, Artístico, Paisagístico, Cultural e Ambiental do Município de Araraquara – COMPPHARA promoverá a inscrição do tombamento da fachada externa do Cine Coral no livro do Tombo próprio nos termos da Lei n. 6.055, de 10 de outubro de 2003.

§1º - O órgão administrativo competente mencionado, neste artigo tomará as medidas cabíveis para o Registro Geral de Imóveis e para averbação do tombamento da fachada mencionada no parágrafo único do art. 1º.

§2º -  O teor da notificação será reproduzido integralmente no termo de inscrição lavrado no Livro do Tombo próprio, que constará nas certidões expedidas acerca do imóvel.

§3º - A execução de eventuais serviços e obras de restauração ou manutenção da fachada externa do imóvel deverá ser previamente comunicada ao Conselho citado no art. 2º, para fins de autorização e acompanhamento técnico do respectivo órgão administrativo.

§4º - Ficam permitidas modificações, acréscimos, intervenções e obras nas edificações e instalações no imóvel de que trata esta lei, observada a legislação pertinente em vigência, nas partes não alcançadas pelo tombamento abrangido.

Parágrafo único. Estruturas internas e externas das edificações, desde que preservadas e mantidas as características peculiares a fachada tombada.

Art. 5º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação”.

 

Observe-se que a pretexto de editar ato normativo, o Poder Legislativo Municipal praticou verdadeiro ato de gestão administrativa, pois determinou o tombamento da fachada externa do referido imóvel e disciplinou o procedimento a ser seguido pelo Poder Público para o fim pretendido.

Com a determinação do tombamento de determinado imóvel com a devida vênia, deve ser eleita pelo Chefe do Poder Executivo, e não pelo Poder Legislativo, por tratar-se de típico ato administrativo.

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado revela-se, portanto, invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo.

Desse modo, a lei de iniciativa parlamentar configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo.

Não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

Determinar o tombamento de imóvel específico, ou providências singelas inseridas no âmbito da atividade administrativa – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o célebre ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem reiteradamente declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade e aos limites da adoção da regra da separação.

Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.

Observe-se, ainda, como afirmou Hely, “a proteção paisagística, monumental e histórica da cidade insere-se também na competência do Município, admitindo regulamentação edilícia e administração da Prefeitura nos limites do interesse local, para recreação espiritual e fator cultural da população” (em “Direito Municipal Brasileiro”, 2001, pág. 2001).

As medidas de tombamento implicam em atividades de administração, que devem ficar a cargo do poder investido de dar exequibilidade às normas gerais e abstratas emanadas do Legislativo.

Por fim, a Câmara Municipal impôs ao Executivo atos concretos de administração, ou seja, a obrigação de adotar medidas para proceder ao tombamento da fachada do mencionado Cine.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 7.444, de 15 de abril de 2011, do Município de Araraquara.

São Paulo, 10 de abril de 2013.

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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