Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0055619-27.2014.8.26.0000

Suscitante: 6ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

Ementa:

CONSTITUCIONAL. URBANÍSTICO. INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 4º DA LEI COMPLEMENTAR Nº 654, DE 23 DE NOVEMBRO DE 2012, DO MUNICÍPIO DE ATIBAIA. REVOGAÇÃO DE TODAS AS RESTRIÇÕES URBANÍSTICAS CONSTANTES DAS MATRÍCULAS DE IMÓVEIS ANTERIORES A 1996.  VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 180, 181 E 190 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. AFRONTA AO ARTIGO 30, INCISO VIII DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INEQUÍVOCA AUSÊNCIA DE PARTICIPAÇÃO POPULAR. EVIDENTE FALTA DE PLANEJAMENTO PRÉVIO. CONTEÚDO, ADEMAIS, DO ATO NORMATIVO QUE REVELA GENERALIDADE INCOMPATÍVEL COM AS NORMAS DE DIREITO URBANÍSTICO CONSAGRADAS PELA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL E FEDERAL. PARECER PELO CONHECIMENTO E ACOLHIMENTO DO INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

A Associação dos Proprietários do Condomínio (...), qualificada nos autos, impetrou mandado de segurança contra ato do Sr. Secretário de Urbanismo e Meio Ambiente – Divisão de Análises e Aprovação de Projetos Particulares da Prefeitura de Atibaia, objetivando a suspensão de alvará de licença e construção concedido a (...), que o autorizou a construir, em lote que integra a área de interesse dos associados, uma vila, com área total de 1080,90 metros quadrados, subdividida em 09 casas, em manifesto desrespeito às restrições urbanísticas constantes da escritura pública aquisitiva.

Requisitadas as informações da autoridade apontada como coatora e determinada a citação do litisconsorte necessário, tanto a primeira como o segundo sustentaram a ausência de direito líquido e certo da impetrante, porquanto a Lei Complementar nº 654, de 23 de novembro de 2012, do Município de Atibaia, autorizaria a referida construção.

Confirmando-se a medida ab initio concedida, a pretensão foi julgada procedente, concedendo-se a ordem de segurança pretendida (fls. 187/192).

Inconformado com a respeitável sentença, o Município da Estância de Atibaia interpôs recurso de apelação (fls. 196/208), pretendendo a inversão do julgamento e consequente cassação do writ.

A Colenda 6ª Câmara de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, todavia, suspendeu o julgamento e encaminhou o processo para esse Colendo Órgão Especial, suscitando o incidente de inconstitucionalidade (fls. 250/256), em acórdão assim ementado:

“Mandado de Segurança – Loteamento – ATIBAIA – Suspensão de Alvará de licença para construção – INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE – Questão prejudicial que deve ser apreciada pelo E. Órgão Especial desta Corte – Aplicação da Súmula Vinculante nº 10 do STF. Remessa ao E. Órgão Especial do TJSP – Recurso não conhecido com determinação”.

É a síntese necessária.

O parecer é no sentido do conhecimento e acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.

De proêmio, cumpre observar que, de acordo com a Constituição Federal, o direito à propriedade privada deve compatibilizar-se com os interesses da coletividade e, principalmente, com a ordem ambiental e urbana, atendida, ainda, a função social da propriedade.

No âmbito federal, visando à garantia dos interesses da coletividade, foram editadas, no exercício da competência prevista no artigo 182 e 183 da Constituição da República, a Lei de Parcelamento do Solo – Lei nº 6.766/79 e o Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257/01.

Por outro lado, a Constituição Federal conferiu ao Município a competência de promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30, inciso VIII, CF).

Por aí se vê, a importância do tema em nosso ordenamento jurídico.

Pois bem, o ato normativo em razão do qual este incidente foi instaurado tem a seguinte redação:

“Lei Complementar nº 654, de 23 de novembro de 2012.

(...)

Art. 4º. Ficam suprimidos por esta Lei Complementar os regulamentos particulares dos empreendimentos de parcelamento do solo licenciados antes de 30 de outubro de 1996”.

O dispositivo, como se vê, é manifestamente inconstitucional.

Com efeito, de uma penada e, à toda evidência, sem nenhum estudo de suas consequências, foram suprimidas todas as restrições convencionais estabelecidas, pelos loteadores, nos planos de loteamento, as quais, arquivadas e transcritas nas alienações dos lotes como cláusulas urbanísticas, devem ser observadas por todos no interesse do loteamento.

O ato normativo, destarte, é absolutamente incompatível com o artigo 180 da Constituição Estadual, in verbis:

“Art. 180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

I – o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes;

II – a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, planos, programas e projetos que lhes sejam concernentes:

III – a preservação, proteção e recuperação do meio ambiente urbano e cultural;

IV – a criação e manutenção de áreas de especial interesse histórico, urbanístico, ambiental, turístico e de utilização pública;

V – a observância das normas urbanísticas, de segurança, higiene e qualidade de vida;

VI – a restrição à utilização de áreas de riscos geológicos;

VII – as áreas definidas em projetos de loteamento como áreas verdes ou institucionais não poderão ter sua destinação, fim e objetivos originariamente alterados, exceto quando a alteração da destinação tiver como finalidade a regularização de:

Loteamentos cujas áreas verdes ou institucionais estejam total ou parcialmente ocupadas por núcleos habitacionais de interesse social destinado à população de baixa renda, e cuja situação esteja consolidada ou seja de difícil reversão (...)”.

Mas não é só.

O artigo 4º da Lei Complementar nº 654/12 afronta os artigos 181 e 191 da Carta Bandeirante, os quais tem a seguinte redação:

“Artigo 181 - Lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes. 

(...)

Art. 191. O Estado e os Municípios providenciarão, com a participação da coletividade, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais e locais e em harmonia com o desenvolvimento social e econômico”.

Tais dispositivos constitucionais asseguram a participação da população em todas as matérias atinentes ao desenvolvimento urbano e ao meio ambiente, inclusive nos anteprojetos e projetos de lei, e, são reiteradamente prestigiados pela jurisprudência:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n. 2.786/2005 de São José do Rio Pardo - Alteração sem plano diretor prévio de área rural em urbana - Hipótese em que não foi cumprida disposição do art. 180, II, da Constituição do Estado de São Paulo que determina a participação das entidades comunitárias no estudo da alteração aprovada pela lei - Ausência ademais de plano diretor - A participação de Vereadores na votação do projeto não supre a necessidade de que as entidades comunitárias se manifestem sobre o projeto - Clara ofensa ao art. 180, II, da Constituição Estadual - Ação julgada procedente.” (TJSP, ADI 169.508.0/5, Rel. Des. Aloísio de Toledo César, 18-02-2009).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Leis n°s. 11.764/2003, 11.878/2004 e 12.162/2004, do município de Campinas - Legislações, de iniciativa parlamentar, que alteram regras de zoneamento em determinadas áreas da cidade - Impossibilidade - Planejamento urbano - Uso e ocupação do solo - Inobservância de disposições constitucionais - Ausente participação da comunidade, bem como prévio estudo técnico que indicasse os benefícios e eventuais prejuízos com a aplicação da medida - Necessidade manifesta em matéria de uso do espaço urbano, independentemente de compatibilidade com plano diretor - Respeito ao pacto federativo com a obediência a essas exigências - Ofensa ao princípio da impessoalidade - Afronta, outrossim, ao princípio da separação dos Poderes - Matéria de cunho eminentemente administrativo - Leis dispuseram sobre situações concretas, concernentes à organização administrativa - Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade das normas.” (ADI 163.559-0/0-00).

“ação direta de inconstitucionalidade – lei complementar disciplinando o uso e ocupação do solo – processo legislativo submetido À participação popular – votação, contudo, de projeto substitutivo que, a despeito de alterações significativas do projeto inicial, não foi levado ao conhecimento dos munícipes – vício insanável – inconstitucionalidade declarada.

‘O projeto de lei apresentado para apreciação popular atendia aos interesses da comunidade local, que atuava ativamente a ponto de formalizar pedido exigindo o direito de participar em audiência pública. Nada obstante, a manobra política adotada subtraiu dos interessados a possibilidade de discutir assunto local que lhes era concernente, causando surpresa e indignação. Cumpre ressaltar que a participação popular na criação de leis versando sobre política urbana local não pode ser concebida como mera formalidade ritual passível de convalidação. Trata-se de instrumento democrático onde o móvel do legislador ordinário é exposto e contrastado com idéias opostas que, se não vinculam a vontade dos representantes eleitos no momento da votação, ao menos lhe expõem os interesses envolvidos e as conseqüências práticas advindas da aprovação ou rejeição da norma, tal como proposta” (TJSP, ADI 994.09.224728-0, Rel. Des. Artur Marques, m.v., 05-05-2010).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Leis Municipais de Guararema, que tratam do zoneamento urbano sem a participação comunitária. Violação aos artigos 180, II e 191 da Constituição Estadual. Ação procedente para declarar a inconstitucionalidade das leis nº 2.661/09 e 2.738/10 do Município de Guararema” (TJSP, ADI 0194034-92.2011.8.26.0000, Rel. Des. Ruy Coppola, v.u., 29-02-2012).

A democracia participativa, decorrente dos artigos 180, inciso II e 190 da Constituição Estadual, alcança a elaboração da lei antes e durante o trâmite de seu processo legislativo até o estágio final de sua produção.

Permite-se, com isso, que a população participe da produção de normas que afetarão a estética urbana, a qualidade de vida e os usos urbanísticos.

A ausência de participação comunitária não configura apenas um desprezo aos ditames da Constituição do Estado de São Paulo, mas, antes de tudo, fere princípio fundamental do Estado Democrático de Direito presente no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal.

No caso em apreço, embora não se saiba as razões que motivaram a edição de dispositivo legal tão abrangente, é evidente que tal ato normativo não foi precedido de qualquer participação popular.

Irrefutável, outrossim, que o dispositivo objurgado ofendeu o artigo 30, inciso VIII, da Constituição Federal à medida que suprimiu todas as restrições anteriores à 1996, sem que se tenha notícia de qualquer prévio planejamento urbano.

Em suma, sob qualquer prisma que se analise a questão, a incompatibilidade com a Constituição Estadual e com a Constituição Federal saltam, lamentavelmente, aos olhos.

Posto isso, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente, e por seu acolhimento.

       

São Paulo, 29 de setembro de 2014.

 

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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