Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0077404-11.2015.8.26.0000

Suscitante: 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

 

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Artigo 2º da Lei Municipal nº 3.329/12 e seu Anexo II, do Município de Miguelópolis, que criam cargos de provimento em comissão.

2)      Inocorrência de perda do objeto, eis que a revogação da lei não obsta o controle difuso de sua constitucionalidade e nem retira o interesse no incidente de inconstitucionalidade.

3)      Cargos de provimento em comissão que não retratam atribuições de assessoramento, chefia e direção, senão funções técnicas, burocráticas, operacionais e profissionais a serem preenchidas por servidores públicos investidos em cargos de provimento efetivo. Inexigibilidade de especial relação de confiança. Violação de dispositivos da Constituição Federal (arts. 37, II e V).

 

 

 

  

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça, quando do julgamento da Apelação Cível nº 0000271-69.2013.8.260352, da Comarca de Miguelópolis.

A Col. Turma arguiu necessidade de análise da constitucionalidade do Anexo II da Lei Municipal nº 3.329/12 e seu art. 2º, do Município de Miguelópolis, que criaram cargos de provimento em comissão na estrutura da Câmara Municipal.

O v. acórdão (fls. 178/182) indica com precisão qual seria a inconstitucionalidade dos referidos atos normativos, por ofensa ao artigo 37, incisos II e V da Constituição Federal, embora por erro de digitação mencione em algumas passagens o inciso III.

É o relato do essencial.

O Parecer.

Preliminarmente, cumpre destacar que, ao contrário do alegado no recurso, a revogação da lei não retira o interesse no incidente de inconstitucionalidade, de modo que nada obsta o controle difuso de sua constitucionalidade.

Realmente, quando da propositura da ação civil pública, que teve como causa de pedir a inconstitucionalidade da lei municipal, o ato normativo aqui impugnado estava em vigor, produzindo seus regulares efeitos.

A sentença julgou procedente a ação reconhecendo incidentalmente a inconstitucionalidade da lei e impondo as obrigações de fazer e não fazer descritas na inicial a fls. 20/21. 

Ao contrário do que ocorre nas ações diretas de inconstitucionalidade, que perdem o objeto e podem ser extintas sem julgamento do mérito em razão de alteração ou revogação da lei, porque objetivam o controle em abstrato ou concentrado, o incidente de inconstitucionalidade arguido se presta ao controle de constitucionalidade difuso ou concreto, exatamente porque a lei, ainda que revogada posteriormente, produziu efeitos concretos que estão sendo atacados na ação.

No mérito, a questão decorre da necessidade de se verificar a constitucionalidade do Anexo II e art. 2º da Lei Municipal nº 3.329/12, do Município de Miguelópolis, em face dos arts 37, II e V da Constituição Federal, conforme apontado no acordão que suscitou o incidente de inconstitucionalidade.

A inconstitucionalidade se dá pelo fato de os cargos de provimento em comissão criados na estrutura administrativa da Câmara Municipal não retratam atribuições de assessoramento, chefia e direção, senão funções técnicas, burocráticas, operacionais e profissionais a serem preenchidas por servidores públicos investidos em cargos de provimento efetivo.

Verifica-se que o art. 2º da Lei nº 3.329, de 13 de dezembro de 2012, do Município de Miguelópolis (fls. 33/35) criou cargos de provimento em comissão na Câmara Municipal os quais foram discriminados no anexo II como:

 

Quant.

Denominação

11

Assessor Parlamentar

02

Assessor do Gabinete da Presidência da Câmara

01

Chefe de Gabinete da Presidência

 

O mesmo anexo, copiado a fls 34/35 descreve as atribuições desses cargos.

1.   DA NATUREZA BUROCRÁTICA DAS FUNÇÕES DESEMPENHADAS PELOS OCUPANTES DOS CARGOS COMISSIONADOS

Os cargos de provimento em comissão criados têm natureza meramente burocrática, operacional e profissional, com   atribuições de rotina, interlocução, acompanhamentos e informações.  Todas são atividades destinadas a atender necessidades executórias dos parlamentares e não mais que isto.

Inclusive percebe-se que tais cargos possuem praticamente as mesmas atribuições, nada técnicas, distantes dos encargos de comando superior em que se exige especial confiança e afinamento com as diretrizes políticas, que exigem e justificam o provimento em comissão.

Além destes aspectos indicativos de que os cargos impugnados desempenham funções subalternas, de pouca complexidade, exigindo-se tão somente o dever comum de lealdade às instituições públicas, necessárias a todo e qualquer servidor, a descrição genérica de suas atribuições evidenciam a natureza puramente profissional, fora dos níveis de direção, chefia e assessoramento superior.

Dessa forma, os cargos comissionados anteriormente destacados são incompatíveis com a ordem constitucional vigente.

Essa incompatibilidade decorre da inadequação ao perfil e limites impostos pela Constituição quanto ao provimento no serviço público sem concurso.

Embora o Município seja dotado de autonomia política e administrativa, dentro do sistema federativo (cf. art. 1º e art. 18 da Constituição Federal), esta autonomia não tem caráter absoluto, pois se limita ao âmbito pré-fixado pela Constituição Federal (cf. José Afonso da Silva, Direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 459).

A autonomia municipal deve ser exercida com a observância dos princípios contidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual (cf. Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior, Curso de direito constitucional, 9ª ed., São Paulo, Saraiva, 2005, p. 285).

Todavia, a possibilidade de que o Município organize seus próprios serviços encontra balizamento na ordem constitucional, sendo necessário que o faça através de lei, respeitando normas constitucionais federais e estaduais relativas ao regime jurídico do serviço público.

A regra, no âmbito de todos os Poderes Públicos, deve ser o preenchimento dos postos através de concurso público de provas ou de provas e títulos, pois assim se garante a acessibilidade geral (prevista no art. 37, I, da Constituição Federal). Essa deve ser a forma de preenchimento dos cargos e cargos de natureza técnica ou burocrática.

A criação de cargos de provimento em comissão, de livre nomeação e exoneração, deve ser limitada aos casos em que seja exigível especial relação de confiança entre o governante e o servidor, para que adequadamente sejam desempenhadas funções inerentes à atividade predominantemente política.

Há implícitos limites à sua criação, visto que, assim não fosse, estaria na prática aniquilada a exigência constitucional de concurso para acesso ao serviço público.

A propósito, anota Hely Lopes Meirelles, amparado em precedente do E. Supremo Tribunal Federal, que “a criação de cargo em comissão, em moldes artificiais e não condizentes com as praxes do nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional do concurso (STF, Pleno, Repr.1.282-4-SP)” (Direito administrativo brasileiro, 33. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 440).

Podem ser de livre nomeação e exoneração apenas aqueles cargos que, pela própria natureza das atividades desempenhadas, exijam excepcional relação de confiança e lealdade, isto é, verdadeiro comprometimento político e fidelidade com relação às diretrizes estabelecidas pelos agentes políticos, que vão bem além do dever comum de lealdade às instituições públicas, necessárias a todo e qualquer servidor.

É esse o fundamento da argumentação no sentido de que “os cargos em comissão são próprios para a direção, comando ou chefia de certos órgãos, onde se necessita de um agente que sobre ser de confiança da autoridade nomeante se disponha a seguir sua orientação, ajudando-a a promover a direção superior da Administração. Por essas razões percebe-se quão necessária é essa fragilidade do liame. A autoridade nomeante não pode se desfazer desse poder de dispor dos titulares de tais cargos, sob pena de não poder contornar dificuldades que surgem quando o nomeado deixa de gozar de sua confiança” (cf. Diógenes Gasparini, Direito Administrativo, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 1993, p. 208).

Daí a afirmação de que “é inconstitucional a lei que criar cargo em comissão para o exercício de funções técnicas, burocráticas ou operacionais, de natureza puramente profissional, fora dos níveis de direção, chefia e assessoramento superior” (cf. Adilson de Abreu Dallari, Regime constitucional dos servidores públicos, 2. ed., 2. tir., São Paulo, RT, 1992, p. 41, g.n.).

São a natureza do cargo e as funções a ele cometidas pela lei que estabelecem o imprescindível “vínculo de confiança” (cf. Alexandre de Moraes, Direito constitucional administrativo, São Paulo, Atlas, 2002, p. 158), que justifica a dispensa do concurso. Daí o entendimento de que tais cargos devam ser destinados “apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento” (cf. Odete Medauar, Direito administrativo moderno, 5. ed., São Paulo, RT, p. 317).

Essa também é a posição do E. Supremo Tribunal Federal (ADI-MC 1141/GO, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, J. 10/10/1994, Pleno, DJ 04-11-1994, PP-29829, EMENT VOL-01765-01 PP-00169).

Não é qualquer unidade de chefia, assessoramento ou direção que autoriza o provimento em comissão, a atribuição do cargo deve reclamar especial relação de confiança para desenvolvimento de funções de nível superior de condução das diretrizes políticas do governo.

Pela análise da natureza e das atribuições dos cargos impugnados não se identificam os elementos que justificam o provimento em comissão.

Escrevendo na vigência da ordem constitucional anterior, mas em lição plenamente aplicável ao caso em exame, anotava Márcio Cammarosano a existência de limites à criação de postos comissionados pelo legislador. A Constituição objetiva, com a permissão para tal criação, “propiciar ao Chefe de Governo o seu real controle mediante o concurso, para o exercício de certas funções, de pessoas de sua absoluta confiança, afinadas com as diretrizes políticas que devem pautar a atividade governamental. Não é, portanto, qualquer plexo unitário de competências que reclama seja confiado o seu exercício a esta ou aquela pessoa, a dedo escolhida, merecedora da absoluta confiança da autoridade superior, mas apenas aquelas que, dada a natureza das atribuições a serem exercidas pelos seus titulares, justificam exigir-se deles não apenas o dever elementar de lealdade às instituições constitucionais e administrativas a que servirem, comum a todos os funcionários, como também um comprometimento político, uma fidelidade às diretrizes estabelecidas pelos agentes políticos, uma lealdade pessoal à autoridade superior (...). Admite-se que a lei declare de livre provimento e exoneração cargos de diretoria, de chefia, de assessoria superior, mas não há razão lógica que justifique serem declarados de livre provimento e exoneração cargos como os de auxiliar administrativo, fiscal de obras, enfermeiro, médico, desenhista, engenheiro, procurador, e outros mais, de cujos titulares nada mais se pode exigir senão o escorreito exercício de suas atribuições, em caráter estritamente profissional, técnico, livres de quaisquer preocupações e considerações de outra natureza” (Provimento de cargos públicos no direito brasileiro, São Paulo, RT, 1984, p. 95/96).

No caso em exame, evidencia-se claramente que os cargos de provimento em comissão, antes referidos, destinam-se ao desempenho de atividades meramente burocráticas ou técnicas, que não exigem, para seu adequado desempenho, relação de especial confiança.

É necessário ressaltar que a posição aqui sustentada encontra esteio em julgados desse E. Tribunal de Justiça (ADI 111.387-0/0-00, j. em 11.05.2005, rel. des. Munhoz Soares; ADI 112.403-0/1-00, j. em 12 de janeiro de 2005, rel. des. Barbosa Pereira; ADI 150.792-0/3-00, julgada em 30 de janeiro de 2008, rel. des. Elliot Akel; ADI 153.384-0/3-00, rel. des. Armando Toledo, j. 16.07.2008, v.u.).

2.     NÍVEL DE ESCOLARIDADE EXIGIDO PARA OS CARGOS EM COMISSÃO

Verifica-se ainda que para os tais cargos em comissão, sequer foi mencionado o nível de escolaridade exigido, o que reforça a natureza de atividades executórias de pouca complexidade, de nível subalterno, sem poder de mando e comando a justificar o provimento em comissão.

De outro lado, não há, evidentemente, nenhum componente nos postos previstos na lei local que lhes imponha atribuição de formulação, direção e execução das diretrizes políticas superiores a ser desempenhado por alguém que detenha absoluta fidelidade a orientações traçadas.

A ausência de escolaridade mínima para os mencionados cargos afasta a complexidade da função, haja vista não exigir os conhecimentos específicos que possuem as pessoas que ostentam nível superior de ensino e estão em condições de exercer atribuições de chefia, direção e assessoramento superior que justifica o provimento em comissão. Portanto, violam o art. 37, II e V, da Constituição Federal.

Diante do exposto, nosso parecer é pelo conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e seu acolhimento para reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei Municipal nº 3.329/12 e seu Anexo II, do Município de Miguelópolis, que criam cargos de Assessor Parlamentar, Assessor do Gabinete do Presidente da Câmara e Chefe de Gabinete da Presidência para provimento em comissão.

                

 São Paulo, 07 de dezembro de 2015.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

 

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