Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0076736-40.2015.8.26.0000

Suscitante: 4ª Câmara Extraordinária de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo

Apelante: Fazenda do Estado de São Paulo

Apelada: (...)

Objeto: inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 10.948/01

 

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Lei Estadual nº 10.948/01, que “dispõe sobre as penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão de orientação sexual”.

2)      Norma de polícia administrativa e que não constitui invasão da esfera da competência da União para legislar sobre direito civil porque não se destina a regular união homoafetiva nem associações, destinando a tutelar a liberdade de orientação sexual em ambientes públicos e privados.

3)      A declaração, mesmo incidental, de inconstitucionalidade de qualquer ato normativo, exige o contraste direto e frontal com a Constituição, não servindo a esse pretexto desvio na execução da lei

4)      Lei que não regula direito do trabalho e cargos, funções e empregos públicos, e é compatível com a liberdade de orientação sexual, a dignidade da pessoa humana e a proibição do preconceito e da discriminação.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 4ª Câmara Extraordinária de Direito Público, quando do julgamento da apelação nº 0134156-67.2010.8.26.0100, proveniente da Vara das Execuções Fiscais Estaduais da Comarca da Capital, figurando como Relator o Desembargador Aliende Ribeiro.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 10.948/01 por afronta ao art. 22, I da Constituição Federal.

É o relato do essencial.

A Lei n. 10.948, de 05 de novembro de 2001, do Estado de São Paulo, de iniciativa parlamentar, dispõe sobre as penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão de orientação sexual, com a seguinte redação:

 

“Artigo 1.º - Será punida, nos termos desta lei, toda manifestação atentatória ou discriminatória praticada contra cidadão homossexual, bissexual ou transgênero.

Artigo 2.º - Consideram-se atos atentatórios e discriminatórios dos direitos individuais e coletivos dos cidadãos homossexuais, bissexuais ou transgêneros, para os efeitos desta lei:

I - praticar qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica;

II - proibir o ingresso ou permanência em qualquer ambiente ou estabelecimento público ou privado, aberto ao público;

III - praticar atendimento selecionado que não esteja devidamente determinado em lei;

IV - preterir, sobretaxar ou impedir a hospedagem em hotéis, motéis, pensões ou similares;

V - preterir, sobretaxar ou impedir a locação, compra, aquisição, arrendamento ou empréstimo de bens móveis ou imóveis de qualquer finalidade;

VI - praticar o empregador, ou seu preposto, atos de demissão direta ou indireta, em função da orientação sexual do empregado;

VII - inibir ou proibir a admissão ou o acesso profissional em qualquer estabelecimento público ou privado em função da orientação sexual do profissional;

VIII - proibir a livre expressão e manifestação de afetividade, sendo estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos.

Artigo 3.º - São passíveis de punição o cidadão, inclusive os detentores de função pública, civil ou militar, e toda organização social ou empresa, com ou sem fins lucrativos, de caráter privado ou público, instaladas neste Estado, que intentarem contra o que dispõe esta lei.

Artigo 4.º - A prática dos atos discriminatórios a que se refere esta lei será apurada em processo administrativo, que terá início mediante:

I - reclamação do ofendido;

II - ato ou ofício de autoridade competente;

III - comunicado de organizações não-governamentais de defesa da cidadania e direitos humanos.

Artigo 5.º - O cidadão homossexual, bissexual ou transgênero que for vítima dos atos discriminatórios poderá apresentar sua denúncia pessoalmente ou por carta, telegrama, telex, via Internet ou facsímile ao órgão estadual competente e/ou a organizações não-governamentais de defesa da cidadania e direitos humanos.

§ 1.º - A denúncia deverá ser fundamentada por meio da descrição do fato ou ato discriminatório, seguida da identificação de quem faz a denúncia, garantindo-se, na forma da lei, o sigilo do denunciante.

§ 2.º - Recebida a denúncia, competirá à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania promover a instauração do processo administrativo devido para apuração e imposição das penalidades cabíveis.

Artigo 6.º - As penalidades aplicáveis aos que praticarem atos de discriminação ou qualquer outro ato atentatório aos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana serão as seguintes:

I - advertência;

II - multa de 1000 (um mil) UFESPs - Unidades Fiscais do Estado de São Paulo;

III - multa de 3000 (três mil) UFESPs - Unidades Fiscais do Estado de São Paulo, em caso de reincidência;

IV - suspensão da licença estadual para funcionamento por 30 (trinta) dias;

V - cassação da licença estadual para funcionamento.

§ 1.º - As penas mencionadas nos incisos II a V deste artigo não se aplicam aos órgãos e empresas públicas, cujos responsáveis serão punidos na forma do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado - Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968.

§ 2.º - Os valores das multas poderão ser elevados em até 10 (dez) vezes quando for verificado que, em razão do porte do estabelecimento, resultarão inócuas.

§ 3.º - Quando for imposta a pena prevista no inciso V supra, deverá ser comunicada a autoridade responsável pela emissão da licença, que providenciará a sua cassação, comunicando-se, igualmente, a autoridade municipal para eventuais providências no âmbito de sua competência.

Artigo 7.º - Aos servidores públicos que, no exercício de suas funções e/ou em repartição pública, por ação ou omissão, deixarem de cumprir os dispositivos da presente lei, serão aplicadas as penalidades cabíveis nos termos do Estatuto dos Funcionários Públicos.

Artigo 8.º - O Poder Público disponibilizará cópias desta lei para que sejam afixadas nos estabelecimentos e em locais de fácil leitura pelo público em geral.

Artigo 9.º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação”.

 

                   Trata-se de norma de polícia administrativa, prerrogativa que assiste ao Estado em razão de sua soberania, e que não constitui invasão da esfera da competência da União para legislar sobre direito civil, pois, não se arrola a matéria na atribuição federal.

                   Nem se alegue que a lei ao vedar a prática de atos discriminatórios em relação à orientação sexual disciplina as relações jurídicas civis homoafetivas ou associativas. Não é esse o objeto da lei e para declarar-se, mesmo incidentalmente, a inconstitucionalidade de qualquer ato normativo, é indispensável o contraste direto e frontal com a Constituição, não servindo a esse pretexto eventual desvio na execução da lei. A lei, como emerge de sua leitura, não visa à proteção da liberdade de orientação sexual de pessoas que vivam em união homoafetiva – respaldada pelo Supremo Tribunal Federal -, mas, tutela aquele bem jurídico de maneira ampla, geral e incondicionada inclusive em favor das pessoas que não convivam com outras de idêntico sexo.

                   Tampouco é possível invocar simetria com o mencionado precedente da Suprema Corte que pronunciou a inconstitucionalidade de lei estadual que punia atos discriminatórios em razão de sexo, raça ou credo nas relações de trabalho públicas ou privadas, porque nesta hipótese o defeito de inconstitucionalidade residiu, como evidencia a leitura do respectivo aresto, na competência normativa federal para direito do trabalho e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo no tocante a cargos, funções e empregos públicos.

                   Aliás, a lei em foco é plenamente compatível com a liberdade de orientação sexual, a dignidade da pessoa humana e a proibição do preconceito e da discriminação, tal como delineado nos arts. 1º, 3º e 5º da Constituição de 1988, conclusão abonada pelo Supremo Tribunal Federal ao gizar que:

“Ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual. Os homossexuais, por tal razão, têm direito de receber a igual proteção tanto das leis quanto do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual” (RTJ 220/572).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e, no mérito, por sua improcedência.

                          São Paulo, 24 de novembro de 2015.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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