Parecer em Incidente de
Inconstitucionalidade
Processo nº 0069735-04.2015.8.26.0000
Órgão Especial
Suscitante: 10ª
Câmara de Direito Público
Apelante:
Secretário de Obras do Município de São José dos Campos
Apelado: (...).
Ementa:
1) Incidente de inconstitucionalidade. Art. 103, inciso II, alínea “a”, da Lei Complementar Municipal nº 428/10, do Município de São José dos Campos, que “Estabelece normas relativas ao parcelamento, uso e ocupação do solo de São José dos Campos, e dá outras providências”.
2) Lei municipal que cria forma anômala de desapropriação, expropriação ou confisco, não previstos na legislação federal ou na Constituição Federal, ao impor, como condição para o desmembramento de imóveis, prévia doação de fração para uso público institucional.
3) Desrespeito: ao direito de propriedade; à competência privativa da União para legislar sobre desapropriação e direito processual; e à competência concorrente da União e dos Estados para legislar sobre direito urbanístico.
4) Contrariedade aos seguintes dispositivos da Constituição Federal: art. 5º, XXII e XXIV; art. 22, I e II; art. 24, I.
5)
Parecer no sentido da admissão do incidente e
acolhimento da arguição de inconstitucionalidade.
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator
Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 10ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da Apelação nº 1019562-08.2014.8.26.0577, relator o Desembargador Marcelo Semer, na sessão de julgamento realizada em 24 de agosto de 2015 (v. acórdão às fls. 471/479).
A Col. Câmara suscitou a inconstitucionalidade relativamente ao art. 103, inciso II, alínea “a”, da Lei Complementar Municipal nº 428/10, do Município de São José dos Campos, que “Estabelece normas relativas ao parcelamento, uso e ocupação do solo de São José dos Campos, e dá outras providências”, constando do julgado a seguinte ementa:
“(...)
APELAÇÃO. Mandado de Segurança. Ato administrativo. Desmembramento. Lei Complementar n° 428/2010 que dispõe sobre parcelamento, uso e ocupação do solo de São José dos Campos. Exigência de reserva de área institucional. Doação. Inconstitucionalidade. Precedentes do E. Órgão Especial desta Corte de Justiça pela inconstitucionalidade da exigência. Suspenso o julgamento do presente recurso e suscitado o incidente de inconstitucionalidade do art. 103, inciso II, alínea “a”, da Lei Complementar n° 428/2010, de São José dos Campos, determinando-se a remessa dos autos ao E. Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
(...)”
Do voto do relator consta a seguinte elucidativa passagem:
“(...)
Por ocasião da sentença, o r.
magistrado prolator houve por bem conceder a segurança parcialmente para
afastar a exigência da doação de área de 10m² por unidade habitacional, para
uso institucional, prevista no art. 103, II, alínea “a”, da Lei Complementar n°
428/10, dando prosseguimento ao processo administrativo n° 75.449/2014.
Isso porque entendeu, em suma, que a
exigência afronta o direito constitucional de propriedade, e, demais disso, a
ausência de animus donandi do
proprietário poderia indicar violação dos arts. 5°, incisos XXII e XXIV, e 182,
§§2° e 3°, e §4°, inciso III, ambos da Constituição Federal.
Em hipóteses assemelhadas, a
jurisprudência Egrégio Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo,
manifestou-se pela inconstitucionalidade da exigência de doação como condição
necessária à aprovação de desmembramento ou loteamento, em diferentes
municípios:
ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE.
ARTIGOS 64, 65 E 66 DA LEI COMPLEMENTAR Nº 137/09, DO MUNICÍPIO DE FRANCA, QUE
DISPÕE SOBRE O PARCELAMENTO DO SOLO NO MUNICÍPIO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.
DISPOSITIVOS QUE CONDICIONAM O DEFERIMENTO DE PEDIDO DE DESMEMBRAMENTO DE LOTES
SUPERIORES A DEZ MIL METROS QUADRADOS A “DOAÇÃO” DE 15% DA ÁREA TOTAL DO
TERRENO PARA A MUNICIPALIDADE.
INCIDENTE
ACOLHIDO EM PARTE PARA DECLARAR, EM SEDE DE CONTROLE DIFUSO, A INCONSTITUCIONALIDADE
DOS ARTIGOS 64 E 65 E DO INCISO I E PARÁGRAFOS 6º E 7º, DO ARTIGO 66 DA LEI
COMPLEMENTAR Nº 137/09, DO MUNICÍPIO DE FRANCA, POR OFENSA AO INCISO II DO
ARTIGO 22 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. (Arguição de Inconstitucionalidade n°
0061277-32.2014.8.26.0000. Relator: Márcio Bartoli. Comarca: Franca. Órgão
julgador: órgão Especial. Data do julgamento: 19/11/2014)
(...)
Assim, em virtude
de entendimento anteriormente esposado, deve ser suspenso o julgamento do
presente recurso e suscitado o incidente de inconstitucionalidade do art. 103,
inciso II, Alínea “a”, da Lei Complementar n/ 428/10, de São José dos Campos,
determinando a remessa dos autos ao C. Órgão Especial deste Tribunal de
Justiça, com fundamento nos arts. 97, da Constituição Federal, 480, do Código
de Processo Civil e 193 do Regimento Interno deste Tribunal de Justiça.
(...)”
É o relato do essencial.
O incidente deve ser conhecido, declarando-se a inconstitucionalidade dos dispositivos que são o objeto da arguição.
A questão a ser examinada no presente incidente resolve-se na discussão a respeito da inconstitucionalidade da imposição legal de doação de fração de gleba ao poder público municipal, como condição indispensável para a autorização do desdobro do imóvel.
Para maior clareza, o dispositivo aqui analisado, da Lei Complementar Municipal nº 428/10, de São José dos Campos, segue transcrito:
“(...)
Art. 103. No desmembramento com área igual ou superior a 20.000,00m² (vinte mil metros quadrados), deverão ser doados, no mínimo, 5% (cinco por cento) do total da gleba para uso público institucional:
(...)
II - para imóveis localizados em zonas de uso onde seja permitido o uso residencial multifamiliar, compete ao interessado declarar, por escrito, a finalidade para a qual o desmembramento se destina, sendo que neste caso, a reserva de área institucional deverá observar:
a) 10,00m² (dez metros quadrados) para cada unidade habitacional, não podendo ser inferior ao percentual mínimo fixado no “caput” deste artigo (...)”
É manifestamente inconstitucional a exigência de doação de fração do terreno ao Município como condição prévia ao deferimento do ato de desmembramento do imóvel, prevista no art. 103, II, alínea “a”, antes transcrito.
E a razão para tal conclusão é objetiva, qual seja, que ao prever tal condição, o legislador municipal criou, ainda que de forma disfarçada, uma hipótese de expropriação forçada ou confisco, não previstos nem na Constituição nem na legislação federal.
Recorde-se, por primeiro, que a Constituição garante o direito de propriedade, estabelecendo que a desapropriação depende da tipificação, em lei, dos casos em que poderá ocorrer, bem como do respectivo procedimento (art. 5º, XXII e XXIV da CF).
Por outro lado, compete privativamente ao legislador federal legislar a respeito da desapropriação, bem como do direito processual, no qual se insere, obviamente, a regulamentação do processo de desapropriação (art. 22, I e II da CF).
Não menos importante lembrar que mesmo que se enxergasse, na hipótese, situação de desapropriação em benefício da função social da propriedade, seria necessário que ela ocorresse mediante o cumprimento dos requisitos para tanto, estabelecidos na própria Constituição Federal, bem como através do processo especificamente destinado a tal fim, previsto em lei igualmente federal (art. 182, § 4º, III; art. 184, caput, e § 3º da CF).
Acrescente-se finalmente que, na perspectiva em que foi tratada a matéria, revela-se que o legislador municipal invadiu a esfera da legislação a respeito do direito urbanístico, que compete, de forma concorrente, ao legislador federal e ao legislador estadual (art. 24, I da CF).
Por tais motivos, mostra-se evidentemente inconstitucional a imposição prevista na legislação municipal.
Nesse sentido já se posicionou o C. Órgão Especial do Tribunal de Justiça em caso análogo, precedente que, mutatis mutandis, aplica-se ao caso em exame:
“(...)
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Lei Complementar nº 111, de 25 de julho de 2006, do Município de Santa Fé do Sul, que alterou a redação anterior do Plano Diretor, impondo novas condições para aprovação de projetos de parcelamento do solo - Legislação que regulou matéria atinente ao direito urbanístico, acerca da qual compete apenas à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar, na forma estabelecida no artigo 24, inciso I, da Carta Magna - Eventual suplementação da norma federal pelo Município, com esteio no art. 30, incisos I e II, da CF, que deveria ficar restrita às questões de manifesto interesse local, sem estender-se em regras gerais, afetas apenas à competência legislativa da União - Tema, ademais, que já havia sido inteiramente regulado na Lei Federal nº 6.766/79, impedindo a edição de ato normativo em sentido contrário pelo ente público local - Invasão de competência legislativa de outros entes federados pelo Município que restou, portanto, evidenciada - Ato normativo questionado que, ainda, impôs a doação de percentual do loteamento ao Município, como condição à aprovação do projeto, exigência não contida no art. 4º, inciso I, da Lei Federal nº 6.766/79, criando espécie anômala de desapropriação, não prevista no ordenamento jurídico pátrio, em desconsideração ao direito de propriedade - Inexistência, também, de pertinência entre a exigência legal contestada e o interesse público envolvido (ordenação do espaço urbano), pois a obrigação de “doação” de percentual da área dos loteamentos ao Município não importa em benefícios aos moradores locais, o que evidencia, igualmente, violação aos princípios que devem reger a atuação da Administração, insculpidos no art. 111 da Carta Estadual, especialmente os da legalidade, razoabilidade, finalidade e interesse público - Áreas recebidas pelo Município em razão da legislação ora questionada que foram objeto de dezenas de alienações públicas, desde a vigência do ato normativo, no ano de 2006, em negócios que atingiram valor substancial envolveram terceiros de boa-fé, não se mostrando razoável e nem recomendando a desconstituição dessas transações - Presença, destarte, de razões de segurança jurídica na espécie que recomenda a modulação dos efeitos da presente declaração de inconstitucionalidade, a partir da concessão da medida liminar nestes autos, por aplicação da regra contida no art. 27 da Lei Federal nº 9868/99 - Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, com modulação dos efeitos. (TJSP, ADIN n. 0128604-28.2013.8.26.0000, rel. des. Paulo Dimas Mascaretti, j. em 14.05.2014). (g.n.)
(...)”
Por todo o exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente, declarando-se a inconstitucionalidade dos dispositivos anteriormente destacados.
São Paulo, 16 de novembro de 2015.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
aaamj/acssp