Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0044349-06.2014.8.26.0000

Suscitante: 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Embargante: Prefeitura Municipal de Sorocaba

Embargados: (...) e outros

Objeto: inconstitucionalidade do art. 132 , XIII, “c” da Lei Orgânica do Município de Sorocaba

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Art. 132, XIII, “c”  da Lei Orgânica do Município de Sorocaba estabelece jornada de trabalho de 30 horas semanais para os trabalhadores em saúde.

2)      Parecer pela admissão e acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

         Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 13ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento dos embargos infringentes nº 0016428-17.2011.0602/5001, da Vara da Fazenda Pública de Sorocaba, figurando como Relator o Desembargador Borelli Thomaz.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade do art. 132, XIII, “c” da Lei Orgânica do Município de Sorocaba, por violação ao princípio federativa e ao art. 5º, parágrafo único da Constituição Estadual, tendo ficado consignado no acórdão o seguinte:

“(...)

Como visto, esse artigo traz direitos e benefícios aos servidores, motivo de ser caso de inconstitucionalidade, por ser matéria sob competência privativa do Poder Executivo, não do Legislativo, que não pode invadir seara daquele, por força do princípio federativo e por expressa proibição do artigo 5º, parágrafo segundo da Constituição do Estado, principalmente se se cuida de criação e imposição de despesas. (...)”

É o relato do essencial.

O artigo 132, XIII, “c” da Lei Orgânica do Município de Sorocaba tem a seguinte redação:

Art. 132.  São atribuições do Município, no âmbito do Sistema Único de Saúde:

(...)

XIII - garantir aos trabalhadores em saúde:

(...)

c) jornada de trabalho de 30 horas semanais;

O ato normativo impugnado é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar a reserva de iniciativa do Poder Executivo e o princípio da separação de poderes, previstos nos arts. 5º, 24, § 2º, 4, da Constituição do Estado, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Verifica-se que o dispositivo da Lei Orgânica Municipal de Sorocaba fixou jornada de trabalho semanal aos trabalhadores da área de saúde, matéria relativa ao regime jurídico do funcionalismo público.

Desta forma, este dispositivo revela-se invasivo da esfera da iniciativa privativa do Poder Executivo.

O processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes.

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República, conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa, o ato que deflagra o processo legislativo, pode ser geral ou reservada (ou privativa).

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, cuidou de matéria relativa a jornada de trabalho dos servidores públicos da área da saúde disciplinando aspectos integrantes de seu regime jurídico, cuja iniciativa cabe ao Chefe do Poder Executivo.

A propósito, a Constituição Estadual estabelece que cabe exclusivamente ao Governador a iniciativa das leis que disponham sobre fixação da remuneração aos cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como sobre servidores públicos e seu regime jurídico (CE, art. 24, § 2°, 4).

Tal regramento deve ser observado pelos municípios por força do princípio da simetria previsto no art. 144 da Constituição Paulista.

Assim, quando o Poder Legislativo do município edita lei disciplinando matéria relativa ao regime jurídico dos servidores públicos, como ocorre, no caso em exame, em função da previsão da jornada de trabalho aos servidores da saúde, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos municípios (arts. 24, § 2°, 1 e 4; 144).

Neste sentido, é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, senão vejamos:

“INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 740/2003, do Estado do Amapá. Competência legislativa. Servidor Público. Regime jurídico. Vencimentos. Acréscimo de vantagem pecuniária. Adicional de Desempenho a certa classe de servidores. Inadmissibilidade. Matéria de iniciativa exclusiva do Governador do Estado, Chefe do Poder Executivo. Usurpação caracterizada. Inconstitucionalidade formal reconhecida. Ofensa ao art. 61, § 1º, II, alínea ‘a’, da CF, aplicáveis aos estados. Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei que, de iniciativa parlamentar, conceda ou autorize conceder vantagem pecuniária a certa classe de servidores públicos” (STF, ADI 3.176-AP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, 30-06-2011, v.u., DJe 05-08-2011).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. CONCESSÃO DE VANTAGENS PECUNIÁRIAS A SERVIDORES PÚBLICOS. SIMETRIA. VÍCIO DE INICIATIVA. 1. As regras de processo legislativo previstas na Carta Federal aplicam-se aos Estados-membros, inclusive para criar ou revisar as respectivas Constituições. Incidência do princípio da simetria a limitar o Poder Constituinte Estadual decorrente. 2. Compete exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa de leis, lato sensu, que cuidem do regime jurídico e da remuneração dos servidores públicos (CF artigo 61, § 1º, II, ‘a’ e ‘c’ c/c artigos 2º e 25). Precedentes. Inconstitucionalidade do § 4º do artigo 28 da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte. Ação procedente” (STF, ADI 1.353-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 20-03-2003, v.u., DJ 16-05-2003, p. 89).

“(...)

Dentre as regras básicas do processo legislativo federal, de observância compulsória pelos Estados, por sua implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos Poderes, encontram-se as previstas nas alíneas a e c do art. 61, § 1º, II, da CF, que determinam a iniciativa reservada do chefe do Poder Executivo na elaboração de leis que disponham sobre o regime jurídico e o provimento de cargos dos servidores públicos civis e militares. Precedentes: ADI 774, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 26-2-1999, ADI 2.115, rel. Min. Ilmar Galvão e ADI 700, rel. Min. Maurício Corrêa. Esta Corte fixou o entendimento de que a norma prevista em Constituição Estadual vedando a estipulação de limite de idade para o ingresso no serviço público traz em si requisito referente ao provimento de cargos e ao regime jurídico de servidor público, matéria cuja regulamentação reclama a edição de legislação ordinária, de iniciativa do chefe do Poder Executivo. Precedentes: ADI 1.165, rel. Min. Nelson Jobim, DJ de14-6-2002 e ADI 243, red. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, DJ de 29-11-2002. Ação direta cujo pedido se julga procedente. (ADI 2.873, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 20-9-2007, Plenário, DJ de 9-11-2007.)

(...)

Processo legislativo: normas de lei de iniciativa parlamentar que cuidam de jornada de trabalho, distribuição de carga horária, lotação dos profissionais da educação e uso dos espaços físicos e recursos humanos e materiais do Estado e de seus Municípios na organização do sistema de ensino: reserva de iniciativa ao Poder Executivo dos projetos de leis que disponham sobre o regime jurídico dos servidores públicos, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria (art. 61, II, § 1º, c). (ADI 1.895, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 2-8-2007, Plenário, DJ de 6-9-2007.)

(...)

Lei estadual que dispõe sobre a situação funcional de servidores públicos: iniciativa do chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, a e c, CR/1988). Princípio da simetria. (ADI 2.029, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 4-6-2007, Plenário, DJ de 24-8-2007.)

(...)”

A propósito, convém destacar a seguinte decisão desse Colendo Órgão Especial:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. VICIO DE INICIATIVA. Lei municipal de autoria de membro do Poder  Legislativo que  dispõe sobre a concessão de  auxílio-alimentação  aos servidores. Matéria  inserida na reserva de iniciativa do Chefe do  Executivo.  Separação dos Poderes. Ofensa aos art. 5º, "caput", da CESP, e  a 2° da CF/88. Caracterização de vício de iniciativa. Inconstitucionalidade formal subjetiva. Ação julgada procedente.” (ADI nº 0269127-61.2011.8.26.0000, Rel. Des. Roberto Mac Cracken, j. 21 de março de 2012)

De outro lado, e não menos importante, o dispositivo legal impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto.

A norma combatida ao reduzir a jornada de trabalho dos servidores da saúde não indicou os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto importa em alteração nas condições da prestação dos serviços, que demandará da administração municipal meios financeiros para subsidiar o valor das horas extraordinárias necessárias.

Isso implica contrariedade também ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e de seu acolhimento, declarando a inconstitucionalidade do artigo 132, XIII, “c” da Lei Orgânica do Município de Sorocaba.

 

                        São Paulo, 24 de julho de 2014.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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