Parecer
Processo n. 0049385-63.2013.8.26.0000
Suscitante: 2ª Câmara de Direito Público
Ementa: Constitucional. Incidente de Inconstitucionalidade. Serviço público municipal de assistência médica de servidores públicos. Alteração do regime jurídico. Lei n. 8.702/04 (art. 35) do Município de Santo André. Direito adquirido. Improcedência. Não bastasse ser controversa a instituição de serviço de assistência de saúde pelo Município a seus servidores, a alteração do quadro de beneficiários por lei nova não ofende a segurança jurídica porque longe de constituir o serviço de assistência médica plano de saúde, o regime jurídico administrativo é unilateral e derrogatório do direito comum, não havendo como vindicar-se direito adquirido.
Colendo Órgão Especial:
1. Trata-se de incidente de inconstitucionalidade do art. 35 da Lei n. 8.702/04 do Município de Santo André, suscitado pela colenda 2ª Câmara da Seção de Direito Público do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento de apelação interposta contra respeitável sentença que julgou extinta sem resolução do mérito ação civil pública (fls. 469/486).
2. Segundo o venerando acórdão a Lei n. 3.600/71 assegurava a qualidade de dependentes do servidor público aposentado segurado, para efeito de assistência médica, os genitores que dele dependessem economicamente e não tivessem proventos de qualquer natureza (art. 24, VI), e a Lei n. 8.702/04 estendendo somente a assistência médica aos dependentes previdenciários dos servidores ativos (art. 35, caput) e aos dependentes de servidor inativo, enquanto ele optar pelo serviço, como cônjuge ou companheiro e filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 18 (dezoito) anos ou inválido (art. 35, parágrafo único), ofendeu o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.
3. O agravo interno oposto (fls. 490/507) não foi conhecido (fls. 513/515).
4. É o relatório.
5. A Caixa de Pensões dos Servidores Públicos Municipais de Santo André é prestadora, dentre outros, do serviço de assistência médica, e foi reorganizada e redenominada como Instituto de Previdência de Santo André, autarquia municipal, pela Lei n. 8.702 de 2004.
6. O exame dessa legislação, nesta oportunidade, é restrito aos termos da acusação de incompatibilidade do art. 35 da Lei n. 8.702/04 com o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, que alberga o princípio da segurança jurídica ao proibir a retroatividade de lei que prejudique direito adquirido.
7. O vínculo jurídico estabelecido entre a autarquia municipal e os servidores públicos municipais remonta à Lei n. 2.126, de 1963, mediante contribuições pagas por aqueles, o que foi mantido pela Lei n. 3.600, de 1971.
8. Independente da natureza obrigatória ou facultativa da contribuição, há uma questão prefacial consistente na possibilidade jurídica de o Município instituir e manter serviço de assistência médica a seus servidores.
9. Leis nesse sentido
são inconstitucionais por incompatibilidade com os arts. 111, 144, 218, 219, parágrafo único n. 2,
222, IV e V, e 223, I, da Constituição do Estado de São Paulo e os arts. 5º, caput, 23, II, 30, VII, 37, 194, 195,
198, II, § 1º, e 202, § 4º, da Constituição da República.
10. Agentes e servidores públicos municipais
(ativos e inativos) e seus dependentes, além do regular atendimento público de
saúde pela rede do Sistema Único de Saúde (SUS) disponibilizado para toda
população, desfrutam de uma assistência à saúde exclusiva, porém, custeada
(ainda que em parte) pelos cofres municipais, com recursos oriundos da
tributação arcada pelos demais munícipes.
11. Daí exsurge a incompatibilidade com
o princípio da igualdade que não bastasse governar toda e qualquer atividade
administrativa é impositivo especificamente para os serviços públicos de saúde
de qualquer esfera ou nível (arts. 5º, 30, VII, 37, 194, parágrafo único, I, e
198, II, Constituição Federal; arts. 111, 218, 219, parágrafo único, 2, 222,
IV, e 223, I, Constituição Estadual).
12.
Viola o princípio da
igualdade tanto o tratamento desigual para situações idênticas, como o
tratamento idêntico para situações que são diferenciadas.
13.
Como anota Celso Antônio
Bandeira de Mello, “o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas
igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como
desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores
desiguais. E, por fim, consoante averbado insistentemente, cumpre ademais que a
diferença do regime legal esteja correlacionada com a diferença que se tomou em
conta” (Conteúdo jurídico do princípio da
igualdade, São Paulo: Malheiros, 2004, 3ª ed., 12ª tir., p. 35).
14.
Esse é o sentido do princípio
da isonomia, salientado por José Afonso da Silva, ao afirmar que “a realização
da igualdade perante a justiça, assim, exige a busca da igualização de
condições dos desiguais” (Curso de
direito constitucional positivo, São Paulo: Malheiros, 13ª ed., 1997, p. 215).
15.
A diferenciação feita pelo
legislador é possível quando, objetivamente, constatar-se um fator de discrímen
que dê razoabilidade à diferenciação de tratamento contida na lei, pois a
igualdade pressupõe um juízo de valor e um critério justo de valoração,
proibindo o arbítrio, que ocorrerá “quando a disciplina legal não se basear
num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii)
estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável” (J. J. Gomes
Canotilho. Direito constitucional e
teoria da constituição, Coimbra: Almedina, 3ª ed., 1998, pp. 400-401).
16.
Além disso, no constitucionalismo
moderno “a função de impulso e a natureza dirigente do princípio da igualdade
aponta para as leis como um meio de aperfeiçoamento da igualdade através da
eliminação das desigualdades fácticas” (J. J. Gomes Canotilho. Constituição dirigente e vinculação do
legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais
programáticas, Coimbra: 2ª ed., Coimbra Editora, 2001, p. 383).
17.
O que o princípio em verdade
veda é que a lei vincule uma “consequência a um fato que não justifica tal
ligação”, pois, o vício de inconstitucionalidade por violação da isonomia deve
incidir quando a norma que promove diferenciações sem que haja “tratamento
razoável, equitativo, aos sujeitos envolvidos” (Celso Ribeiro Bastos. Curso de direito constitucional, São Paulo:
Saraiva, 18ª ed. São Paulo, 1997, pp. 181-182).
18.
A valoração daquilo que
constitui o conteúdo jurídico do princípio constitucional da igualdade, ou
seja, a vedação de uma “regulação desigual de fatos iguais” (Konrad Hesse. Elementos de direito constitucional da
República Federal da Alemanha, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1998,
p. 330, tradução de Luís Afonso Heck,), deve ser realizada caso a caso, com
base na razoabilidade e proporcionalidade na análise dos valores envolvidos,
pois “não há uma resposta de uma vez para sempre estabelecida” (ob. cit., p. 331).
19.
Em outras palavras, além do
aspecto negativo do princípio, como vedação de tratamento desigual a situações
e pessoas em condição similar, traz conotação positiva, para conceder ao
legislador a missão de, pela elaboração normativa, com parâmetro nos obstáculos
e desigualdades reais, equiparar, ou equilibrar situações, materializando
efetivamente o conteúdo concreto da isonomia. Pela elaboração normativa, o
legislador poderá afastar óbices de qualquer ordem que limitem a aproximação
efetiva daqueles que se encontram sob a égide do ordenamento jurídico (Paolo
Biscaretti Di Ruffia. Diritto
constituzionale, Napoli: Jovene, 15ª ed., 1989, p. 832).
20.
No caso em exame, o que se verifica
é a inexistência de qualquer fundamento concreto e razoável que justifique a
prestação de serviços de saúde pelo poder público municipal em favor
exclusivamente de seus servidores municipais (ativos e inativos) e
pensionistas.
21.
Correto concluir, assim, que
tendo o legislador tratado de forma diversa os servidores públicos municipais
ativos e inativos e pensionistas que estão em idêntica situação que os demais
munícipes, violou o princípio da isonomia, editando normas inconstitucionais.
22.
A Constituição Federal elevou
o Sistema Único de Saúde – SUS à condição institucional, albergando em um só
conjunto os serviços de saúde federal, estadual e municipal, sem, contudo,
eliminar as atuações isoladas dos três entes federativos.
23.
Ao Município cabe, em
cooperação com a União e o Estado, cuidar da saúde e da assistência pública, da
proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência (art. 23, II,
Constituição Federal), e prestar, com a cooperação técnica e financeira da
União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população (art. 30, VII,
Constituição Federal).
24.
Esse é um ponto muito
importante que, não bastasse reforçar o atentado à isonomia acima exposto,
denota a inconstitucionalidade da própria instituição de serviço público de
saúde cuja fruição, à margem da unicidade do Sistema Único de Saúde, deve ser
gratuita.
25.
Com efeito, segundo as regras
acima invocadas da Constituição Federal e da Constituição Estadual, a União, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios estão integrados em uma rede única
de prestação do serviço público de saúde.
26.
Daí decorre a vedação da
instituição pelos Municípios de serviço público de saúde à margem dessa rede ou
de serviço privado de saúde com contribuições obrigatórias ou facultativas de
seus segurados além do financiamento oriundo do próprio erário. Em outras
palavras, não há direito à secessão.
27.
Nisso se patenteia violação
ao art. 198, caput, da Constituição
Federal e ao art. 222, caput, da
Constituição Estadual, e que é, aliás, corroborada pelo art. 202, § 4º, da
Constituição Federal, que ao assegurar o poder público copatrocinar entidades
privadas de previdência complementar não o autoriza a tanto em favor de
entidades ou órgãos públicos de prestação dos serviços de saúde em favor de
agentes públicos.
28.
O art. 30, VII, da
Constituição Federal, igualmente violado, alicerça estas premissas, pois, é
dever municipal prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do
Estado, serviços de atendimento à saúde da população, e não somente a seus
agentes públicos.
29.
Ademais, a
inconstitucionalidade se robustece quando se constata que o serviço público de
saúde dos agentes públicos municipais é financiado tanto por recursos do erário
quanto destes últimos na condição de segurados.
30.
Pois, para além da
compulsoriedade ou não da contribuição dos segurados, a regra, no direito
brasileiro vigente, é a gratuidade dos serviços de saúde prestados pela União,
pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, como se infere do art.
198, § 1º, da Constituição Federal e do art. 222, V, da Constituição Estadual.
31.
Para além, denota-se ofensa
ao princípio da razoabilidade (art. 37, Constituição Federal; art. 111,
Constituição Estadual). O Sistema Único de Saúde é financiado pela União, pelo
Estado e pelo Município (art. 198, parágrafo único, Constituição Federal).
Esses recursos devem reverter em prol da população e não de uma parcela, de
maneira que é vedado ao Município na prestação dos serviços de saúde atender
exclusivamente seus agentes públicos.
32. Isso fere o princípio da
razoabilidade e contraria o interesse público posto que se já existe o Sistema
Único de Saúde à disposição de todos os munícipes, não é razoável que o Poder
Público custeie em grande parte a citada assistência médica própria e, ainda, a
garanta em caso de insuficiência financeira.
33. Não bastasse essa advertência
inicial, não se partilha, concessa venia,
da concepção de ofensa ao direito adquirido.
34. Longe de constituir o serviço de assistência
médica plano de saúde, é imperioso obtemperar que o regime jurídico
administrativo é unilateral e derrogatório do direito comum, não havendo como
vindicar-se direito adquirido.
35. Face ao exposto, opino pelo desacolhimento do incidente. São Paulo, 27 de março de 2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj