Parecer em Incidente de
Inconstitucionalidade
Processo n. 0057531-25.2015.8.26.0000
Suscitante: 3ª Câmara Extraordinária de Direito
Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Objeto: inconstitucionalidade das Leis nºs.
1.695/1986, 3.410/2005, 3.494/2006, 2.158/91, 2.444/93, 2.380/92 e 3.435/2005,
todas do Município de Pirassununga
Ementa: Constitucional. Administrativo. Incidente de Inconstitucionalidade. Cargos de provimento em comissão previstos em leis do Município de Pirassununga. falta da descrição das atribuições. Procedência do incidente. 1. Ausência de descrição das atribuições de cargos de provimento em comissão. O núcleo das competências, dos poderes, dos deveres, dos direitos, do modo da investidura e das condições do exercício das atividades do cargo público deve estar descrito na lei. Violação do princípio da reserva legal. 2. Parecer pela admissão e acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.
Douto
Relator,
Colendo
Órgão Especial:
1. Trata-se de incidente de inconstitucionalidade
em face das Leis nºs. 1.695, de 25 de março de 1986; 3.410, de 1º de setembro
de 2005; 3.494, de 21 de setembro de 2006; 2.158, 02 de maio de 1991; 2.444, de
13 de maio de 1993; 2.380, de 18 de dezembro de 1992; 3.435, 07 de dezembro de
2015, todas do Município de Pirassununga, que criaram os cargos de “Assessor de
Relações Públicas”, “Assessor de Secretaria”, “Assessor Financeiro”,
“Coordenador de Comunicação”, “Diretor de Conservatório”, “Diretor de Merenda
Escolar”, “Diretor de Projetos de Engenharia”, “Diretor Geral de CAIC”,
“Diretor Auxiliar Contábil”, “Diretor Contábil” e “Jornalista”, sem contudo, descreverem as atribuições dos referidos cargos, em
virtude de ofensa aos arts. 37, incisos II e V, da Constituição Federal,
suscitado pela colenda 3ª Câmara Extraordinária de Direito Público do Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo no julgamento de apelação (fls. 561/565).
2. É
o relato do essencial.
3.
Cumpre esclarecer que é
inconstitucional a criação de cargos de provimento em comissão cujas
atribuições sejam de natureza burocrática, ordinária, técnica, operacional e
profissional, que não revelam plexos de assessoramento, chefia e direção, e que
devem ser desempenhadas por servidores investidos em cargos de provimento
efetivo mediante aprovação em concurso público.
4. A criação de cargos de provimento em comissão não pode ser
desarrazoada, artificial, abusiva ou desproporcional, devendo, nos
termos do art. 37, II e V, da Constituição Federal de 1988, e do art. 115, I,
II e V, da Constituição Estadual, ater-se às atribuições de assessoramento,
chefia e direção para as quais se empenhe relação de confiança, sendo vedada
para o exercício de funções técnicas ou profissionais, às quais é reservado o
provimento efetivo precedido de aprovação em concurso público de provas ou de
provas e títulos, como apanágio da moralidade, da impessoalidade e da
eficiência.
5. Não é lícito à lei declarar a
liberdade de provimento de qualquer cargo público, mas somente daqueles que
demandem relação de confiança, devido ao exercício de atribuições de natureza
política de assessoramento, chefia e direção.
6. É dizer: os cargos de provimento
em comissão devem ser restritos às atribuições de assessoramento, chefia e
direção em nível superior, nas quais esteja presente a necessidade de relação
de confiança com os agentes políticos para o desempenho de tarefas de
articulação, coordenação, supervisão e controle de diretrizes
político-governamentais. Não se coadunam com a criação de cargos desse jaez – cuja qualificação é matéria da reserva legal absoluta
– atribuições profissionais, operacionais, burocráticas, técnicas,
administrativas, rotineiras.
7. Destarte, é absolutamente imprescindível que a lei descreva as efetivas
atribuições dos cargos de provimento em comissão, para se aquilatar se
realmente se amoldam às funções de assessoramento, chefia e direção.
8. Ademais, referida exigência se
amolda ao próprio princípio da
legalidade, o qual se desdobra na reserva legal, a exigir lei em
sentido formal para criação e disciplina de cargos públicos, como adverte a
doutrina, verbis:
“(...)
somente a lei pode criar esse conjunto inter-relacionado de competências,
direitos e deveres que é o cargo público. Essa é a regra geral consagrada no
art. 48, X, da Constituição, que comporta uma ressalva à hipótese do art. 84, VI, b. Esse dispositivo permite ao Chefe do Executivo
promover a extinção de cargo público, por meio de ato administrativo. A criação
e a disciplina do cargo público faz-se necessariamente por lei no sentido de
que a lei deverá contemplar a disciplina essencial e indispensável. Isso
significa estabelecer o núcleo das competências, dos poderes, dos deveres, dos
direitos, do modo da investidura e das condições do exercício das atividades.
Portanto, não basta uma lei estabelecer, de modo simplista, que ‘fica criado o
cargo de servidor público’. Exige-se que a lei promova a discriminação das
competências e a inserção dessa posição jurídica no âmbito da organização
administrativa, determinando as regras que dão identidade e diferenciam a
referida posição jurídica” (Marçal Justen Filho. Curso de Direito
Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 581).
9. Com efeito, o princípio da legalidade impõe lei em sentido formal para criação e
disciplina de cargo público, compreendido este como o conjunto de
atribuições e responsabilidades cometidas a um servidor,
criado por lei, em número certo, com denominação própria, sujeito à
remuneração e à subordinação hierárquica, para o exercício de uma função
pública específica (cf. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 16 ed.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012- p. 298).
10. Desse modo, ponto elementar
relacionado à criação de cargos públicos é a exigência de que lei específica –
no sentido de reserva legal ou de lei em sentido formal, como ato normativo
produzido pelo Poder Legislativo, mediante o competente e respectivo processo -
descreva as correlatas atribuições.
11. Somente a partir da descrição
precisa das atribuições do cargo público será possível, a bem do funcionamento
administrativo e dos direitos dos administrados, averiguar-se a completa
licitude do exercício das funções públicas pelo agente público.
12. Trata-se de exigência relativa à
competência do agente público para a prática de atos em nome da Administração
Pública e, em especial, daqueles que tangenciam os direitos dos administrados,
e que, ainda, permite a aferição da legitimidade da forma de investidura no
cargo público- a qual deve ser guiada pela legalidade, moralidade,
impessoalidade e razoabilidade.
13. Nem se alegue, por oportuno, que
ao Chefe do Poder Executivo remanesceria competência para descrição das
atribuições dos cargos públicos, sob pena de
convalidar a invasão de matéria sujeita exclusivamente à reserva legal.
14. Isso
porque, “a nossa ordem constitucional não
se compadece com as autorizações legislativas puras ou incondicionadas, de
nítido e inconfundível conteúdo renunciativo. Tais medidas representam
inequívoca deserção do compromisso de deliberar politicamente, configurando
manifesta fraude ao princípio da reserva legal e à vedação à delegação de
poderes.” (cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional.
Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. 4
ed.. São Paulo: Saraiva, 2009- pp. 960).
15. Ademais,
a possibilidade de regulamento autônomo, para disciplina da organização e
funcionamento da administração (art. 47, XIX, a, da Constituição Paulista), não se confunde com a delegação de
competência para o Chefe do Poder Executivo fixar atribuições de cargo público,
sob pena de violação ao art. 24, § 2º, 1, da Carta
Paulista, que exige, para tanto, lei em sentido formal.
16. Com efeito, o regulamento autônomo
(ou de organização) deve conter normas sobre a organização administrativa, isto
é, sobre a disciplina do modo de prestação do serviço e das relações
intercorrentes entre órgãos, entidades e agentes, e de seu funcionamento,
sendo-lhe vedado criar cargos públicos- podendo tão-somente extingui-los,
quando vagos (arts. 48, X, 61, § 1°, II, a,
84, VI, b,
Constituição Federal; art. 47, XIX, a,
Constituição Estadual) ou para fins de contenção de despesas (art. 169, § 4°,
Constituição).
17. Na lição de Celso Antônio Bandeira
de Mello, o “decreto autônomo” previsto no art. 84, VI,
a, da Constituição, representa:
“(...)
mera competência para um arranjo intestino dos órgãos e competências já criadas
por lei’, como a transferência de departamentos e divisões, por
exemplo (Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito
Administrativo, São Paulo: Malheiros, 2006, 21ª ed., pp. 324-325).
18. Neste sentido, em casos análogos a
este, pronunciou o E. Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade de leis
que delegam ao Poder Executivo a fixação da descrição das
atribuições de cargos de provimento em comissão, in verbis:
“RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. PODER EXECUTIVO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. ORGANIZAÇÃO DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DECRETOS 26.118/05 E 25.975/05. REESTRUTURAÇÃO DE
AUTARQUIA E CRIAÇÃO DE CARGOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. INOCORRENTE
OFENSA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RECURSO DESPROVIDO. I - A Constituição da
República não oferece guarida à possibilidade de o Governador do Distrito
Federal criar cargos e reestruturar órgãos públicos por meio de simples
decreto. II - Mantida a decisão do Tribunal a quo, que, fundado em dispositivos
da Lei Orgânica do DF, entendeu violado, na espécie, o princípio da reserva
legal. III - Recurso Extraordinário desprovido” (STF, RE 577.025-DF, Tribunal
Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 11-12-2008, v.u., DJe
0-03-2009).
“1.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Condição. Objeto. Decreto que cria cargos
públicos remunerados e estabelece as respectivas denominações, competências e
remunerações. Execução de lei inconstitucional. Caráter residual de decreto
autônomo. Possibilidade jurídica do pedido. Precedentes. É admissível controle
concentrado de constitucionalidade de decreto que, dando execução a lei inconstitucional, crie cargos públicos remunerados e
estabeleça as respectivas denominações, competências, atribuições e remunerações.
2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Art. 5° da Lei n° 1.124/2000, do Estado
do Tocantins. Administração pública. Criação de cargos e funções. Fixação de
atribuições e remuneração dos servidores. Efeitos jurídicos delegados a
decretos do Chefe do Executivo. Aumento de despesas. Inadmissibilidade.
Necessidade de lei em sentido formal, de iniciativa privativa daquele. Ofensa
aos arts. 61, § 1°, inc. II, ‘a’, e 84, inc. VI, ‘a’, da CF. Precedentes. Ações
julgadas procedentes. São inconstitucionais a lei que autorize o Chefe do Poder
Executivo a dispor, mediante decreto, sobre criação de cargos públicos
remunerados, bem como os decretos que lhe dêem execução” (STF, ADI 3.232-TO,
Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, 14-08-2008, v.u., DJe 02-10-2008).
19. Em suma, na presente situação, os
atos normativos contestados, criaram cargos em comissão sem a descrição de suas
atribuições, em afronta a nossa ordem constitucional (115, II
e V, e 144, da CE; arts. 37, II e V, da CF).
20.
Diante do exposto, opino no
sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e, no mérito pela
declaração de inconstitucionalidade.
São Paulo, 03
de setembro de 2015.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
ef/crms