Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0045657-77.2014.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 6ª Câmara de Direito Público

Apelante: PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO E REEXAME NECESSÁRIO

Apelada: (...)

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Instrução Normativa SF/SUREM Nº 19/11, do Município de São Paulo, que suspende a emissão de Notas Fiscais Eletrônicas por contribuintes em dívida com o Imposto Sobre Serviços (ISS).

2)      Ato normativo inconstitucional, pois: (a) limita indevidamente o exercício de atividade econômica lícita (art. 170, parágrafo único da CF); (b) viola o princípio da razoabilidade, que decorre do princípio-garantia do devido processo legal em sentido substancial (art. 5º, LIV da CF; art. 111 da Constituição Paulista); (c) impõe restrição ao exercício de sua atividade não prevista em lei, em nítida violação ao princípio da legalidade (art. 5º. II da CF).

3)      Parecer no sentido do conhecimento e acolhimento da arguição de inconstitucionalidade.

 

 

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 6ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da Apelação nº 1000649-95.2014.8.26.0053, relator o Desembargador Leme de Campos, na sessão realizada em 19 de maio de 2014 (v. acórdão às fls. 127/140).

A Col. Câmara suscitou a inconstitucionalidade relativamente à Instrução Normativa SF/SUREM 19/11, constando do julgado a seguinte ementa:

 “(...)

MANDADO DE SEGURANÇA - Instrução Normativa SF/SUREM nº 19/11 Suspensão da emissão de notas fiscais eletrônicas de contribuintes inadimplentes – Impossibilidade - É inadmissível a criação de óbices à atividade econômica como medida coercitiva para pagamento de tributos Inteligência das Súmulas nº 70, 323 e 547 do STF, aplicáveis ao caso - Precedentes - INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE - Questão prejudicial que deve ser apreciada pelo E. Órgão Especial desta Corte - Aplicação da Súmula Vinculante nº 10 do STF - Remessa ao E. Órgão Especial do TJSP -Recurso não conhecido, com determinação.

(...)”

Do voto do relator consta a seguinte elucidativa passagem:

“(...)

Inicialmente, tem-se que a Nota Fiscal de Serviços Eletrônicos – NFSe, instituída pelo artigo 10-A da lei 13.476, de 30/12/2002, é documento emitido e armazenado eletronicamente em sistema próprio da PMSP, tendo por objetivo registrar as operações relativas à prestação de serviços e substituir as Notas Fiscais Convencionais.

No caso em apreço, a questão controversa diz respeito à aplicação da Instrução normativa nº 19/SF/SUREM/2011, que impede a emissão de notas fiscais de serviço para os contribuintes, inadimplentes.

(...)

Ora, da leitura da Instrução Normativa SF/SUREM nº 19/11, extrai-se clara ilação de que a suspensão do direito de emitir notas fiscais de serviços eletrônicos, de fato, configura impedimento ao exercício livre e regular da atividade econômica.

Com efeito, o aludido instrumento normativo possui evidente caráter de sanção política, na medida em que a sua utilização visa a induzir/coagir o contribuinte ao pagamento do tributo, por conta da restrição ao acesso à emissão de notas fiscais eletrônicas, o que, apesar de não inviabilizar totalmente a continuidade da atividade econômica, se mostra medida desarrazoada, já que mitiga o direito do impetrante ao exercício do livre comércio, o que não pode ser permitido.

Aliás, tal entendimento já está consolidado no Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a adoção pela Administração Pública de meios coercitivos para o pagamento de tributos, revela-se inadequada à luz do ordenamento jurídico-tributário, consoante as súmulas 70, 323 e 547, a saber:

 (...)”

É o relato do essencial.

O incidente deve ser admitido, e deve ser acolhida a arguição de inconstitucionalidade.

A Instrução Normativa SF/SUREM 19/11, da Municipalidade de São Paulo, tem a seguinte redação:

“(...)

Disciplina a suspensão da autorização para emissão da Nota Fiscal de Serviços Eletrônica – NFS-e para os contribuintes inadimplentes e a emissão da Nota Fiscal Eletrônica do Tomador/Intermediário de Serviços - NFTS.

O SECRETÁRIO MUNICIPAL DE FINANÇAS, no uso das atribuições que lhe são conferidas por lei,

RESOLVE:

Art. 1º. A emissão da Nota Fiscal de Serviços Eletrônica – NFS-e para pessoas jurídicas e condomínios edilícios residenciais ou comerciais estabelecidos no Município de São Paulo terá sua autorização suspensa quando o contribuinte, pessoa jurídica domiciliada no Município de São Paulo, estiver inadimplente em relação ao recolhimento do Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza – ISS.

Art. 2º. Para fins de suspensão da autorização da emissão da NFS-e de que trata o artigo 1º, considera-se inadimplente em relação ao recolhimento do ISS o contribuinte, pessoa jurídica domiciliada no Município de São Paulo, que alternativamente:

I – deixar de recolher o ISS devido por 4 (quatro) meses de incidência consecutivos;

II - deixar de recolher o ISS devido por 6 (seis) meses de incidência alternados dentro de um período de 12 (doze) meses.

Art. 3º. A autorização para emissão da NFS-e ocorrerá sempre que a regularização de débitos pelo contribuinte o desenquadre das condições previstas nos incisos I e II do artigo 2º.

Art. 4º. Face ao disposto no § 1º, inciso I, do artigo 7º da Lei 13.701, de 24 de dezembro de 2003, as pessoas jurídicas e os condomínios edilícios residenciais ou comerciais estabelecidos no Município de São Paulo, quando tomarem serviços de pessoa jurídica domiciliada no Município de São Paulo que não emitir NFS-e em razão da suspensão da autorização de que trata o artigo 1º desta instrução normativa, deverão emitir a Nota Fiscal Eletrônica do Tomador/Intermediário de Serviços – NFTS, reter na fonte e recolher o ISS devido.

Art. 5º. Esta instrução normativa entrará em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos a partir de 01 de janeiro de 2012.

(...)”

Com a devida vênia, manifesta-se de forma evidente a inconstitucionalidade por mais de um motivo: (a) limita-se indevidamente, através da suspensão da autorização para emissão das notas fiscais eletrônica, o exercício de atividade econômica lícita, contrariando-se o art. 170, parágrafo único da CF; (b) viola-se o princípio da razoabilidade, que decorre do princípio-garantia do devido processo legal em sentido substancial, pois não se mostra razoável que a cobrança de dívida fiscal seja realizada limitando ou impedindo, em certos casos, o exercício da própria atividade econômica, contrariando-se o art. 5º, LIV da CF; (c) impõe-se ao destinatário da diretriz normativa restrição ao exercício de sua atividade não prevista em lei, em nítida violação ao princípio da legalidade, previsto no art. 5º. II da CF.

De fato, ao impedir a emissão de notas fiscais eletrônicas relativas a serviços tributados através do Imposto Sobre Serviços (ISS), tendo como motivo para essa providência a existência de dívida tributária não quitada por parte do prestador do serviço, a Municipalidade está a limitar (ou até mesmo, em hipóteses concretas, a impedir), indevidamente, o exercício de atividade econômica lícita.

É nítida, nessa hipótese, a violação do art. 170, parágrafo único da CF, pelo qual é assegurado a todos o livre exercício da atividade econômica.

Não bastasse isso, a restrição imposta ao sujeito passivo tributário, nos termos da Instrução Normativa SF/SUREM nº 19/11 contraria o princípio da razoabilidade, não se mostrando apta a superar nenhum dos “testes” relativos a esse princípio, consistentes nos exames: (a) da necessidade da imposição normativa, (b) da adequação da norma aos seus fins; (c) e da proporcionalidade em sentido estrito.

A providência prevista no ato normativo impugnado é nitidamente desnecessária, visto que o Poder Público já possui privilegiados meios para a realização da cobrança da dívida ativa, dispondo, diga-se de passagem, do procedimento previsto na legislação tributária e na Lei de Execuções Fiscais (Lei nº 6830/80), que inclui a possibilidade de formação unilateral de título executivo extrajudicial, através da inscrição da dívida ativa e posterior extração da relativa certidão, que serve para aparelhar o processo de execução.

Trata-se de procedimento executivo superiormente mais ágil e eficaz que a execução comum, que o sistema normativo põe à disposição de todos os demais credores, para exigir em juízo o cumprimento das obrigações que lhes são devidas.

Daí a aludida desnecessidade.

Por outro lado, mostra-se inadequada a diretriz contida no ato normativo ora analisado, visto que ele produz um efeito indesejável, qual seja o impedimento ou limitação ao exercício da atividade econômica, produtiva, pelo contribuinte.

Finalmente, há manifesta desproporcionalidade em sentido estrito, pois não se mostra aceitável que, a pretexto de cobrar dívidas existentes, o fisco impeça ou limite sobremaneira, na prática, o exercício de atividade lícita e produtiva.

Daí a contrariedade ao princípio da razoabilidade, que pode ser extraído, na sistemática constitucional em vigor, da projeção substancial do princípio do devido processo legal, previsto no art. 5º, LIV da CF, pois aqueles que detém o poder de editar atos normativos materiais devem fazê-lo em consonância com parâmetros razoáveis ou aceitáveis.

Ademais, a contrariedade, quando se toma como parâmetro a Constituição do Estado de São Paulo, também aplicável à hipótese, decorre da ofensa ao art. 111 da Carta Bandeirante, que adota expressamente o princípio da razoabilidade como preceito a ser seguido pela Administração Pública.

Por último e não menos importante, na medida em que o ato normativo impugnado cria uma restrição ao exercício de direito não prevista em lei, ofende o art. 5º, II da CF.

Acertada se mostra a invocação, no v. acórdão que suscitou o presente incidente, das súmulas da jurisprudência dominante do STF de nº 70, 323 e 547, a seguir transcritas, aplicáveis ao caso mutatis mutandis:

“(...)

Súm. 70. É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.

Súm. 323. É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.

Súm. 547. Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.

(...)”

Todas elas estão assentadas na mesma ideia fundamental: não é legítimo que o Poder Público, a pretexto de efetuar a cobrança de seus créditos fiscais, impeça o exercício da atividade econômica lícita.

A jurisprudência do STF tem, em consonância com as súmulas acima mencionadas, reiteradamente proscrito a utilização, pelo Poder Público, de meios que, indiretamente, figurem como forma de coerção ao pagamento, pelo contribuinte, de dívidas fiscais.

Confira-se:

“(...)

“Tributário. Norma local que condiciona a concessão de regime especial de tributação à apresentação de CND. Meio indireto de cobrança de tributo. Ofensa ao princípio da livre atividade econômica.” (AI 798.210-AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 8-5-2012, Segunda Turma, DJE de 24-5-2012.)

(...)

Em síntese, a legislação local submete o contribuinte à exceção de emitir notas fiscais individualizadas, quando em débito para com o fisco. Entendo conflitante com a Carta da República o procedimento adotado. (...) A lei estadual contraria, portanto, os textos constitucionais evocados, ou seja, a garantia do livre exercício do trabalho, ofício ou profissão – inciso XIII do art. 5º da Carta da República – e de qualquer atividade econômica – parágrafo único do art. 170 da CF." (RE 413.782, voto do Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 17-3-2005, Plenário, DJ de 3-6-2005.)

(...)

"Ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas contra os arts. 1º, I, II, III e IV, § 1º a § 3º, e 2º da Lei 7.711/1988 (...). Esta Corte tem historicamente confirmado e garantido a proibição constitucional às sanções políticas, invocando, para tanto, o direito ao exercício de atividades econômicas e profissionais lícitas (...), a violação do devido processo legal substantivo (falta de proporcionalidade e razoabilidade de medidas gravosas que se predispõem a substituir os mecanismos de cobrança de créditos tributários) e a violação do devido processo legal manifestado no direito de acesso aos órgãos do Executivo ou do Judiciário tanto para controle da validade dos créditos tributários, cuja inadimplência pretensamente justifica a nefasta penalidade, quanto para controle do próprio ato que culmina na restrição. É inequívoco, contudo, que a orientação firmada pelo STF não serve de escusa ao deliberado e temerário desrespeito à legislação tributária. Não há que se falar em sanção política se as restrições à prática de atividade econômica objetivam combater estruturas empresariais que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente sua maior vantagem concorrencial. Para ser tida como inconstitucional, a restrição ao exercício de atividade econômica deve ser desproporcional e não razoável. Os incisos I, III e IV do art. 1º violam o art. 5º, XXXV, da Constituição, na medida em que ignoram sumariamente o direito do contribuinte de rever em âmbito judicial ou administrativo a validade de créditos tributários. Violam também o art. 170, parágrafo único, da Constituição, que garante o exercício de atividades profissionais ou econômicas lícitas." (ADI 173 e ADI 394, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 25-9-2008, Plenário, DJE de 20-3-2009.)

(...)

“Recurso extraordinário interposto de acórdão prolatado pelo TRF da 2ª Região, que reputou constitucional a exigência de rigorosa regularidade fiscal para manutenção do registro especial para fabricação e comercialização de cigarros (DL 1.593/1977, art. 2º, II). Alegada contrariedade à proibição de sanções políticas em matéria tributária, entendidas como qualquer restrição ao direito fundamental de exercício de atividade econômica ou profissional lícita. Violação do art. 170 da Constituição, bem como dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. A orientação firmada pelo STF rechaça a aplicação de sanção política em matéria tributária. Contudo, para se caracterizar como sanção política, a norma extraída da interpretação do art. 2º, II, do DL 1.593/1977 deve atentar contra os seguintes parâmetros: (1) relevância do valor dos créditos tributários em aberto, cujo não pagamento implica a restrição ao funcionamento da empresa; (2) manutenção proporcional e razoável do devido processo legal de controle do ato de aplicação da penalidade; e (3) manutenção proporcional e razoável do devido processo legal de controle da validade dos créditos tributários cujo não pagamento implica a cassação do registro especial. Circunstâncias que não foram demonstradas no caso em exame.” (RE 550.769, rel. min. Joaquim Barbosa, julgamento em 22-5-2013, Plenário, DJE de 3-4-2014.)

(...)”

Por todo o exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento e acolhimento da arguição, declarando-se a inconstitucionalidade da Instrução Normativa SF/SUREM 19/11, do Município de São Paulo.

São Paulo, 28 de julho de 2014.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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