Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0039688-47.2015.8.26.0000

Suscitante: 18 Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Artigos 19 e 21 da Lei Municipal nº 11.154/91, com a redação dada pela Lei nº 13.402/2002, ambas do Município de São Paulo.

2)      Alegação de inconstitucionalidade por afronta ao art. 22, XXV, da Constituição Federal que atribui competência privativa à União para legislar sobre registros públicos.

3)      Imposição de obrigações e penalidades a oficiais de registro de imóveis decorrentes de realização de atos relacionados à transmissão de imóveis ou de direitos a eles relativos.   Competência da União para legislar sobre direito civil e registros públicos (art. 22, I e XXV, CF). Incompatibilidade, ainda, com os arts. 5º caput; 69, II, “b”; 77 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo. Competência privativa do Poder Judiciário para legislar sobre organização dos serviços notariais e de registro.

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 18ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação nº 9000370-37.2006.8.26.0090, da Vara das Execuções Fiscais da Comarca de São Paulo, na sessão realizada em 26 de março de 2015, figurando como Relator o Des. Roberto Martins de Souza.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade dos artigos 19 e 21 da Lei Municipal nº 11.154/91, com a redação dada pela Lei nº 13.402/02/2006, ambas do Município de São Paulo, tendo ficado consignado no voto do eminente relator o seguinte (fls. 101/108):

“(...)

A análise da matéria demonstra, a princípio, que a r. sentença andou bem, mesmo porque, em situação análoga, envolvendo a Municipalidade de São Paulo, este Tribunal, por meio do Órgão Especial, já declarou a inconstitucionalidade dos arts. 19 e 21 da Lei nº 11.154/91, mas com redação dada pela Lei nº 14.256/06, cujo texto, vale mencionar, era muito semelhante ao que lhe foi conferido pela Lei nº 13.402/02. Nesse sentido vale mencionar a ementa do referido julgado:

‘Mandado de Segurança coletivo – inconstitucionalidade dos arts. 19 e 21 da Lei Municipal nº 11.154/91, com redação da Lei Municipal nº 14.256/2006, que impõe multa aos notários que não exigirem certidões de regularidade do IPTU declarada pelo Colendo Órgão Especial – a competência municipal não pode invadir questões registrais ou criar obrigações acessórias a não contribuintes e não responsável (art. 134, VI, CTN). Recurso improvido” (Arguição de Inconstitucionalidade 994.08.217573-0, Rel. Viana Santos, j. 5/05/2010, v.u)

(...)”

É o relato do essencial.

O incidente deve ser conhecido e merece acolhimento.

Os artigos 19 e 21, da Lei Municipal nº 11.154/91, com a alteração levada a efeito pela Lei nº 13.402/02, ambas do Município de São Paulo, tinham a seguinte redação:

                            “(...)

Art. 19 – Não serão lavrados, registrados, inscritos ou averbados pelos notários, oficiais de Registro de Imóveis, ou seus prepostos, os atos e termos relacionados à transmissão de bens imóveis ou de direitos a eles relativos, sem a prova do pagamento do imposto, observado o disposto no artigo 8º desta lei, ou do reconhecimento administrativo da não-incidência, da imunidade ou da concessão da isenção”

"Art. 19 - Não serão lavrados, registrados, inscritos ou averbados pelos notários, oficiais de Registro de Imóveis, ou seus prepostos, os atos e termos relacionados à transmissão de bens imóveis ou de direitos a eles relativos, sem a prova do pagamento do imposto, observado o disposto no artigo 8º desta lei, ou do reconhecimento administrativo da não-incidência, da imunidade ou da concessão de isenção."

"Art. 21 - Os notários, oficiais de Registro de Imóveis, ou seus prepostos, que infringirem o disposto nesta lei, ficam sujeitos à multa de:

I - R$ 50,00 (cinqüenta reais), por item descumprido, pela infração ao disposto no Parágrafo Único do artigo 11 desta lei;

II - R$ 1.000,00 (mil reais), por item descumprido, pela infração ao disposto nos artigos 19 e 20 desta lei."

Referidos dispositivos são incompatíveis com os artigos 5º, caput; 69, II, “b”, 77 e 144, todos da Constituição Estadual, e com art. 22, I e XXV da Constituição Federal, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Constituição Bandeirante, os quais assim estabelecem:

 

“Art. 5º. São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

“Art. 69. Compete privativamente ao Tribunal de Justiça:

(...)

II – pelos seus órgãos específicos:

a)     (...)

b)     organizar suas secretarias e serviços auxiliares, velando pelo exercício da respectiva atividade correicional;”

“Art. 77. Compete, ademais, ao Tribunal de Justiça, por seus órgãos específicos, exercer controle sobre atos e serviços auxiliares da Justiça, abrangidos os notariais e os de registro.”

“Art. 144 . Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

                                     

         Com efeito, o art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, à medida que, disciplinando a autonomia municipal, limita-a a vários princípios constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

         Disso decorre a possibilidade de contraste da lei local com o art. 144 da Constituição Estadual, por sua remissão à Constituição Federal e a seus artigos 22, I e XXV, que assim dispõem:

“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I – direito civil (...);

(...)

XXV – registros públicos;”

Os artigos 19 e 21, da Lei Municipal nº 11.154/91, com a redação dada pela Lei nº 13.402/2002, ambas do Município de São Paulo, violam também o princípio federativo, que se manifesta na repartição constitucional de competências, (arts. 1º e 144, da Constituição Paulista).

O esquema de repartição de competências entre os entes federados – expressão do princípio federativo – conferiu à União, sem espaço para Estados e Municípios, a competência legislativa relativa a registro público e transmissão de propriedade (art. 21, incisos I e XXV).

Não pode o legislador municipal, contudo, a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse local ou suplementar à legislação Federal ou Estadual de ordem geral, invadir a competência legislativa destes entes federativos superiores (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006).

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

Cumpre recordar que um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, que representa a dimensão e o alcance do princípio do pacto federativo adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à União.

Anota, a propósito, Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. STF, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...)

a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I). (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

(...)”

Por essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que os dispositivos impugnados que tratam de matéria cuja competência é do legislador federal, ao desrespeitarem a repartição constitucional de competências, violaram o princípio federativo.

Não bastasse, houve violação a prescrição constitucional de que compete ao Poder Judiciário iniciativa de lei a respeito de serventias judiciais e extrajudiciais (art. 69, II, “b” da Constituição Estadual).

Ora, é cediço que os tabelionatos e registros são serviços auxiliares da justiça e, assim sendo, cabe ao Poder Judiciário privativamente disciplinar, fiscalizar e aplicar sanções aos notários, oficiais e prepostos.

         Neste sentido caminha a jurisprudência do STF:

“ADI 3773 / SP - SÃO PAULO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a):  Min. MENEZES DIREITO Julgamento: 04/03/2009 Órgão Julgador:  Tribunal Pleno Publicação DJe-167  DIVULG 03-09-2009  PUBLIC 04-09-2009 EMENT VOL-02372-01  PP-00132 Parte(s) REQTE.(S): PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA REQDO.(A/S): GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO REQDO.(A/S): ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO INTDO.(A/S): ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL - ANOREG-BR ADV.(A/S): RENAN LOTUFO

EMENTA. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Estadual (SP) nº 12.227/06. Inconstitucionalidade formal. Vício de iniciativa. Art. 96, II, "b" e "d", da Constituição Federal. 1. A declaração de inconstitucionalidade proferida por Tribunal estadual não acarreta perda de objeto da ação ajuizada na Suprema Corte, pendente ainda recurso extraordinário. 2. Vencido o Ministro Relator, que extinguia o processo sem julgamento do mérito, a maioria dos Julgadores rejeitou a preliminar de falta de interesse de agir por ausência de impugnação do art. 24, § 2º, item 6, da Constituição do Estado de São Paulo, com entendimento de que este dispositivo não serve de fundamento de validade à lei estadual impugnada. 3. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que as leis que disponham sobre serventias judiciais e extrajudiciais são de iniciativa privativa dos Tribunais de Justiça, a teor do que dispõem as alíneas "b" e "d" do inciso II do art. 96 da Constituição da República. Precedentes: ADI nº 1.935/RO, Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ de 4/10/02; ADI nº 865/MA-MC, Relator o Ministro Celso de Mello, DJ de 8/4/94. 4. Inconstitucionalidade formal da Lei Estadual (SP) nº 12.227/06, porque resultante de processo legislativo deflagrado pelo Governador do Estado. 5. Ação direta que se julga procedente, com efeitos ex tunc.

Cumpre observar, ainda, que, recentemente, esse Colendo Órgão Especial, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 0131578-72.2012.8.26.0000, relator o eminente Desembargador Caetano Lagrasta, pronunciou-se sobre a matéria, em acórdão assim ementado:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Artigos 17, 18, 19 e 21, da Lei Municipal nº 323, de 27/10/2010, de iniciativa do Executivo Municipal, que dispõem sobre a imposição de obrigações e penalidades aos notários, oficiais de registro de imóveis e prepostos decorrentes de realização de atos relacionados à transmissão de imóveis ou de direitos a eles relativos. Dispositivos que violam a competência da União para legislar sobre registro público e a do Poder Judiciário para disciplinar, fiscalizar e aplicar sanções aos que exercem essas atividades. Violação ao Princípio da Independência e harmonia entre os Poderes. Precedentes. Ação Procedente”.

 

            Extrai-se do venerando acórdão, datado de 8 de maio de 2013:

“(...)

É pacífico o entendimento do C. Supremo Tribunal Federal no sentido de que leis que tratam de serventias judiciais e extrajudiciais são de iniciativa privativa do Poder Judiciário, conforme disposição expressa do art. 96, I, “b”, da Constituição Federal. Ao legislar sobre tal matéria, o Executivo Municipal invadiu competência do Tribunal de Justiça para iniciativa legislativa, organização, controle e aplicação de penalidades no tocante aos serviços auxiliares, incluídos os notariais e de registro, nos termos do art. 96, I, “b”, da CF, bem como artigos 69, II, “b” e 77, estes da Constituição do Estado, o que viola o princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 5º, da CF).

O art. 19 da mencionada lei, ao impor penalidades aos notários, oficiais de Registro de Imóveis e prepostos, não observou que tal competência é exclusiva do Poder Judiciário, nos termos dos artigos 69, II, “b” e 77, ambos da Constituição do Estado.

Nada obstante invadir competência privativa do Poder Judiciário, o Executivo Municipal invadiu competência da União para legislar sobre registro público e transmissão de propriedade de bem imóvel, o que se verifica pela redação do art. 17, violando, assim, o quanto preconizado no art. 22, I e XXV, da CF.

Os dispositivos atacados revelam, desta forma, a incompatibilidade vertical com a Constituição Federal e com a Constituição do Estado de São Paulo (...)”

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e de seu acolhimento, declarando a inconstitucionalidade dos dispositivos 19 e 21 da Lei Municipal nº 11.154/91, com a redação dada pela Lei nº 13.402/2002, ambas do Município de São Paulo.

 

                São Paulo, 24 de junho de 2015.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

 

mao/mi