Parecer em
Incidente de Inconstitucionalidade
Processo nº 0064850-44.2015.8.26.0000
Órgão Especial
Suscitante: 5ª
Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça
Objeto: art.
3º da Lei Complementar nº 1.054, de 07 de julho de 2008, que alterou o art. 1º
da Lei Complementar nº 367, de 14 de dezembro de 1984, do Estado de São Paulo.
Ementa:
1) Incidente de inconstitucionalidade. Art.
3º da Lei Complementar nº 1.054, de 07 de julho de 2008, que alterou o art. 1º
da Lei Complementar nº 367, de 14 de dezembro de 1984, do Estado de São Paulo, que
prevê a licença de 180 (cento e oitenta) dias ao servidor público no caso de adoção
ou guarda judicialmente obtida de menor com até sete anos de idade.
2) Arguição de inconstitucionalidade por
suposta ofensa do ato vergastado aos princípios da isonomia e da prioridade
absoluta da pessoa em formação (arts. 5º, caput,
e 227, CF), aplicáveis aos Municípios por força dos arts. 18 e 29 da
Constituição Federal.
3) Parecer pelo conhecimento e não acolhimento
do incidente.
Colendo Órgão Especial,
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator:
Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça Bandeirante, quando do julgamento de apelação interposta pela Fazenda do Estado de São Paulo, que busca reformar r. decisão proferida pelo MM. Juízo da 13ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central da Comarca da Capital, que concedeu a ordem em mandado de segurança proposto pela Sra. Sueli Pecchia, com o intuito de ver garantido o seu direito à licença pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, em razão da adoção de duas menores com mais de sete anos de idade.
A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade do art. 3º da Lei Complementar nº 1.054, de 07 de julho de 2008, que alterou o art. 1º da Lei Complementar nº 367, de 14 de dezembro de 1984, do Estado de São Paulo, suscitada em controle difuso, por suposta ofensa aos princípios da isonomia e da prioridade absoluta da criança e do adolescente, haja vista a vedação do diploma legal em conceder a licença por adoção ou por guarda judicialmente obtida de menores a partir dos sete anos de idade (fls. 111/115).
É o relato do essencial.
Embora o incidente deva ser conhecido, não merece acolhimento.
O art. 3º da Lei Complementar nº 1.054, de 07 de julho de 2008, deu nova redação ao art. 1º da Lei Complementar nº 367, de 14 de dezembro de 1984, do Estado de São Paulo, dispondo da seguinte forma:
“Artigo 3º - O artigo 1º da Lei complementar nº 367, de 14 de dezembro de 1984, passa a vigorar com a seguinte redação:
‘Artigo 1º - O servidor público poderá obter licença de 180 (cento e oitenta) dias, com vencimentos ou remuneração integrais, quando adotar menor, de até sete anos de idade, ou quando obtiver judicialmente a sua guarda para fins de adoção.’”
Não há na quaestio iuris elemento que aponte para a inconstitucionalidade do dispositivo normativo impugnado.
Analisando o dispositivo esposado, infere-se que a legislação estadual não faz diferenciação apta a violar os princípios da isonomia e da prioridade absoluta da pessoa em formação. Senão vejamos.
A
licença por adoção tem raiz na Constituição de 1988 que assim preceitua:
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias;
XIX - licença-paternidade, nos termos fixados em lei”.
O Ato
de suas Disposições Transitórias estabeleceu que:
“Art. 10. Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, I, da Constituição:
§ 1º - Até que a lei venha a disciplinar o disposto no art. 7º, XIX, da Constituição, o prazo da licença-paternidade a que se refere o inciso é de cinco dias”.
Os direitos sociais do art. 7º acima citados foram estendidos expressamente aos servidores públicos pela remissão promovida no § 3º do art. 39 da Carta Magna, e se incluem no regime jurídico dos servidores públicos civis por obra da Lei Complementar n. 1.054, de 07 de julho de 2008, do Estado de São Paulo.
Não é
heresia afirmar que a licença por adoção tem tratamento distinto pela
imprescindibilidade de seu ajustamento às peculiaridade da filiação civil, como
gizado em decisão precedente da eminente Procuradoria-Geral de Justiça lançada
em 28 de abril de 2003 (Protocolado CRH-MP n. 21.367/03).
A Lei
Complementar Estadual nº 367, de 14 de dezembro de 1984, de São Paulo, já
atribuía a referida licença por adoção ao servidor público civil, porém, com o
prazo de 120 dias, o qual foi ampliado para 180 pela Lei Complementar nº 1.054,
de 07 de julho de 2008, do Estado de São Paulo.
A
concessão de licença ao servidor adotante de menor com até sete anos de idade
visou atender às peculiaridades da filiação civil, tendo em vista, outrossim, o
interesse público, resultando na opção adotada pelo art. 3º da Lei Complementar
nº 1.054, de 07 de julho de 2008, que alterou o art. 1º da Lei Complementar nº 367,
de 14 de dezembro de 1984, do Estado de São Paulo.
No caso, a diferenciação consiste no fato de que a licença é atribuída ao servidor adotante de criança com até 07 anos de idade, segundo critérios objetivos e de conhecimento público, plasmados em texto normativo produzido sob a égide de um devido processo legislativo.
No caso, poder-se-ia eventualmente questionar a razoabilidade da lei em comento aos insculpir limite etário do menor a ser adotado ou colocado sob guarda à concessão de licença que busca a mesma finalidade em relação às demais, ainda mais levando-se em consideração o anseio constitucional em tutelar de forma absoluta, integral e primacial os interesses de crianças e adolescentes, ex vi do disposto no art. 227 da Lei Fundamental de 1988.
Não se olvida que esse contanto inicial se faz assaz relevante à formação da criança, que futuramente exercerá o relevante papel de cidadão em nosso meio social, de sorte que não diferenciar a idade do menor para efeitos de obtenção de licença em virtude de adoção ou guarda, em tese, acarretaria numa maior proteção aos seres objeto da mencionada tutela especial.
Todavia, esse questionamento perpassa a discussão jurídica da causa, restando limitado ao plano moral ou social.
Não há no caso qualquer indício de irrazoabilidade na opção adotada pelo dispositivo normativo objurgado, ao limitar a obtenção da licença ao servidor adotante de menor com até sete anos de idade, visto ter entendido o legislador que, até este momento, seria justificável o afastamento do servidor, por 180 dias, a fim de dedicar-se aos cuidados do adotando.
Não pode o Judiciário, portanto, “corrigir” a ratio legis plasmada no ato normativo objurgado que fora editado por órgão constitucionalmente competente para tal atribuição, sob pena de ofensa ao princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, caput, da Carta Bandeirante.
Embora não discorra sobre causa análoga à sub judice, o entendimento perfilado por Lênio Luiz Streck em texto no qual, ao tratar de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), faz ode aos ensinamentos do saudoso Min. Paulo Brossard quando do exercício de sua atividade judicante no Excelso Pretório, especificamente acerca da indesejada ingerência do Poder Judiciário em questões excluídas de sua jurisdictio, cai como uma luva à situação trazida à baila, podendo ser, mutatis mutandis, utilizado por este Sodalício para balizar sua decisão. Por esses motivos, pede-se vênia para acostar excertos do brilhante texto:
“(...)
Por que Brossard faz falta nos dias atuais? Primeiro,
como salientamos, por sua enorme contribuição intelectual, no momento delicado
de consolidação da democracia e da Constituição. Seu ponto de partida não foi
apenas a ideia de democracia e de constituição: foi a vivência concreta numa
sociedade de transição, onde no próprio tribunal em que atuou ainda estavam
presentes ministros nomeados pela ditadura militar, portadores de cultura
jurídica e política distante do novo constitucionalismo democrático dirigente
que despontava no Brasil, revelando-se seguidor do constitucionalismo
revigorador da Europa após Segunda Guerra.
Segundo
(a merecer maior destaque): porque enxergava na política e nos políticos — e
não nos tribunais ou nos órgãos de fiscalização — a responsabilidade de, numa
democracia, fazerem aquilo que é óbvio: fazerem a política democrática. Talvez
Brossard tenha sido o primeiro jurista a fazer, no Brasil, a diferença entre
ativismo e judicialização. Ele sabia que o primeiro era nocivo à democracia. O
segundo, contingencial, passível de ocorrer em qualquer parte do mundo. O
posicionamento de Paulo Brossard não deixa dúvidas e vincula-se ao realismo (no
sentido da contraposição ao idealismo ingênuo de quem acredita que a moral pode
corrigir o direito democraticamente construído). O povo deve escolher seus
representantes e estes devem decidir aquilo que a Constituição lhes mandou
decidir. Não há espaços para substitutos, que serão sempre desingênuos. Se os
representantes do povo decidi(re)m mal, troquemo-los. Parlamentares e
presidentes podem ser substituídos de quatro em quatro (senadores de oito em
oito). Juízes e ministros do STF, não.
Como
poucos, Brossard assimilou a lição clássica de que os que têm o poder, deste
tendem a abusar. Daí a divisão de poderes e funções, onde o modelo
presidencialista é um deles. Aceita-se que se discuta se o presidencialismo é a
mais adequado ou não. Ocorre que esta discussão, no Brasil, foi superada no
pacto constituinte. Não cabe mais a quem foi constituído neste pacto questionar
o que lá está firmado. Cabe aplicar. Nossa visão moral(ista) sobre o melhor
sistema, neste momento, é irrelevante.
Mesmo
com a teoria da separação dos poderes como entrave ao abuso do poder, a busca
por dilatação do raio de atuação dos próprios poderes parece não ter fim.
Parece que, a todo momento, existe a tentação de tomar a Criméia. Enfim, a
sedução do imperialismo hermenêutico cresce na medida em que fragilizamos as
instituições. No Brasil, e pelo resto do mundo afora, as cortes constitucionais
não se cansam de decidir assuntos típicos da arena política, mas que, por
fraqueza ou covardia do legislativo, não são enfrentadas pelo mesmo
legislativo. Como quem tem o poder buscará sempre aumentar seu quinhão, é claro
que as cortes avançam sobre um território que não lhe pertence e passam ao
protagonismo político, subvertendo a política democrática. Veja-se como isso
ocorre nos diversos setores do direito: por que será que o ativismo judicial
cresce dia a dia? “Espaços vazios” — por mais paradoxal que possa ser o
expressão — são logo “preenchidos”. E por quem? De onde vem o
pamprincipiologismo e a commonlização do direito?
Ora,
despiciendo lembrar que a legitimidade dos juízes é derivada: decorre da
Constituição; aquela do executivo e do legislativo é direta: decorre do mesmo
poder constituinte que elaborou a Constituição, uma vez que estes são votados
diretamente pelo povo.
Como
explicar, à luz da teoria da democracia, que as comissões parlamentares de
inquérito, para acesso a dados bancários e fiscais, tenham de recorrer ao Poder
Judiciário? Não há única palavra a insinuar esta possibilidade na Constituição,
e é tal possibilidade produto da chamada interpretação constitucional, levada a
cabo pelo Judiciário, para definir uma competência...a si mesmo, isto é: ele
será seu próprio juiz na fixação de suas competências. E, nesse aspecto, o
Judiciário “corre livre”, pela falta de reação da política e pela inércia da
doutrina, cada vez mais caudatária das decisões tribunalícias.
Ao
contrário da redação do parágrafo 3º do artigo 58 da Constituição Federal, que
não deixa dúvidas — veja-se como os limites semânticos são importantes na
democracia — quando determina que “§ 3º - As comissões parlamentares de
inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades
judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas
(...)”. A sabedoria do constituinte brasileiro merece elogio aqui: ninguém será
preso, será privado de seus bens com o relatório final de uma comissão
parlamentar de inquérito. O máximo a que se chega é o envio do relatório final
de uma comissão parlamentar ao Ministério Público e Poder Judiciário, para,
agora sim, o desencadeamento do devido processo legal.
É
evidente que todos sabemos do peso da ação de uma decisão do Poder Judiciário
ante o funcionamento de uma comissão parlamentar de inquérito. Mais evidente é
a consciência de que o Judiciário tem desta sua faculdade, repito, por ele
próprio criada.
No
caso da disputa pela instalação e definição de objeto da comissão parlamentar
de inquérito no Senado Federal a investigar a gestão da Petrobras, as denúncias
sobre o metrô de São Paulo e o Porto de Suape (ou um destes objetos, ou
dois...) aplica-se o mesmo. O que pretendem os senadores com o ajuizamento de
mandado de segurança? Reduzirem sua capacidade de ação, distanciando-se da
faculdade que o povo lhes outorgou, ou seja, decidir?
Querem
os senadores explicitar à sociedade brasileira, que os elegeu, de que são
incapazes de resolverem seus próprios conflitos políticos internos? Em palavras
mais simples: querem os parlamentares “pagar esse mico”? E que, assim,
necessitam de um “superego” (lembremos, sempre, da crítica de Frau Ingeborg
Maus, quando acusava o Tribunal Constitucional alemão de querer ser o superego
– Überich – da sociedade) para acudir-lhes a imaturidade e irresponsabilidade?
Conflito é inerente à democracia. Num conflito, como é claro, uns perdem, outros
ganham. Se uma comissão foi instalada ou não foi instalada; se funcionou ou
não, este é um problema que o povo haverá de atentar e corrigir na próxima
legislatura, por sinal, nas eleições de outubro próximo. Os senadores possuem
sua preciosa tribuna, o amplo acesso aos mais penetrantes meios de comunicação
para explicarem à população as razões dos sucessos e fracassos de sua atuação,
o que igualmente é normal.
Infelizmente
os senadores não foram capazes de resolver seus problemas e conduzem-no ao Poder
Judiciário, que alegremente decidirá e dilatará sua esfera de atuação em
desfavor do legislativo. O Pomo de Ouro já
tem dono,
pois.
Eis
a falta de Paulo Brossard para dizer, acaso ainda ocupasse uma cadeira no STF:
nada temos nada a ver com estes assuntos, [1] senhores
Senadores. Conformem-se com a vontade política construída nas urnas, porque
quem decide por último correrá o risco de errar por último. Contra tal mal, só
há um remédio: a vontade do povo.” (As CPIs e a falta que faz o ministro Paulo
Brossard, publicado em 14 de abril de 2014, 07:26, Consultor Jurídico).
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e seu não acolhimento, ante a inexistência de ofensa à isonomia e ao princípio da prioridade absoluta da criança e do adolescente por parte do art. 3º da Lei Complementar nº 1.054, de 07 de julho de 2008, que alterou o art. 1º da Lei Complementar nº 367, de 17 de dezembro de 1984, do Estado de São Paulo.
São Paulo, 13 de outubro de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
ef/mjap