Parecer

Processo n. 0056828-94.2015.8.26.0000

Suscitante: 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Incidente de Inconstitucionalidade. Não conhecimento. Ausência de juízo pronunciando a inconstitucionalidade. Lei n. 10.948, de 05 de novembro de 2001, do Estado de São Paulo. Penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão de orientação sexual. Polícia Administrativa. Inexistência de usurpação da competência normativa federal. 1. O incidente de inconstitucionalidade não se consubstancia em consulta do órgão julgador fracionário ao tribunal pleno nem tem outra finalidade senão a declaração de inconstitucionalidade incidenter tantum, competindo ao órgão fracionário, em qualquer hipótese, se pronunciar sobre a inconstitucionalidade suscitada, fundamentando seu acolhimento ou sua rejeição. 2. Não conhecimento de incidente de inconstitucionalidade de lei se a turma julgadora simplesmente determina sua instauração sem pronunciamento da inconstitucionalidade. 3. Norma de polícia administrativa e que não constitui invasão da esfera da competência da União para legislar sobre direito civil porque não se destina a regular união homoafetiva nem associações, destinando a tutelar a liberdade de orientação sexual de casais ou celibatários em ambientes públicos e privados. 4. A declaração, mesmo incidental, de inconstitucionalidade de qualquer ato normativo, exige o contraste direto e frontal com a Constituição, não servindo a esse pretexto desvio na execução da lei. 5. Lei que não regula direito do trabalho e cargos, funções e empregos públicos, e é compatível com a liberdade de orientação sexual, a dignidade da pessoa humana e a proibição do preconceito e da discriminação.

 

 

 

Douto Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

1.                Na apreciação de reexame necessário e apelação referentes a embargos à execução fiscal julgados procedentes, a colenda 13ª Câmara de Direito Público do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo suscita incidente de inconstitucionalidade da Lei n. 10.948/01 do Estado de São Paulo argumentando que a respeitável sentença assentou que o diploma legal estadual usurpou a competência normativa federal sobre direito civil, invocando ainda os fundamentos de precedente do Supremo Tribunal Federal (ADI 3.166) que fulminou a Lei Paulista n. 10.872/01, concluindo o venerando acordão que “tem-se como questionável a constitucionalidade da Lei Estadual Nº 10.948/2001” (fls. 386/395).

2.               É o relato do essencial.

3.               Preliminarmente, constata-se óbice à instauração do presente incidente.

4.                O colendo órgão fracionário apenas resumiu a convicção contida na respeitável sentença sobre a inconstitucionalidade da lei estadual, abstendo-se de tecer qualquer manifestação conclusiva a respeito, suscitando dúvida ou consulta ao tribunal pleno acerca da constitucionalidade ou não da lei.

5.                Portanto, o incidente não merece conhecimento porque o art. 481 do Código de Processo Civil exige pronunciamento conclusivo do órgão fracionário.

6.                Não se impõe ao órgão fracionário declarar a inconstitucionalidade, o que se encontra na competência funcional do tribunal pleno, mas, concluir por sua existência, como exige o art. 481 do Código de Processo Civil. Neste sentido:

“3. ‘A Câmara, reconhecendo esse grau de prejudicialidade, deve sustar o processo até a deliberação do órgão competente, lavrando acórdão nesse sentido. Ao revés, desacolhida a alegação, prossegue-se no julgamento da causa como se não tivesse havido a arguição prejudicial. É que a Câmara não tem competência funcional para declarar a inconstitucionalidade, mas detém-na para concluir pela constitucionalidade’. (FUX, Luiz. Curso de Processo Civil. Processo de Conhecimento. Vol. I, 4.ª Edição, Editora Forense. Rio de Janeiro: 2008, pág. 955)” (STJ, AgRg-Ag 1.032.419-MT, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, 13-04-2010, v.u., DJe 04-05-2010).

7.                Com efeito, o incidente de inconstitucionalidade não se consubstancia em consulta do órgão julgador fracionário ao tribunal pleno nem tem outra finalidade senão a declaração de inconstitucionalidade incidenter tantum em julgamento per saltum.

8.                Sua admissibilidade atende aos contornos legais e regimentais e, mormente, o art. 97 da Constituição Federal e o teor da Súmula Vinculante 10 do Supremo Tribunal Federal, impositivos da observância da cláusula de reserva de plenário quando a inconstitucionalidade de lei surja para o julgador em segundo grau de jurisdição como essencial para o julgamento da causa, ainda que assim não tenham postulado as partes no processo.

9.                Consoante entendimento pacificado neste colendo Órgão Especial, o incidente de inconstitucionalidade não pode ser conhecido se o órgão judiciário suscitante não examina a questão da inconstitucionalidade, como ocorrido in casu em que o douto órgão fracionário resenhando a sentença determinou sua remessa ao colendo Órgão Especial abstendo-se de qualquer pronunciamento sobre a constitucionalidade ou não das normas mencionadas.

10.              A título de exemplo assim já decidiu este colendo Órgão Especial em venerando acórdão da lavra do eminente Desembargador Mário Devienne Ferraz, cujos valiosos fundamentos, no que interessa, são transcritos e incorporados expressamente:

“Ocorre que a instauração do incidente de inconstitucionalidade, regulado nos artigos 480 a 482 do Código de Processo Civil, exige que o órgão fracionário enfrente a alegação e decida se a acolhe ou a rejeita. Se a rejeitar, declarará as razões pelas quais concluiu nesse sentido e prosseguirá no julgamento de mérito. Na hipótese contrária, se acolher a arguição, deverá lavrar acórdão nesse sentido e suspenderá o julgamento, determinando a remessa dos autos ao Órgão Especial para decisão quanto à declaração incidental de inconstitucionalidade, nos moldes do que dispõe o artigo 97 da Constituição Federal e a Súmula Vinculante nº 10, do colendo Supremo Tribunal Federal. Se o Órgão Especial concluir pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, os autos de qualquer forma retornarão ao órgão fracionário, que prosseguirá no julgamento do mérito, ficando vinculado, entretanto, ao que for decidido pelo Órgão Especial.

(...)

Como visto, a leitura do acórdão revela que a questão relativa ao acolhimento ou não da inconstitucionalidade da norma atacada não foi submetida à turma julgadora, que sobre isso não se pronunciou” (Incidente de Inconstitucionalidade de Lei n. 172.877-0/2-00, Miguelópolis, Órgão Especial, v.u., 18-02-2009.

11.              Compete ao órgão fracionário, em qualquer hipótese, se pronunciar sobre a inconstitucionalidade suscitada, fundamentando seu acolhimento ou sua rejeição.

12.              O colendo Órgão Especial não tem conhecido de incidente de inconstitucionalidade de lei se a douta Turma Julgadora simplesmente determina sua instauração sem pronunciamento positivo da inconstitucionalidade.

13.              Ora, nos termos em que suscitado o incidente, ele não merece conhecimento.

14.              Se superada a preliminar, melhor sorte não assiste à arguição no mérito.

15.              A Lei n. 10.948, de 05 de novembro de 2001, do Estado de São Paulo, de iniciativa parlamentar, dispõe sobre as penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão de orientação sexual, com a seguinte redação:

“Artigo 1.º - Será punida, nos termos desta lei, toda manifestação atentatória ou discriminatória praticada contra cidadão homossexual, bissexual ou transgênero.

Artigo 2.º - Consideram-se atos atentatórios e discriminatórios dos direitos individuais e coletivos dos cidadãos homossexuais, bissexuais ou transgêneros, para os efeitos desta lei:

I - praticar qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica;

II - proibir o ingresso ou permanência em qualquer ambiente ou estabelecimento público ou privado, aberto ao público;

III - praticar atendimento selecionado que não esteja devidamente determinado em lei;

IV - preterir, sobretaxar ou impedir a hospedagem em hotéis, motéis, pensões ou similares;

V - preterir, sobretaxar ou impedir a locação, compra, aquisição, arrendamento ou empréstimo de bens móveis ou imóveis de qualquer finalidade;

VI - praticar o empregador, ou seu preposto, atos de demissão direta ou indireta, em função da orientação sexual do empregado;

VII - inibir ou proibir a admissão ou o acesso profissional em qualquer estabelecimento público ou privado em função da orientação sexual do profissional;

VIII - proibir a livre expressão e manifestação de afetividade, sendo estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos.

Artigo 3.º - São passíveis de punição o cidadão, inclusive os detentores de função pública, civil ou militar, e toda organização social ou empresa, com ou sem fins lucrativos, de caráter privado ou público, instaladas neste Estado, que intentarem contra o que dispõe esta lei.

Artigo 4.º - A prática dos atos discriminatórios a que se refere esta lei será apurada em processo administrativo, que terá início mediante:

I - reclamação do ofendido;

II - ato ou ofício de autoridade competente;

III - comunicado de organizações não-governamentais de defesa da cidadania e direitos humanos.

Artigo 5.º - O cidadão homossexual, bissexual ou transgênero que for vítima dos atos discriminatórios poderá apresentar sua denúncia pessoalmente ou por carta, telegrama, telex, via Internet ou facsímile ao órgão estadual competente e/ou a organizações não-governamentais de defesa da cidadania e direitos humanos.

§ 1.º - A denúncia deverá ser fundamentada por meio da descrição do fato ou ato discriminatório, seguida da identificação de quem faz a denúncia, garantindo-se, na forma da lei, o sigilo do denunciante.

§ 2.º - Recebida a denúncia, competirá à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania promover a instauração do processo administrativo devido para apuração e imposição das penalidades cabíveis.

Artigo 6.º - As penalidades aplicáveis aos que praticarem atos de discriminação ou qualquer outro ato atentatório aos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana serão as seguintes:

I - advertência;

II - multa de 1000 (um mil) UFESPs - Unidades Fiscais do Estado de São Paulo;

III - multa de 3000 (três mil) UFESPs - Unidades Fiscais do Estado de São Paulo, em caso de reincidência;

IV - suspensão da licença estadual para funcionamento por 30 (trinta) dias;

V - cassação da licença estadual para funcionamento.

§ 1.º - As penas mencionadas nos incisos II a V deste artigo não se aplicam aos órgãos e empresas públicas, cujos responsáveis serão punidos na forma do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado - Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968.

§ 2.º - Os valores das multas poderão ser elevados em até 10 (dez) vezes quando for verificado que, em razão do porte do estabelecimento, resultarão inócuas.

§ 3.º - Quando for imposta a pena prevista no inciso V supra, deverá ser comunicada a autoridade responsável pela emissão da licença, que providenciará a sua cassação, comunicando-se, igualmente, a autoridade municipal para eventuais providências no âmbito de sua competência.

Artigo 7.º - Aos servidores públicos que, no exercício de suas funções e/ou em repartição pública, por ação ou omissão, deixarem de cumprir os dispositivos da presente lei, serão aplicadas as penalidades cabíveis nos termos do Estatuto dos Funcionários Públicos.

Artigo 8.º - O Poder Público disponibilizará cópias desta lei para que sejam afixadas nos estabelecimentos e em locais de fácil leitura pelo público em geral.

Artigo 9.º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação”.

16.              Trata-se de norma de polícia administrativa, prerrogativa que assiste ao Estado em razão de sua soberania, e que não constitui invasão da esfera da competência da União para legislar sobre direito civil, pois, não se arrola a matéria na atribuição federal.

17.              Nem se alegue que a lei ao vedar a prática de atos discriminatórios em relação à orientação sexual disciplina as relações jurídicas civis homoafetivas ou associativas. Não é esse o objeto da lei e para declarar-se, mesmo incidentalmente, a inconstitucionalidade de qualquer ato normativo, é indispensável o contraste direto e frontal com a Constituição, não servindo a esse pretexto eventual desvio na execução da lei. A lei, como emerge de sua leitura, não visa à proteção da liberdade de orientação sexual de pessoas que vivam em união homoafetiva – respaldada pelo Supremo Tribunal Federal -, mas, tutela aquele bem jurídico de maneira ampla, geral e incondicionada inclusive em favor das pessoas que não convivam com outras de idêntico sexo.

18.              Tampouco é possível invocar simetria com o mencionado precedente da Suprema Corte que pronunciou a inconstitucionalidade de lei estadual que punia atos discriminatórios em razão de sexo, raça ou credo nas relações de trabalho públicas ou privadas, porque nesta hipótese o defeito de inconstitucionalidade residiu, como evidencia a leitura do respectivo aresto, na competência normativa federal para direito do trabalho e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo no tocante a cargos, funções e empregos públicos.

19.              Aliás, a lei em foco é plenamente compatível com a liberdade de orientação sexual, a dignidade da pessoa humana e a proibição do preconceito e da discriminação, tal como delineado nos arts. 1º, 3º e 5º da Constituição de 1988, conclusão abonada pelo Supremo Tribunal Federal ao gizar que:

“Ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual. Os homossexuais, por tal razão, têm direito de receber a igual proteção tanto das leis quanto do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual” (RTJ 220/572).

20.              Face ao exposto, opino pelo não conhecimento do incidente, e no mérito, por sua improcedência.

                   São Paulo, 31 de agosto de 2015.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico