Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo 0054197-80.2015.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Objeto: Lei nº 2.985, de 13 de setembro de 2011, do Município de Barra Bonita

 

 

                                               Ementa:

 

 

1)                 Incidente de inconstitucionalidade. Lei nº 2.985, de 13 de setembro de 2011, do Município de Barra Bonita, que “extingue trecho da via pública que especifica, promove sua desafetação e autoriza sua doação”.

2)                 Ato normativo que prevê a autorização para alienação de imóvel (logradouro público), mediante doação, à pessoa jurídica de direito privado com fins particulares. Inconstitucionalidade reconhecida. Contrariedade aos artigos 111 e 117 da CE/89, bem como ao 5º, “caput”, e 37, “caput” e XXI, da CF/88 (violação aos princípios da impessoalidade, isonomia, exigência de licitação, moralidade e razoabilidade).

3)                 Parecer pelo conhecimento e acolhimento do incidente.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator:

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça Bandeirante, quando do julgamento de apelação interposta pelo Prefeito Municipal e pela (...), buscando reformar a r. decisão proferida pelo MM. Juízo da 1ª Vara do Foro de Barra Bonita, que julgou procedente a ação civil pública ajuizada pelo DD. Promotor de Justiça de Barra Bonita, São Paulo.

A ação civil pública foi julgada procedente para declarar incidentalmente a inconstitucionalidade da Lei nº 2.985, de 13 de setembro de 2011, do Município de Barra Bonita, anulando-se o ato de doação do logradouro público, bem ainda para (i) condenar o Prefeito Municipal à suspensão de seus direitos políticos pelo prazo de dois anos, (ii) condenar a (...) à proibição de contratar com o Poder Público ou dele receber benefícios ou incentivos fiscais pelo prazo de cinco anos e (iii) julgar extinto o processo, sem análise do mérito, com relação ao Município da Estância Turística de Barra Bonita (fls. 1.147/1.456).

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade da Lei nº 2.985, de 13 de setembro de 2011, do Município de Barra Bonita, São Paulo (fls. 59/60), que autorizou a alienação de imóvel (logradouro público), por doação, à pessoa jurídica de direito privado com fins particulares (fls. 1.436/1.448).

É o relato do essencial.

O incidente deve ser conhecido e merece acolhimento.

A Lei nº 2.985, de 13 de setembro de 2011, do Município de Barra Bonita, dispõe:

Art. 1º - Fica extinta do sistema viário da zona urbana deste Município o TRECHO “B” da RUA THOMAZ PETRI, com 1.666,99 metros quadrados, no bairro Parque Industrial São Domingos.

Art. 2º - Fica desafetada da condição de ‘bem de uso comum do povo’ e transferida para a categoria de ‘bem dominical’ a área correspondentes à via pública extinta pelo artigo anterior, assim descrita:

IMÓVEL: ‘SISTEMA VIÁRIO do loteamento ‘Parque Industrial São Domingos’ correspondente a RUA THOMAZ PETRI – TRECHO ‘B’ (em lugar da Rua ‘G’), localizado nesta cidade e Comarca de Barra Bonita, com a seguinte descrição: Inicia-se na margem direita (lado par) da RUA ARLINDO DECIO GRANETTO em curva com raio de 11,00 metros na distância de 11,70 metros, confrontando com o lote nº 03 da Quadra 13 (treze); deste ponto segue com a distância de 110,79 metros, confrontando com os lotes 03 e 01 respectivamente e pela RUA ANTONIO PETRI (em lugar da Rua ‘O’); até encontrar o alinhamento da RUA ANTONIO PETRI, daí deflete à esquerda confrontando com a RUA THOMÁS PETRI – TRECHO ‘C’, segue numa distância de 15,95 metros, deste ponto deflete a esquerda seguindo em linha reta na distância de 106,86 metros, confrontando os lotes 05, 07 e 12 da Quadra 16 até encontrar o início da curva com raio de 6,00 metros na distância de 12,47 metros, até encontrar a margem direita (lado par) da RUA ARLINDO DÉCIO GRANETTO; deste ponto segue 32,64 metros em linha reta pela margem direita (lado par) da referida RUA ARLINDO DÉCIO GRANETTO, até encontrar o ponto inicial desta descrição, fechando assim uma área de 1.666,99 metros quadrados.’

Art. 3º - Fica o Poder Executivo autorizado a proceder a alienação do imóvel mencionado no artigo 2º, por doação, à empresa (...), inscrita no CNPJ nº 52.661.634/0001-99, com sede na rua Thomaz Petri, nº 140, Parque Industrial São Domingos, cidade de Barra Bonita, Estado de São Paulo.

Art. 4º - O imóvel deverá ser destinado exclusivamente para as atividades empresariais da donatária.

Parágrafo único – O descumprimento da obrigação prevista no caput implicará na revogação de pleno direito da doação e na consequente retrocessão do bem ao Patrimônio Municipal, independentemente de qualquer ressarcimento por parte do Município.

Art. 5º - As despesas para remoção e implantação das redes de energia elétrica, água e esgoto, galerias pluviais, guias e sarjetas, e ainda as de escritura pública, desmembramentos e demais despesas, serão de responsabilidade da donatária, sem ônus ao Município.

Art. 6º - Para a concretização da doação, fica o Prefeito Municipal autorizado a assinar a competente escritura pública e demais documentos que se fizerem necessários, devendo constar da referida escritura as condições previstas nesta Lei.

Art. 7º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, ficando revogadas as disposições em contrário.” (sic)

Com efeito, o ato normativo impugnado, ao autorizar a alienação de bem público, por doação, para pessoa jurídica de direito privado com fins particulares, violou os princípios da igualdade (art. 5º, “caput”, da CF/88), da impessoalidade, moralidade, razoabilidade, interesse público (artigos 111 da CE/89 e 37, “caput”, da CF/88), e, em última análise, como adiante se demonstrará, a regra da licitação (artigo 117 da CE/89 e 37, XXI, da CF/88).

A lei local não se alinha com os princípios acima mencionados ao autorizar a alienação por doação de bem público imóvel sem submissão a processo que garanta condições de igualdade entre os interessados, indicando diretamente em seu texto o respectivo beneficiário.

Ademais, o art. 117 da Constituição Estadual, reprodutor do inciso XXI do art. 37 da Constituição Federal, impõe a obrigatoriedade de licitação em qualquer modo ou forma de alienação de bens públicos – preceito aplicável aos Municípios por obra dos arts. 144 e 297 da Constituição Estadual – e que, notadamente, decorre dos princípios da igualdade (artigo 5º, “caput”, da CF/88) e da impessoalidade (art. 111 da Constituição Paulista e 37, “caput”, da CF/88).

A Constituição Federal assim dispõe:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(...)

XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”.

A Constituição Paulista repete tais preceitos:

“Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Artigo 117 - Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”

Celso Antônio Bandeira de Melo, ao tratar do princípio da impessoalidade e de sua previsão constitucional, estabelece:

“Nele se traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismos nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia. Está consagrado explicitamente no art. 37, caput, da Constituição. Além disso, assim como ‘todos são iguais perante a lei (art. 5º, caput), a fortiori teriam de sê-lo perante a Administração.” (Curso de Direito Administrativo. 22ª Ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2007, p. 110) (sic)

Enfatiza-se que o diploma normativo objurgado, na medida em que procedeu à desafetação do bem e, posteriormente, à doação a pessoa jurídica determinada, desrespeitou flagrantemente os princípios da impessoalidade e da isonomia previstos nas Constituições Federal e Estadual.

Não é só. Na hipótese, resta duvidoso o interesse público. A alegação segundo a qual, com a doação do logradouro público à pessoa jurídica, seriam ampliadas as atividades empresariais, a arrecadação tributária municipal e a oferta de empregos locais é insubsistente e, por si só, não materializa o interesse público.

Ainda que se pudesse considerar como existentes interesses superiores e inerentes à coletividade com a doação de um logradouro público a particulares, legitimaria a intenção a oferta a outros interessados.

Daí porque, além de violar os princípio da impessoalidade, isonomia e exigência de licitação, a Lei nº 2.985/11 feriu o art. 111 da Constituição Estadual, desprestigiando os princípios da razoabilidade, moralidade e interesse público que devem nortear a atuação da Administração Pública e a atividade legislativa, aplicável aos Municípios por força do artigo 144 da mesma Carta.

É necessário que a norma passe pelo denominado “teste” de razoabilidade, vale dizer, que ela seja: (a) necessária (a partir da perspectiva dos anseios da Administração Pública); (b) adequada (considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar); e (c) proporcional em sentido estrito (que as restrições, imposições ou ônus dela decorrentes não sejam excessivos ou incompatíveis com os resultados a alcançar).

A doação de logradouro público à pessoa jurídica de direito privado determinada, com fins particulares, não passa por nenhum dos critérios do teste de razoabilidade: (a) não atende a nenhuma necessidade da Administração Pública, vindo em benefício exclusivamente da conveniência da empresa contemplada; (b) afigura-se, por consequência, inadequada na perspectiva do interesse público; (c) é desproporcional em sentido estrito, pois transfere o domínio de bem de uso comum do povo a beneficiária específica, prestigiando-a

A justificativa do projeto de lei (fl.  56), e seu art. 4º, reforçam a ideia de que, mais do que a atenção com o interesse público, o ato normativo teve como fundamento a facilitação da atividade empresarial desenvolvida pela beneficiária, de forma notadamente inconstitucional.   

Entendimento similiar já foi adotado pelo Col. Órgão Especial quando do julgamento da ADI 170.820.9/0-00, Rel. Aloísio de Toledo César, j. 6.5.2009, com a seguinte ementa:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal n. 2.051/97, de Salto, que autoriza a concessão de uso de prédio municipal para instituição de ensino privado com fins lucrativos – Inconstitucionalidade reconhecida. Ao reger matéria tipicamente administrativa, a Câmara Municipal de Salto excluiu de forma peremptória a discricionariedade da Administração, sendo inconstitucional, por ofensa ao princípio da separação de poderes, inserto no art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, e que, por força do art. 144 daquele mesmo texto constitucional, os Municípios estão obrigados a observar – Inaceitável a criação de caso de dispensa de licitação não prevista na Lei 8666/93, infringindo os princípios da impessoalidade e da licitação, esculpidos nos arts. 111 e 117 da Constituição do Estado de São Paulo. Ação julgada procedente. (...)”

Do mesmo modo, aplicável ao caso mutatis mutandis, quando do julgamento da ADI 168.129-0/5-00, Rel. Des. José Reynaldo, j. 4.3.2009, assim ementado:

“(...) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal autorizando a cessão gratuita de bem público municipal, com isenção de tarifa de bem público municipal, com isenção de tarifa de água e esgoto, a empresa com fins lucrativos, para ser utilizado para prática desportiva. Duvidoso o interesse público na cessão e insuperável a necessidade de prévio procedimento licitatório. Quebra dos princípios da moralidade, razoabilidade e impessoalidade. Ofensa aos artigos 111 e 117 da Constituição do Estado de São Paulo, aplicável aos Municípios por força do artigo 144 do mesmo diploma. Inconstitucionalidade reconhecida. Ação procedente.”

Portanto, considerando que o art. 37, XXI, da Constituição Federal estabeleceu, como regra, a alienação mediante processo de licitação pública, pela administração pública direta e indireta, justamente com a finalidade de garantir o respeito aos princípios da impessoalidade, isonomia, interesse público, razoabilidade e moralidade, revela-se inconstitucional lei municipal específica que autoriza a alienação por doação de bem imóvel à determinada pessoa jurídica de direito privado.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e seu acolhimento, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.985, de 13 de setembro de 2011, do Município de Barra Bonita.

                           São Paulo, 09 de setembro de 2015.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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