Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0073528-48.2015.8.26.0000

Suscitante: 15ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo

Apelante: (...)

Apelada: Prefeitura Municipal de São Paulo

Objeto: inconstitucionalidade dos arts. 36 a 46 da Lei nº 13.725/04, do Município de São Paulo

 

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Arts. 36 a 46 da Lei nº 13.725/04, do Município de São Paulo – Código Sanitário Municipal.

2)      Lei que versa sobre organização, manutenção, execução e inspeção do trabalho. Violação da esfera de competência do legislador federal (arts. 1º, 21, XXIV, e 22, I, da CF). Repartição de competências como manifestação do princípio federativo.

3)      Parecer pela admissão e acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

 

 

         Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 15ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação nº 0005124-48.2013.8.26.0053, proveniente da 12ª Vara da Fazenda Pública da Comarca da Capital, figurando como Relator o Desembargador Erbetta Filho.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade dos arts. 36 a 43 da Lei nº 13.725/04, do Município de São Paulo, por afronta aos arts. 21, XXIV, e 22, I, da Constituição Federal.

É o relato do essencial.

Os artigos 36 a 43 da Lei nº 13.725/04, do Município de São Paulo, possuem a seguinte redação:

“TÍTULO IV

SAÚDE E TRABALHO

CAPÍTULO I

DISPOSIÇÕES GERAIS

 Art. 36º - A saúde do trabalhador deve ser resguardada, tanto nas relações sociais que se estabelecem entre o capital e o trabalho, quanto no processo de produção. § 1º - Nas relações estabelecidas entre o capital e o trabalho, estão englobados os aspectos econômicos, organizacionais e ambientais da produção de bens e serviços. § 2º - As ações na área de saúde do trabalhador previstas neste Código compreendem o meio ambiente urbano e rural. § 3º - Para os efeitos do disposto no "caput", as autoridades sanitárias deverão executar ações de inspeção em ambientes de trabalho, visando ao cumprimento da legislação sanitária vigente, incluindo a análise dos processos de trabalho que possam colocar em risco a saúde dos trabalhadores.

 Art. 37º - São obrigações do empregador, além daquelas estabelecidas na legislação em vigor: I. manter as condições e a organização de trabalho, garantindo a promoção, proteção e preservação da saúde dos trabalhadores; II. garantir e facilitar o acesso aos locais de trabalho, pelas autoridades sanitárias, Comissões Internas de Prevenção de Acidentes - CIPAs e pelos representantes dos sindicatos de trabalhadores, a qualquer dia e horário, fornecendo-lhes todas as informações e dados solicitados; III. garantir a participação, nas atividades de fiscalização, dos trabalhadores para tal fim requisitados pela autoridade sanitária; IV. dar ampla informação aos trabalhadores e CIPAs sobre os riscos aos quais estão expostos; V. arcar com os custos de estudos e pesquisas que visem esclarecer os riscos decorrentes das condições de trabalho e do meio ambiente; VI. comunicar imediatamente à autoridade sanitária a detecção de quaisquer riscos para a saúde do trabalhador, de qualquer natureza, tais como físicos, químicos, biológicos, operacionais ou provenientes da organização do trabalho, elaborando cronograma de implementação de sua correção.

Art. 38º - As autoridades sanitárias que executam ações de vigilância em saúde do trabalhador devem desempenhar suas funções, observando os seguintes princípios e diretrizes: I. informar aos trabalhadores, CIPAs e respectivos sindicatos sobre os riscos e danos à saúde no exercício da atividade laborativa e nos ambientes de trabalho; II. assegurar a participação das CIPAs, das comissões de saúde e dos sindicatos de trabalhadores na formulação, planejamento, avaliação e controle de programas de saúde do trabalhador; III. assegurar às CIPAs, às comissões de saúde e aos sindicatos de trabalhadores a participação nos atos de fiscalização, avaliação e pesquisa referentes ao ambiente de trabalho ou à saúde, garantindo acesso aos resultados obtidos;IV. assegurar ao trabalhador em condições de risco grave ou iminente no local de trabalho a interrupção de suas atividades, sem prejuízo de quaisquer direitos, até a eliminação do risco; V. assegurar aos sindicatos o direito de requerer ao órgão competente do Serviço de Vigilância em Saúde a interdição de máquinas, de parte ou de todo o ambiente de trabalho, quando houver exposição a risco iminente para a vida ou saúde dos trabalhadores e da população, com imediata ação do poder público competente; VI. considerar o conhecimento do trabalhador como tecnicamente fundamental para o levantamento das áreas de risco e dos danos à saúde; VII. estabelecer normas técnicas para a proteção da saúde no trabalho, da mulher no período de gestação, do menor e dos portadores de deficiência; VIII. considerar os preceitos e as recomendações dos organismos internacionais do trabalho na elaboração de normas técnicas específicas.

 Art. 39º - É dever da autoridade sanitária competente indicar, bem como obrigação do empregador, adotar todas as medidas necessárias para a plena correção de irregularidades nos ambientes de trabalho, observados os seguintes níveis de prioridades: I. eliminação das fontes de riscos; II. medidas de controle diretamente na fonte; III. medidas de controle no ambiente de trabalho; IV. utilização de equipamentos de proteção individual, que somente deverá ser permitida nas situações de emergência ou nos casos específicos em que for a única possibilidade de proteção, e dentro do prazo estabelecido no cronograma de implantação das medidas de proteção coletiva.

CAPÍTULO II

ESTRUTURAÇÃO DAS ATIVIDADES E ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO

SEÇÃO I

DOS RISCOS NO PROCESSO DE PRODUÇÃO

Art. 40º - O transporte, a movimentação, o manuseio e o armazenamento de materiais, o transporte de pessoas, os veículos e os equipamentos usados nessas operações devem obedecer a critérios estabelecidos em normas técnicas, que preservem a saúde do trabalhador.

Art. 41º - A fabricação, importação, venda, locação, instalação, operação e manutenção de máquinas e equipamentos devem, de igual modo, obedecer ao disposto no artigo 40 desta lei.

Art. 42º - As empresas devem manter sob controle os fatores ambientais de risco à saúde do trabalhador, como ruído, iluminação, calor, frio, umidade, radiações, agentes químicos, pressões hiperbáricas e outros de interesse da saúde, dentro dos critérios estabelecidos em normas técnicas ou reconhecidos como cientificamente válidos.

 Art. 43º - A organização do trabalho deve adequar-se às condições psicofisiológicas dos trabalhadores, tendo em vista as possíveis repercussões negativas sobre a saúde, quer diretamente por meio dos fatores que a caracterizam, quer pela potencialização dos riscos de natureza física, química, biológica e psicossocial, presentes no processo de produção. Parágrafo único - Na ausência de norma técnica federal e estadual, o órgão competente do Sistema de Vigilância em Saúde Municipal deve elaborar instrumentos normativos relacionados aos aspectos da organização do trabalho e ergonômicos que possam expor a risco a saúde dos trabalhadores.”

A Constituição Federal dispõe:

Art. 21. Compete à União:

...

XXIV - organizar, manter e executar a inspeção do trabalho;”

“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;

...”

Há inconstitucionalidade nos dispositivos postos em análise, com violação aos dispositivos citados.

Isto porque, o Código Sanitário Municipal, ao dispor sobre Saúde e Trabalho, tanto nas disposições gerais, como na estruturação das atividades e organização do trabalho, acabou por legislar sobre matérias de competência privativa do legislador federal, nos termos do art. 21, inc. XXIV, e art. 22, I, da Constituição Federal, especialmente quanto à organização, manutenção, execução e inspeção do trabalho.

De fato, um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Como é cediço, a Constituição da República estabelece a repartição constitucional de competências entre as diversas esferas da federação brasileira. E a repartição de competências entre os entes federados é o corolário mais evidente do princípio federativo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, e que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites dos Estados, Distrito Federal e Municípios em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “‘a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

Não pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da própria Federação: a Constituição veda proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art. 60, § 4º, I, da CR/88).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. Supremo Tribunal Federal, como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...) a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

Por essa linha de raciocínio, pode-se também afirmar que a lei municipal que regula matéria cuja competência é do legislador federal e do estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

A prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput, da Constituição Federal prevê que “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e os seguintes preceitos (g.n.).”

Assim, o estabelecimento de normas relativas a Saúde e Trabalho, constantes do diploma normativo impugnado, acabou por invadir a esfera de competência da União e do legislador federal, no tocante à organização, manutenção, execução e inspeção do trabalho (art. 21, XXIV, da CF), bem como ao direito do trabalho (art. 22, I da CF).

Neste sentido já decidiu o Colendo Supremo Tribunal Federal:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ESTADUAL. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE DISPOSITIVOS DA LEI COMPLR MUNICIPAL N. 395/1996. NORMAS QUE DISCIPLINAM AÇÕES DE INSPEÇÃO, SEGURANÇA E MEDICINA DO TRABALHO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PRIVATIVA DA UNIÃO. ARTS. 21, INC. IV E 22, INC. I, DACONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRECEDENTE DO PLENÁRIO. RECURSO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO.

(...)

DECIDO.4. Razão jurídica não assiste ao Recorrente.5. Na assentada de 12.5.2005, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.893, Relator o Ministro Carlos Velloso, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de norma estadual que estabelecia política de proteção à saúde do trabalhador. Naquela ocasião, o Relator adotou como fundamento o parecer do Procurador-Geral da República, proferido nos termos seguintes: Observa-se que o legislador estadual utilizou-se de maneira equivocada de sua competência supletiva para inserir à idéia de saúde, abordada no inciso XII, do mencionado art. 24, a saúde no ambiente do trabalho, matéria esta eminentemente trabalhista, prevista no art. 22, § 1º, como de competência privativa da União. A toda evidência, a Lei impugnada viola os arts. 21, XXIV e 22, I, da Carta Federal, pois os temas atinentes à segurança e à saúde do trabalhador estão insertos no conteúdo do Direito do Trabalho, somente podendo ser objeto de legislação estadual em caso de delegação de competência da União para os Estados, por meio de lei complementar devidamente aprovada pelo Congresso Nacional. Quanto à inspeção do trabalho, não há dúvida de que tal atribuição não assiste ao Estado, mesmo sendo este participante do Sistema Único de Saúde - SUS, pois o art. 200, inciso VIII, expõe claramente sua condição de colaborador para a proteção do meio ambiente de trabalho, sendo a regulamentação, a fiscalização e o controle das ações e serviços de saúde, reservados à Lei, conforme preceitua o art. 197, da Constituição Federal. Cabe ressaltar que a Lei 8.080/90, que regula o art. 197, da Carta Federal, não confere competência aos Estados para legislar sobre a proteção da saúde do trabalhador ou disciplinar a inspeção do trabalho (DJ 4.6.2004 - grifos nossos). Dessa orientação jurisprudencial não divergiu o acórdão recorrido. 6. Pelo exposto, nego seguimento ao recurso extraordinário (art. 557, caput, do Código de Processo Civil e art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal). Publique-se. Brasília, 25 de novembro de 2009. Ministra CÁRMEN LÚCIA – Relatora. (RE – 447.480-RS)”

Nesta seara, resta claro que os artigos 36 a 43 da Lei nº 13.725/04, do Município de São Paulo – Código Sanitário Municipal, invadem a esfera de competência da União, com violação ao pacto federativo (art. 1º da CF), bem como aos artigos 21, inciso XXIV, e 22, inciso I, da CF.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e de seu acolhimento.

                          São Paulo, 24 de novembro de 2015.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

iccb