Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0045425-65.2014.8.26.0000

Suscitante: 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente do Tribunal de Justiça

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Inciso VII do artigo 1° da Lei nº 13.880/2004, do Município de São Paulo, que autorizou alienação de área pública com destinação urbanística específica para parque dada pelo plano diretor e Decreto nº 48.116/2007, do Município de São Paulo, o qual deu a referida área denominação de Praça Victor Civita.

2)      Preliminares. Impossibilidade de instauração do incidente em razão do não recebimento do recurso. Falta de indicação clara e precisa da violação constitucional. O incidente de inconstitucionalidade não se presta a verificação de validade de ato administrativo. Inviabilidade do conhecimento do incidente de arguição de inconstitucionalidade.

3)      Mérito. A lei de ordenamento do uso e ocupação do solo tem como elemento formal obrigatório, para atribuição de legitimidade substancial ao uso do poder, a participação popular em todas as suas fases, bem como o planejamento técnico. (Constituição Estadual arts. 180, II e 191 e Federal art. 29, XII).

     

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente do Tribunal de Justiça, quando do julgamento da apelação cível nº 0119564-67.2007.8.26.0053, da 1ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, na sessão realizada em 10 de abril de 2014, figurando como Relator o Des. Paulo Ayrosa.

A Col. Câmara após não conhecer do recurso, arguiu necessidade de análise da constitucionalidade da Lei nº 13.880/2004, do Município de São Paulo, que autorizou alienar, mediante o procedimento licitatório cabível, área de propriedade municipal com destinação urbanística específica para parque que foi dada pelo plano diretor, do Decreto nº 48.116/2007, do Município de São Paulo, o qual deu a esta área denominação de Praça Victor Civita e do Contrato Administrativo do Termo de Cooperação firmado entre o Município de São Paulo a Editora Abril e o Instituto Abril.

Não há, no v. acórdão (fls. 1954/1.957), indicação precisa de qual teria sido a inconstitucionalidade do referido ato normativo em face de ter ficado consignado no voto do relator o seguinte:

“(...)

Não conheço do recurso, posto falecer competência a órgão fracionário do Tribunal apreciar o tema central posta na ação civil pública da qual se tira a presente apelação, qual seja, a inconstitucionalidade de lei municipal e o contrato administrativo do termo de cooperação firmado entre o ente municipal e a Editora Abril S/A e o Instituto Abril, sendo de rigor o seu encaminhamento ao Órgão Especial desta colenda Corte para a apreciação do tema, nos termos do art. 480 e art. 481, do CPC e art. 193 e art. 194 do Regimento Interno.”

É o relato do essencial.

PRELIMINARMENTE

1.   Impedimento para acolhimento da arguição

A arguição não deve ser conhecida, uma vez que o recurso não foi recebido.

Como se sabe, o procedimento relativo ao incidente de inconstitucionalidade tem por escopo, em última análise, a observância da denominada cláusula de reserva de plenário, prevista no art. 97 da Constituição da República, pela qual somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.

Essa regra define a competência funcional e absoluta do Tribunal (Pleno ou Órgão Especial), bem como o quórum mínimo para a deliberação, quando for o caso de reconhecimento de incompatibilidade entre determinado ato normativo e o texto constitucional.

Em razão disso é que o Código de Processo Civil estabelece o procedimento previsto nos seus arts. 480 a 482.

Ocorre que o procedimento relativo ao incidente de inconstitucionalidade é dividido em três fases: (a) a primeira, com a manifestação do órgão colegiado fracionário, determinando a instauração do incidente por vislumbrar a possibilidade de declaração da inconstitucionalidade do ato normativo; (b) a segunda perante o Tribunal ou respectivo Órgão Especial, para exame efetivo da questão constitucional; (c) a terceira, com o retorno dos autos ao órgão fracionário, para conclusão do julgamento do recurso, com aplicação do direito à espécie.

Isso é o que decorre expressamente do CPC, na medida em que: (a) o art. 481, caput, prevê que se for acolhida, no órgão fracionário, a alegação de inconstitucionalidade, será lavrado acórdão, a fim de ser submetida a questão ao tribunal pleno; e (b) tratar o art. 482 e §§ do procedimento relativo ao julgamento do incidente no Tribunal Pleno ou Órgão Especial.

Esse sistema estabelece, nesse caso, o julgamento como um ato complexo, na medida em que o resultado final será formado pela manifestação de vontade de diferentes órgãos, todos eles com competência funcional e absoluta: (a) primeiro, a deliberação do colegiado fracionário, imprescindível à instauração do incidente; (b) depois, a deliberação do Tribunal, que se limita a examinar a quaestio iuris consubstanciada na discussão constitucional; (c) por último, o retorno dos autos com o acórdão relativo ao incidente ao colegiado fracionário, a quem caberá concluir o julgamento.

Esse é o ensinamento de José Carlos Barbosa Moreira (Comentários ao CPC, vol. V, 12. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2005, p. 42), para quem:

“(...)

Ocorre uma cisão funcional da competência: ao plenário, ou ao ‘órgão especial’, caberá pronunciar-se sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade, e ao órgão fracionário, depois, decidir a espécie, à luz do que houver assentado quanto à prejudicial. Suspende-se, portanto, o julgamento do recurso ou da causa pelo órgão fracionário, sem prejuízo daquilo que já se tenha decidido independentemente da argüição.

(...)”

Entretanto, ressalta o mesmo autor (op. cit., p. 46) que:

“(...)

Incumbe ao plenário ou ao ‘órgão especial’ pronunciar-se acerca da prejudicial de inconstitucionalidade da lei ou ato do poder público, ou da parte de uma ou de outro, a cujo respeito lhe houver sido submetida a argüição pelo órgão fracionário. O plenário (ou o ‘órgão especial’) não tem competência para manifestar-se sobre o que não haja sido acolhido na argüição (...) Da própria redação do art. 481, caput, 2ª parte, claramente ressalta que o acolhimento da argüição pelo órgão fracionário é pressuposto inafastável do conhecimento da questão pelo tribunal.

(...)” (g.n.)

No mesmo sentido Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Código de Processo Civil comentado, 9ª ed., São Paulo, RT, 2006, p. 669, nota n. 2 ao art. 481 do CPC).

Essa solução – cisão funcional de competência, para formação de julgamento complexo – também tem sido reconhecida pelo Col. Supremo Tribunal Federal. Confira-se, por exemplo, julgados recentes: AI 591.373-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 18-9-07, DJ de 11-10-07; AI 577.771-AgR, Rel. Min. Celso De Mello, julgamento em 18-9-07, DJE de 16-5-08; RE 509.849-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 4-12-07, DJE de 1º-2-08.

Aliás, esse raciocínio, realizado de forma completa, reconhecendo a divisão de competências entre o órgão fracionário do Tribunal e o Pleno ou Órgão Especial, foi que acabou rendendo ensejo à edição da Súmula Vinculante nº 10 do E. Supremo Tribunal Federal.

Assim, após a conclusão do julgamento do incidente de inconstitucionalidade, o feito deve ser restituído ao colegiado fracionário, para que prossiga, julgando a causa ou recurso, aplicando o direito à espécie.

Isso conduz à inevitável conclusão no sentido de que, como o Órgão Especial não julga o recurso ou a causa, mas apenas o incidente de inconstitucionalidade, na verdade a decisão só estará completa com a conclusão do julgamento por parte do colegiado fracionário.

Daí decorre a conclusão de que se o recurso não foi recebido, seria impossível o seu fracionamento, porque a decisão final a ser dada é da Colenda 2ª Câmara Reservada ao Meio ambiente que suscitou o incidente, ainda que a questão principal para o deslinde seja acerca da alegação de inconstitucionalidade de ato normativo, que também não parece ser o caso.

Se o recurso não foi conhecido, como consignado no v. acórdão, não há possibilidade jurídica do seu seguimento.

2.   Não indicação precisa dos limites do conhecimento da arguição de inconstitucionalidade

A arguição também não deve ser conhecida porque não foi indicado de forma precisa o(s) parâmetro(s) constitucional (is) violado (s).

De outro lado, a instauração de arguição de inconstitucionalidade tem por objetivo a declaração incidental da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público. Assim, não se presta a declaração de inconstitucionalidade de ato administrativo, na hipótese, o contrato administrativo do termo de cooperação firmado entre o Município de São Paulo, a Editora Abril e o Instituto Abril.

Verifica-se que no acórdão ficou consignado que o tema central da ação civil pública seria a inconstitucionalidade da lei municipal e do contrato administrativo do termo de cooperação firmado entre o ente municipal, a Editora Abril S/A e o Instituto Abril, sem, no entanto, apontar qual teria sido a norma constitucional violada.

De outro lado, importante ressaltar que se extrai da inicial a alegação de violação em primeiro plano da legislação infraconstitucional que dá cumprimento a princípios constitucionais (arts. 1º, parágrafo único, 29, XII, 30, VIII e 182, § 1º e 2º, da Constituição Federal). Afirma-se, ainda, que o Termo de Cooperação viola o art. 37, XXI, da Constituição Federal.

Não se sabe em face de quais parâmetros constitucionais deve ser conhecida a arguição.

Quando vislumbrar a possibilidade de declaração da inconstitucionalidade de determinado ato normativo imprescindível para o julgamento da apelação o órgão competente deve se manifestar de forma clara e específica acerca da arguição de inconstitucionalidade apontando não só o ato normativo infraconstitucional, mas, também, os parâmetros de confronto da Constituição Estadual ou Federal.

A indicação precisa dos parâmetros do controle incidental faz-se necessária até mesmo para limitar o âmbito de cognição do fracionamento do julgamento, da quaestio iuris consubstanciada na discussão constitucional.

Desta forma, mostra-se inviável o conhecimento da presente arguição.

NO MÉRITO

Caso superadas as preliminares, atenta-se no mérito presumindo que a questão decorra da necessidade de se verificar a constitucionalidade do inciso VII do art. 1° da Lei nº 13.880/2004 e do Decreto nº 48.116/2007, do Município de São Paulo.

A inconstitucionalidade existiria devido à falta de planejamento e de participação popular na legislação relacionada ao ordenamento urbanístico do Município, decorrente da modificação da destinação de área urbana (arts. 180, II, e 181, § 1º, da Constituição Estadual e arts. arts. 1º, parágrafo único, 29, XII, 30, VIII e 182, § 1º, da Constituição Federal).

O art. 182, caput, da Constituição Federal disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

O inciso XII do art. 29 da Constituição Federal impõe aos Municípios a observância da cooperação das associações representativas no planejamento municipal.

O inciso VIII do art. 30 da Constituição Federal prevê ainda a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.

Em decorrência dos dispositivos acima apontados pode-se concluir que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor que conta com assento constitucional (federal e estadual); (b) a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município; (d) a legislação específica sobre uso e ocupação do solo deve pautar-se por adequado planejamento e participação popular.

A norma urbanística é, por sua natureza, uma disciplina, um modo, um método de transformação da realidade, de superposição daquilo que será a realidade do futuro àquilo que é a realidade atual.

Para que a norma urbanística tenha legitimidade e validade deve decorrer de um planejamento que é um processo técnico instrumentalizado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos. Não pode decorrer da simples vontade do administrador, mas de estudos técnicos que visem assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (habitar, trabalhar, circular e recrear) e garantir o bem-estar de seus habitantes.

O planejamento não é mais um processo discricionário e dependente da mera vontade dos administradores. Não é um simples fenômeno técnico, mas um verdadeiro processo de criação de normas jurídicas, que ocorre em duas fases: uma preparatória, que se manifesta em planos gerais normativos, e outra vinculante, que se realiza mediante planos de atuação concreta, de natureza executiva.

Previsto e exigido pela Constituição (arts. 48, IV, 182 CF e art. 180, II, da CE), tornou imposição jurídica a obrigação de elaborar planos, estudos quando se trate da elaboração normativa relativa ao estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano.

A ordenação do uso e ocupação do solo é um dos aspectos substanciais do planejamento urbanístico. Preconiza uma estrutura orgânica para a cidade, mediante aplicação de instrumentos legais como o do zoneamento e de outras restrições urbanísticas que, como manifestação concreta do planejamento urbanístico, tem por objetivo regular o uso da propriedade do solo e dos edifícios em áreas homogêneas no interesse do bem-estar da população, conformando-os ao princípio da função social.

A sistemática constitucional - relativa à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo - evidencia que o casuísmo, nessa matéria, não é em hipótese alguma admissível.

Não se admite, nesse quadro, modificações individualizadas, pontuais, casuísticas e dissociadas da estrutura sistêmica da utilização de todo o solo urbano. Caso contrário, tornaria inócuo e sem qualquer validade todo o planejamento e estudos realizados pelo Poder Executivo, para fins de elaboração e aprovação do Plano Diretor e da Lei do Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano, pois qualquer iniciativa parlamentar poderia redundar na completa alteração de tudo o quanto planejado e decidido até então.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual e Federal.

Vale lembrar que a transformação da realidade urbana interfere amplamente na propriedade privada urbana, impondo limites e condicionamentos ao seu uso.

Assim, a validade e a legitimidade da norma urbanística, em virtude dos condicionamentos e limitações que impõe à atividade e aos bens dos particulares e de seu objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, pressupõem participação comunitária em todas as fases de sua produção.

A transformação da realidade urbana interfere amplamente na propriedade privada urbana, impondo limites e condicionamentos ao seu uso.

Os planos e normas urbanísticas devem levar em conta o bem-estar do povo. Cumprem esta premissa quando são sensíveis às necessidades e aspirações da comunidade. Esta sensibilidade, porém há de ser captada por via democrática e não idealizada autoritariamente. O planejamento urbanístico democrático pressupõe possibilidade e efetiva participação do povo na sua elaboração.

Sendo democrático, ele se coloca contra pressões ilegítimas ou equivocadas em relação ao crescimento e ordenamento da cidade, busca contê-la e orientá-las adequadamente.

Desta forma, a alteração da destinação urbanística dada à área pelo Plano Diretor e pelos atos normativos municipais violou o princípio da participação comunitária no estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano (Constituição Estadual arts. 180, II e 191 e Federal art. 29, XII).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do não conhecimento do incidente de inconstitucionalidade, e caso conhecido merece acolhimento para reconhecer a inconstitucionalidade do inciso VII do art. 1° da Lei nº 13.880/2004 e do Decreto nº 48.116/2007, do Município de São Paulo.

                 São Paulo, 05 de agosto de 2014.

 

 

 Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

aca                                            Jurídico