Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Processo n. 0055390-33.2015.8.26.0000

Suscitante: 12ª Câmara de Direito Público

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Incidente de Inconstitucionalidade. Lei n. 3.854/99 do Município de São Caetano do Sul. Serviço Funerário. Instalação de estabelecimentos congêneres em um raio de 3 mil metros. Súmula Vinculante 49 STF. 1. Não há na lei enfocada qualquer elemento razoável para se arquitetar a discriminação nela contida. Ao Município compete a disciplina do uso e da ocupação do solo urbano. Mas, o manejo de sua competência normativa não admite a inscrição de discriminações gratuitas e sem respaldo nos valores gizados na ordem jurídica constitucional. Como se sabe, as diferenciações devem ter justificativa racional que as sustente e suporte na Constituição 2. Por restringir o exercício da atividade de maneira claramente desarrazoada, o diploma em análise ofende os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência. 3. Violação aos arts. 111 e 144 da CE. 4. Procedência da arguição.

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

               Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela colenda 12ª Câmara de Direito Público no julgamento de apelação interposta contra respeitável sentença que concedeu a segurança que se refere ao impedimento por ato do poder público de instalação de estabelecimentos congêneres, funerárias, em distância mínima de 3 mil metros (fls. 113/115).

               É o relatório.

               A Lei n. 3.854, de 25 de novembro de 1999, dispõe:

“Artigo. Fica vedada a instalação de empresas permissionárias do serviço funerário do Município em todas as zonas a que se refere a Lei no. 2.973, de 29. 11.1988,  desde que não observada a distância mínima de 3.000 (três mil) metros entre o local solicitado e o estabelecimento congênere mais próximo.

Parágrafo Único: As empresas já existentes que atuam nesse ramo, não ficarão impedidas de executar futuras ampliações nos seus estabelecimentos.

Artigo 2° No caso de mudança ou transferência obrigatória da sede das empresas já existentes, decorrente de cláusula constante do contrato de locação comercial, não será aplicável a vedação contida no artigo anterior, desde que a transferência compulsória ocorra para o mesmo bairro, onde o estabelecimento encontrava-se originalmente instalado.

(...)”.

A ementa do acordão está assim redigida:

“Mandado de segurança – funerária – ato do Prefeito de indeferir a sua instalação nas proximidades de estabelecimento congênere – lei que determina a distância mínima de 3 km entre permissionárias de serviço funerário – aparente inconstitucionalidade – Lei Municipal de São Caetano do Sul n° 3.854/99, que não atende aos princípios maiores – proibição de funcionamento de funerária, que desatende os interesses dos munícipes, criando situação de indevido privilégio, que fragiliza os princípios da liberdade de iniciativa e da livra concorrência – intervenção e limitação impróprias – Município adensado populacionalmente e de pequena extensão territorial – ausência de interesse público, pressuposto de validade da norma restritiva – afronta ao art. 170, IV, da CF e à Súmula 646 do STF – arguição de inconstitucionalidade.”

 

A lei local impugnada ofende os arts. 111 e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

O art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010). Daí decorre a possibilidade de contraste de lei ou ato normativo local com o art. 144 da Constituição Estadual por sua remissão à Constituição Federal.

A lei local não é compatível com o princípio da razoabilidade, inscrito no art. 111 da Constituição Estadual, e que exige dos atos normativos padrões como justiça, bom senso, racionalidade, logicidade, coerência, proporcionalidade, e isonomia, interditando medidas arbitrárias e destituídas de interesse público e pautando a igualdade na lei, consistente na proibição de normas discriminatórias desarrazoadas, como reflexo da cláusula do substantive due process of law.

A Constituição de 1988 consagra o devido processo legal nos aspectos substantivo e processual nos incisos LIV e LV do art. 5º, respectivamente. Em sua evolução histórica, o princípio do due process of law dilatou sua compreensão processual ou adjetiva (garantia de um procedimento judicial justo, com direito de defesa) para, a latere, uma conceituação substantiva ou material no direito norte-americano, como limitação do mérito das ações estatais, exigente da elaboração normativa com justiça, reasonableness (razoabilidade) e racionality (racionalidade), devendo ostentar real e substancial nexo com o objetivo que se quer atingir. No direito germânico, o princípio da proporcionalidade (proibição do excesso) impõe a avaliação da compatibilidade entre meios e fins, de modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas contra os direitos fundamentais. No fundo, entrosam-se tais conceitos com a dimensão da igualdade na lei (proibição de normas discriminatórias desarrazoadas) e perante a lei (vedação da execução da norma com tratamento discriminatório desarrazoado).

         Por força desse princípio é necessário que a norma passe pelo denominado “teste de razoabilidade”, de maneira que preencha os seguintes elementos: adequação (aptidão a produção do resultado desejado), necessidade (infungibilidade por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcionalidade em sentido estrito (relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto).

         Ora, não há na lei enfocada qualquer elemento razoável para se arquitetar a discriminação nela contida. Ao Município compete a disciplina do uso e da ocupação do solo urbano. Mas, o manejo de sua competência normativa não admite a inscrição de discriminações gratuitas e sem respaldo nos valores gizados na ordem jurídica constitucional. Como se sabe, as diferenciações devem ter justificativa racional que as sustente e suporte na Constituição.

A restrição ao uso da propriedade demanda razoabilidade, como no estabelecimento de distância mínima entre estabelecimentos comerciais de idêntico ramo empresarial, elas são justificadas racionalmente pela proteção ao consumidor, inibindo a concentração e o distanciamento.

A restrição demanda a existência de relação entre o fator ou elemento discriminante, o discrímen e a finalidade da discriminação, ou seja, impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo(Celso Antonio Bandeira de Mello. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 49).

A diferenciação feita pelo legislador só será possível quando, objetivamente, constatar-se um fator de discrímen que dê razoabilidade à diferenciação de tratamento contida na lei, pois a igualdade pressupõe um juízo de valor e um critério justo de valoração, proibindo o arbítrio, que ocorrerá “quando a disciplina legal não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável” (J. J. Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoria da constituição, Coimbra: Almedina, 3ª ed., 1998, pp. 400-401).

A imposição de distância de 3 mil metros entre funerárias é ato que não possui razoabilidade, porque não se detecta objetivamente razão alguma para que tais estabelecimentos guardarem entre si determinadas distâncias.

Por restringir o exercício da atividade de maneira claramente desarrazoada, o diploma em análise ofende ainda os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência.

Com efeito, incide no caso o verbete da Súmula Vinculante 49 do Supremo Tribunal Federal que dispõe:

“Ofende o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área.”

Face o exposto, opino pelo acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.

São Paulo, 9 de setembro de 2015.

 

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

    Jurídico

ms/acssp