Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº: 0035876-94.2015.8.26.0000

Suscitante: 9ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo

Objeto: Lei Municipal nº 5.802, de 15 de março de 2002, do Município de Guarulhos

 

 

 

Ementa:

1.      Incidente de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 5.802, de 15 de março de 2002, de Guarulhos, que dispõe sobre a obrigatoriedade da presença de cobrador no interior dos ônibus de transporte coletivo urbano.

2.      Inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa e ofensa ao Princípio da Separação dos Poderes. Art. 5º, caput, e art. 47, XVIII, da Constituição do Estado.

3.      Parecer pelo conhecimento e acolhimento do incidente.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator:

 

 

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 9ª Câmara de Direito Público, do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, em face da Lei Municipal nº 5.802, de 15 de março de 2002, de Guarulhos, que dispõe sobre a obrigatoriedade da presença de cobrador no interior dos ônibus de transporte coletivo urbano.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade formal subjetiva e orgânica da Lei Municipal mencionada, ao vislumbrar, respectivamente, vícios de iniciativa legislativa e de competência legislativa, com a usurpação da competência da União para legislar sobre trânsito e direito do trabalho, invocando precedentes do E. Tribunal de Justiça em casos semelhantes.

É o relato do essencial.

O incidente deve ser conhecido e provido.

Há vários fundamentos que apontam para a inconstitucionalidade do ato normativo impugnado (Lei Municipal nº 5.802, de 15 de março de 2002, de Guarulhos), fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a orientação e o auxílio ao usuário dos ônibus que integram o sistema de transporte coletivo do Município e dá outras providências, nos seguintes termos:

“Art. 1º. As empresas de ônibus concessionárias e/ou permissionárias do sistema de transporte coletivo do Município de Guarulhos, manterão em todos os veículos utilizados para tal, as funções de cobrador/orientador, garantindo o piso salarial estabelecido à atual função de cobrador, bem como todos os seus direitos trabalhistas, para fins de orientação e auxílio ao usuário, além da cobrança da passagem, quando for o caso.

Art. 2º Os cobradores/orientadores em atividade nos veículos de transporte, na forma no disposto no artigo anterior, mesmo nos veículos com cobrança automatizada de tarifa, terão, entre outras necessárias à realização do interesse público, as seguintes atribuições:

I - orientar e auxiliar os usuários, especialmente os idosos, gestantes e pessoas de mobilidade reduzida;

II - assistir o motorista nas atividades necessárias;

III - trocar bilhete de passagem ou acionar o validador mediante o recebimento do valor da tarifa para possibilitar o transporte de passageiros que não tenham adquirido o bilhete previamente.

Art. 3º As empresas de transporte coletivo, concessionárias ou permissionárias integrantes do sistema municipal de transporte coletivo que infringirem esta Lei serão passíveis das seguintes penalidades:

I - advertência na primeira autuação de infração, com prazo de 15 (quinze) dias para devida regularização;

II - multa diária de 1.000 (mil) UFGs, em caso de reincidência, desde que verificada fora do prazo estabelecido pelo inciso I deste artigo e até 30 (trinta) dias da primeira notificação (advertência);

III - multa diária de 2.000 (duas mil) UFGs caso se verifique a situação de irregularidade, desde que verificada fora dos prazos estabelecidos pelos incisos I e II deste artigo e até 60 (sessenta) dias da primeira notificação (advertência);

IV - cassação da permissão/concessão de operação de linha na qual foi constatada a irregularidade, caso persista a irregularidade, assistidos os prazos para regularização estabelecidos na presente Lei.

§ 1º As linhas que sofrerem o procedimento de cassação da permissionária/concessionária serão operadas, em caráter emergencial, por empresa que não se encontre impedida por ter descumprido esta Lei, conforme determinação da Prefeitura de Guarulhos, até concluído o processo licitatório para a operação das mesmas.

§ 2º A fiscalização do disposto nesta Lei, deverá ser realizada pela Prefeitura de Guarulhos, através da Secretaria de Serviços Públicos em conjunto com o Sindicato da categoria dos condutores.

Art. 4º O Executivo Municipal regulamentará a presente Lei em 60 (sessenta) dias.

Art. 5º As despesas decorrentes da execução da presente Lei, correrão por conta de verbas próprias, consignadas em Orçamento, suplementadas se necessário.

Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

Conforme se depreende da leitura do ato normativo, há, essencialmente, a determinação, dirigida às empresas de ônibus concessionárias e/ou permissionárias do sistema de transporte coletivo do Município de Guarulhos, de que sejam mantidas, em todos os veículos, as funções de cobrador/orientador.

Todas as demais disposições são acessórias, motivo pelo qual todo diploma normativo está eivado de vício de inconstitucionalidade formal, por invadir competência privativa do chefe do Poder Executivo municipal para dar início ao projeto legislativo em matéria de concessão e permissão de serviços públicos.

Com efeito, a Lei impugnada vulnera a Constituição Estadual no que concerne à iniciativa legislativa privativa do Chefe do Poder Executivo e ao princípio da tripartição dos poderes estabelecidos, previstos, respectivamente, nos artigos 47, inciso XVIII, e 5º, § 1º, da Carta Estadual:

“(...)

Artigo 5°- São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

§ 1°- É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

(...)

Artigo 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

XVIII - enviar à Assembleia Legislativa projeto de lei sobre o regime de concessão ou permissão de serviços públicos.

(...)”.

Ao legislar, estipulando a obrigação de as empresas manterem sempre dois tripulantes em cada veículo, quais sejam o motorista e o cobrador, a Câmara Municipal alterou o próprio regime de concessão ou de permissão de serviços públicos, dispondo, assim, de maneira autônoma sobre matéria de iniciativa legislativa privativa do Poder Executivo, contrastando com o princípio da separação dos poderes, insculpido no art. 5º, da Constituição Estadual.

Assim, apenas o Prefeito Municipal possui competência para deflagrar processo legislativo que tenha por objeto a aprovação de lei que verse sobre concessão e/ou permissão de serviços públicos, sob pena de indevida interferência de um Poder sobre o outro.

Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º, da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios, conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual, e que assim dispõe:

“Artigo 5º. São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito, estando assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, conforme observa a doutrina:

“o princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).

Como consequência do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes “consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

Também por decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder Executivo no processo legislativo.

Como observa a doutrina:

“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers) (...) A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

 Assim, se em princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por tangenciarem assuntos de natureza eminentemente administrativa e, concomitantemente, direitos de terceiros ou o próprio exercício dos poderes estatais, são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo.

Esse desenho normativo de status constitucional – aplicável aos Municípios por obra do art. 144, da Constituição Estadual – permite assentar as seguintes conclusões: a) a iniciativa legislativa não é ampla, nem livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada competência; b) ao Chefe do Poder Executivo a Constituição prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias inerentes à Administração Pública; c) há matérias administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo.

A propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa:

“Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).

Portanto, irradia-se do princípio da separação de poderes a própria técnica jurídica de freios e contrapesos com a previsão de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo em matéria administrativa.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e de seu acolhimento, declarando-se a inconstitucionalidade total da Lei Municipal nº 5.802, de 15 de março de 2002, de Guarulhos.

 

São Paulo, 24 de junho de 2015.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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