Parecer em
Incidente de Inconstitucionalidade
Processo nº 0070157-76.2015.8.26.0000
Suscitante: 9ª Câmara
de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo
Apelante: Ministério
Público do Estado de São Paulo
Apelada: Câmara
Municipal de Cardoso
Ementa:
1)
Incidente de
inconstitucionalidade. Art. 6º, alínea "i" e Anexo da Lei
Complementar nº 16, de 08 de dezembro de 1998, do Município de Cardoso,
que criou o cargo em comissão de “Diretor Parlamentar".
2) Cargo de provimento em comissão cujas atribuições não retratam assessoramento, chefia e direção, mas funções meramente técnicas, burocráticas, operacionais ou profissionais a serem preenchidas por servidores públicos investidos em cargos de provimento efetivo, através de concurso público, de sorte que seu provimento pela via comissionada ofende a Constituição (art. 37, caput, II e V, CF e arts. 111; 115, II e V, CE).
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,
Colendo Órgão Especial:
Trata-se
de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela 9ª Câmara de Direito
Público deste Egrégio Tribunal de Jutiça do Estado de São Paulo quando do
julgamento da apelação nº 0000682-71.2014.8.26.0128, proveniente da Vara Única
da Comarca de Cardoso, figurando como Relator o Juiz de Direito Substituto em
2º grau Doutor José Maria Câmara Junior.
O Colendo Órgão Fracionário arguiu a
inconstitucionalidade do artigo 6º, alínea "i", da Lei Complementar
nº 16, de 08 de dezembro de 1998, do Município de Cardoso, que criou o cargo
em comissão de "Diretor Parlamentar", nos termos da seguinte ementa
do v. acórdão (fls. 316/324):
ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE.
Causa de pedir. Inconstitucionalidade do artigo 6º, alínea "i", da
Lei Complementar Municipal n. 16/98 de Cardoso. Criação de cargo em comissão
que não tem função de chefia, assessoramento e direção no quadro funcional da
Câmara Municipal. Princípio da obrigatoriedade do concurso para acesso aos
cargos públicos e a proibição de cargos comissionados que não tenham função de
chefia, direção e assessoramento. Violação. Inobservância do artigo 37, incisos
II e V, da Constituição Federal. Conjunto probatório que indica a inexistência
de função de chefia, direção e assessoramento. Ação civil pública impugna
relação jurídica específica e concreta. Cognição sobre o substrato da matéria
controvertida qualifica o controle concentrado sobre a inconstitucionalidade da
norma. Obrigatoriedade de atendimento da cláusula de reserva de plenário.
Artigo 97 da CF/88 e Súmula Vinculante n. 10 do STF. Precedente do Órgão
Especial em caso semelhante de dispositivo diverso da mesma lei.
É o relato do essencial.
O artigo 6º, alínea "i", da
Lei Complementar nº 16, de 08 de dezembro de 1998, do Município de Cardoso,
criou o cargo em comissão (cf. Anexo
da referida lei) de "Diretor Parlamentar", definindo-lhe as seguintes
atribuições: "exercer atividades de
apoio logístico ao Presidente, promover o estreitamento das relações entre
Legislativo e comunidade e aos legislativos municipais, estaduais e federais e
atividade de apoio plenário" (fl. 32).
O dispositivo normativo contestado é incompatível com art. 37, caput, II e V, da Constituição Federal:
“Artigo 37 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
II - a
investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso
público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a
complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as
nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e
exoneração;
(...)
V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento”.
A incompatibilidade também alcança preceitos da Constituição Estadual, que reproduzem os dispositivos anteriormente citados:
“Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.
(...)
Artigo 115 - Para a organização da administração
pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por
qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes
normas:
(...)
II - a investidura em cargo ou emprego
público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas
e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissões, declarado em lei,
de livre nomeação e exoneração;
(...)
V – as funções de confiança, exercidas
exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em
comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e
percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção,
chefia e assessoramento.”
De fato, não
se nega ao Município, no exercício da autonomia que lhe é peculiar, a
possibilidade de estruturar a organização burocrática com cargos de provimento
comissionado, mas, nessa empreitada, deve manter respeito às normas constitucionais,
que apontam no quadro de pessoal da Administração Pública o provimento efetivo
como regra e o provimento em comissão como exceção, destinada às funções de
assessoramento, chefia e direção em que desponte como essencial a relação de
confiança.
Além disso, é indispensável que a lei criadora
do cargo comissionado descreva suas respectivas atribuições que só podem ser de
assessoramento, chefia e direção.
A jurisprudência proclama a
inconstitucionalidade de leis que criam cargos de provimento em comissão que
possuem atribuições técnicas, burocráticas ou profissionais, ao exigir que elas
demonstrem, de forma efetiva, que eles tenham funções de assessoramento, chefia
ou direção (STF,
ADI 3.706-MS, Rel. Min. Gilmar Mendes, v.u., DJ 05-10-2007; STF, ADI 1.141-GO, Tribunal
Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 29-08-2002, v.u.,
DJ 29-08-2003, p. 16; STF, AgR-ARE 680.288-RS, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux,
26-06-2012, v.u., DJe 14-08-2012; STF, AgR-AI 309.399-SP, Rel. Min. Dias Toffoli,
Informativo STF 663; STF, AgR-RE 693.714-SP, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux,
11-09-2012, v.u., DJe 25-09-2012; STF, ADI 4.125-TO, Tribunal Pleno, Rel. Min.
Cármen Lúcia, 10-06-2010, v.u., DJe 15-02-2011; TJSP, ADI 150.792-0/3-00, Órgão
Especial, Rel. Des. Elliot Akel, v.u., 30-01-2008). Neste sentido:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEIS 6.600/1998 (ART. 1º, CAPUT E INCISOS I E II), 7.679/2004 E 7.696/2004 E LEI COMPLEMENTAR 57/2003 (ART. 5º), DO ESTADO DA PARAÍBA. CRIAÇÃO DE CARGOS EM COMISSÃO. I - Admissibilidade de aditamento do pedido na ação direta de inconstitucionalidade para declarar inconstitucional norma editada durante o curso da ação. Circunstância em que se constata a alteração da norma impugnada por outra apenas para alterar a denominação de cargos na administração judicial estadual; alteração legislativa que não torna prejudicado o pedido na ação direta. II - Ofende o disposto no art. 37, II, da Constituição Federal norma que cria cargos em comissão cujas atribuições não se harmonizam com o princípio da livre nomeação e exoneração, que informa a investidura em comissão. Necessidade de demonstração efetiva, pelo legislador estadual, da adequação da norma aos fins pretendidos, de modo a justificar a exceção à regra do concurso público para a investidura em cargo público. Precedentes. Ação julgada procedente” (STF, ADI 3.233-PB, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 10-05-2007, v.u., DJe 13-09-2007, RTJ 202/553).
“Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. 2. Direito administrativo. 3. Criação de cargos em comissão por leis municipais. Declaração de inconstitucionalidade pelo TJRS por violação à disposição da Constituição estadual em simetria com a Constituição Federal. 3. É necessário que a legislação demonstre, de forma efetiva, que as atribuições dos cargos a serem criados se harmonizam com o princípio da livre nomeação e exoneração. Caráter de direção, chefia e assessoramento. Precedentes do STF. 4. Ausência de argumentos suficientes para infirmar a decisão agravada. 5. Agravo regimental a que se nega provimento” (STF, AgR-ARE 656.666-RS, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, 14-02-2012, v.u., DJe 05-03-2012).
Da leitura do disposto no art. 6º, alínea "i" da Lei
Complementar nº 16/98, percebe-se a tentativa do legislador municipal de
discriminar as atribuições do cargo comissionado de “Diretor Parlamentar”,
criado no modelo de livre nomeação, em virtude da suposta natureza fiduciária
exigida do ocupante de cargo desse jaez.
No entanto, embora a edição do referido cargo tenha se alicerçado
na forma de provimento em comissão, cujo plexo de atribuições reclama
atribuições de direção, chefia e assessoramento, fácil concluir que o cargo em
questão revela plexo de caráter estritamente ordinário, de sorte a restar
patente a inconstitucionalidade da edição do aludido posto nos moldes em que
foi editado.
A instituição de cargos em comissão, à luz da Carta
Republicana de 1988, não pode ser desarrazoada, artificial, abusiva ou
desproporcional.
Em respeito ao art. 37, II e V, da Constituição
Federal de 1988, reproduzido no art. 115, II e V, da Constituição Estadual, sua
edição impõe a presença das atribuições de assessoramento, chefia e direção
para as quais se empenhe relação de confiança, sendo defesa, portanto, ao
exercício de funções técnicas ou profissionais às quais é reservado o
provimento efetivo precedido de aprovação em certame de provas ou de provas e
títulos (art. 115, II e V, CE).
Conforme
balizada jurisprudência, não é lícito à lei declarar a liberdade de provimento
de qualquer cargo ou emprego público, mas tão somente àqueles que requeiram
relação de confiança nas atribuições de natureza política de assessoramento,
chefia e direção.
Ou seja, a instituição de cargos
desse jaez somente encontra fundamento legítimo quando alicerçada em
atribuições de natureza especial (assessoramento, chefia e direção em nível
superior), às quais se exige relação de confiança, pouco importando a
denominação ou forma de provimento atribuídas, pois, verba non mutant substantiam rei.
Destarte, em obediência aos
imperativos da Carta Maior, na edição de cargos comissionados se faz necessária
a perquirição de sua natureza excepcional amparada no elemento fiduciário, não
satisfeito pela mera declaração do legislador quando da atribuição do nome in iuris ao cargo, sendo assaz relevante
uma análise do plexo de atribuições das funções públicas, que reclama as
conhecidas atribuições de assessoramento, chefia e direção em nível superior,
nas quais esteja presente a necessidade de relação de confiança com os agentes
políticos para o desempenho de tarefas de articulação, coordenação, supervisão
e controle de diretrizes político-governamentais.
Entretanto,
na contramão dos entendimentos perfilhados no curso desta inicial, a LC nº
16/98, por seu artigo 6º, alínea "i" editou o cargo vergastado
(Diretor Parlamentar) em contrariedade aos mandamentos constitucionais
incidentes sobre a temática.
A
partir da análise das funções afetadas ao ocupante do aludido posto, é
cristalino o vício na forma elegida pelo legislador para a instituição do cargo
em epígrafe, posto que suas atribuições arroladas no art. 6º, alínea
"i" do aludido diploma evidenciam funções meramente burocráticas e
ordinárias, a ponto de não se permitir a excepcional via do provimento em
comissão.
Ora,
as atividades descritas neste dispositivo legal não exigem de seu ocupante
especial relação de confiança para com o agente político que o nomeou,
porquanto não se encontram em espectro voltado à articulação, à coordenação, à supervisão
e ao controle de diretrizes político-governamentais.
Em
verdade, as funções descritas no acostado dispositivo revelam, isso sim, o
caráter ordinário dos cargos de “Assessor Parlamentar”,
vez que podem ser desempenhadas por qualquer agente, não se fazendo razoável,
portanto, a burla à regra de provimento erigida pelo Constituinte
Originário, que se funda na escolha via concurso público, sob pena de afronta
direta ao texto constitucional.
Ante o exposto, nosso parecer é
no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e de seu
acolhimento, para declarar a inconstitucionalidade do artigo 6º, alínea
"i", e Anexo da Lei Complementar nº 16, de 08 de dezembro de 1998, do
Município de Cardoso, no tocante ao cargo de "Diretor Parlamentar".
São Paulo, 29 de outubro de 2015.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
lfmm