Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0078242-51.2015.8.26.0000

Suscitante: 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo

Apelante: (...)

Apelada: Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto

Objeto: inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 1.158/00, do Município de Ribeirão Preto

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Lei Complementar nº 1.158/00 do Município de Ribeirão Preto, que “Dispõe sobre a permissão de uso das vias públicas e obras de arte do Município e dá outras providências”.

2)      É inconstitucional lei local que institui retribuição pelo uso e ocupação do solo para a implantação e instalação de equipamentos de infraestrutura urbana, destinados à prestação de serviços públicos, por violação ao princípio federativo e ao da razoabilidade.

3)      Ofende a razoabilidade e o interesse público onerar a prestação de serviço público federal pela remuneração do uso de bem público municipal necessário à sua execução, não bastasse a competência da União para disciplina do assunto.  Constituição Estadual: arts. 1º, 111 e 144. 

4)      Parecer pela admissão e acolhimento parcial do incidente de inconstitucionalidade.

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 3ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação n. 0161618-76.2008.8.26.0000, da Vara da Fazenda Pública de Ribeirão Preto, figurando como Relator o Desembargador Magalhães Coelho.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 1158/00 do Município de Ribeirão Preto, por violação ao princípio federativo, tendo ficado consignado no acórdão o seguinte:

“(...)

Assim, se a Municipalidade pretende condicionar a prestação do serviço público já concedido pela União, à expedição de direito de permissão e à cobrança de preço público, opera em evidente desvio de finalidade, além de invadir – e nisso reside, em tese, a inconstitucionalidade da lei – competência da União a quem cabe exclusivamente legislar sobre matéria de comunicações.

(...)”

É o relato do essencial.

A princípio, ressalta-se que foge do razoável o pagamento de preço público como retribuição pelo uso do solo e subsolo a ser prestada pelas empresas de prestação de serviços públicos e privados.

A questão já foi abordada na literatura jurídica, manifestando Maria Sylvia Zanella Di Pietro que “quando o particular utiliza privativamente um bem público para prestar um serviço que vai beneficiar toda a coletividade, não se justifica a remuneração” (Parcerias na Administração Pública, São Paulo: Atlas, 2005, 5ª ed., p. 405), nessa autêntica concessão acessória de bem público a de serviço público (Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 2010, 23ª ed., p. 700).

Afronta a razoabilidade e o interesse público o ato normativo impugnado, o que evidencia ofensa ao art. 111 da Constituição Estadual.

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é ainda verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo.

De fato, prevê a Constituição Federal que:

“Art. 21. Compete à União:

(...)

XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens;

b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;

(...)

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(...)

IV - águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;

(...)”

A competência legislativa ampla em matéria de prestação de serviços de energia elétrica, telecomunicações, radiodifusão sonora, e de sons e imagens não diz respeito apenas à União como ente central, afeta a todos os entes federativos e à população de modo geral, assumindo caráter nitidamente nacional.

No exercício desta competência, a União editou uma série de atos normativos de abrangência expressamente nacional tratando da matéria.

Sobre a matéria de telecomunicações, a União, no uso de sua competência privativa de legislar (CF, art. 22, IV), editou a Lei n. 9.472/97, estabelecendo que a ela cabe, através do órgão regulador, organizar a exploração dos serviços de telecomunicações. Dispôs que a organização inclui, entre outros aspectos, o disciplinamento e a fiscalização da execução, comercialização e uso dos serviços e da implantação e funcionamento de redes de telecomunicações, bem como da utilização dos recursos de órbita e espectro de radiofrequências (art. 1º e parágrafo único).

À Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), a lei conferiu as atribuições de órgão regulador (art. 8º), com competência para adotar as medidas necessárias ao atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, dentre elas a expedição de normas e padrões a serem cumpridos pelas respectivas prestadoras de serviços em relação aos equipamentos que utilizarem (art. 19, XII).

Na área dos serviços de energia elétrica, a Lei n. 9.427, de 26 de dezembro de 1996, instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, conferindo-lhe poderes para regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal (art. 2º).

O esquema de repartição de competências entre os entes federados – expressão do princípio federativo – conferiu à União, sem espaço para os Estados e para os Municípios, a competência privativa para legislar sobre águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão, bem como para explorar os serviços e instalações de energia elétrica e os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens (art. 22, IV e 21, XII, a e b da Constituição Federal).

No que toca à prestação dos serviços públicos, a doutrina contemporânea destaca o princípio da predominância do interesse como diretriz da repartição de competências entre os entes federativos. Assim, compete à União tratar das questões de interesse geral, nacional; aos Estados, cabem as matérias de interesse regional; e, aos Municípios, as de interesse local.

Os serviços públicos de interesse nacional, como parece óbvio, exigem estrutura também de vulto nacional, com soluções técnicas e econômicas de larga escala, capazes de fazer frente às necessidades de todo o país, o que justifica sua atribuição à União. Os serviços de energia elétrica, de telecomunicações, entre outros, atingidos pela legislação de Votorantim são um exemplo claro dessa circunstância e, com fundamento nessa competência, a União tem regulado a matéria e mantido o serviço.

A competência da União para prestar serviço de energia elétrica, de radiodifusão sonora, e de sons e imagens importa, também, na competência para regulamentar a prestação do referido serviço, uma vez que, por questão de lógica, confere a esse ente o poder de se valer dos meios essenciais à prestação do serviço.

As competências constitucionais não são enunciados vazios. Pelo contrário, vêm acompanhadas das prerrogativas explícitas ou implícitas indispensáveis à sua execução. Não faria sentido imaginar que a Constituição Federal outorgasse competência a um ente e não lhe conferisse poderes para executá-la.

Os entes locais, no exercício de suas próprias competências, não podem restringir ou inviabilizar as de caráter nacional ou regional atribuídas, respectivamente, à União ou aos Estados. Na verdade, o que não se admite é que pretensões locais possam inviabilizar a realização de necessidades mais abrangentes, que incluem a localidade, mas vão para além dela.

Interesses locais não podem inviabilizar a execução de competências de caráter nacional e estadual. Por sua vez, a competência para regular determinado assunto não autoriza o ente a inviabilizar a execução das atribuições do outro.

A questão central da presente ação envolve o conflito entre o que dispõe, de um lado, a competência e atribuição constitucional conferida à União para a disciplina do serviço público de energia elétrica, de radiodifusão sonora, de sons e imagens e, de outro, a lei municipal, a qual pretende impor exigências e valor retributivo aos concessionários dos referidos serviços, invocando competências relacionadas à disciplina do uso do solo.

Importante, então, traçar algumas considerações acerca da competência municipal para legislar acerca de matéria relacionada ao uso do solo.

Acerca do ordenamento urbanístico, a Constituição Federal estabelece que:

“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;

(...)

Art. 30. Compete aos Municípios:

(...)

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

(...)

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.”

Está claro que o ordenamento do espaço territorial urbano caracteriza-se por nítido interesse local, razão da atribuição de sua competência ao Município.

De qualquer forma, a participação coordenada dos diferentes entes em matéria urbanística e ambiental insere-se no chamado federalismo cooperativo e justifica-se, sobretudo, pelas particularidades de que podem se revestir tais questões em cada região ou localidade.

O dever compartilhado não significa, porém, que o propósito da Constituição seja a superposição completa entre a atuação dos entes federados, como se detivessem competência irrestrita em relação a todas as questões.

Na realidade, a divisão de competências urbanísticas e ambientais é realizada não apenas em respeito à autonomia federativa, mas também para assegurar efetividade à tutela do meio ambiente natural e artificial (ordenação urbanística) e harmonizá-Ia com outras finalidades igualmente protegidas pela Constituição.

 Nesses domínios compartilhados, a Constituição estabelece um padrão interno de divisão das atribuições. À União compete editar normas gerais, cabendo aos Estados e ao Distrito Federal a tarefa de suplementar a legislação instituída pelo ente central. Assim, caberá à União definir linhas orientadoras para a atividade legislativa dos Estados e dispor diretamente sobre as matérias que exijam logicamente a instituição de regramento uniforme. No caso, e.g., de atividades que precisam ser desenvolvidas nacionalmente, de forma contínua e interligada, as exigências impostas pelo Poder Público em matéria urbanística devem ser naturalmente homogêneas. Disso decorreria a necessária inserção da disciplina de tais questões no âmbito das normas gerais e, consequentemente, na esfera de competência da União.

 A Constituição Federal, nos seus arts. 30, VIII, e 182, reserva ao Município um papel de destaque na ordenação e no zoneamento do solo urbano. Essa competência apresenta grande interesse para o ordenamento urbanístico da cidade e para a tutela do meio ambiente, permitindo que seja delimitada a zona de impacto das atividades potencial ou efetivamente poluentes.

De qualquer forma, a competência legislativa do Município está restrita ao tratamento de assuntos de interesse local (art. 30, I, da Constituição Federal) e à eventual complementação da legislação federal e estadual (art. 30, II, da Constituição Federal) em função de eventuais peculiaridades da municipalidade.

É certo que o exposto acima, sob a perspectiva teórica, aplica-se às competências municipais referentes à proteção do meio ambiente e à ordenação urbanística do seu território. A Constituição não autoriza os Municípios a legislarem sobre toda e qualquer questão capaz de afetá-los em matéria urbanística e ambiental, ainda quando extrapole as fronteiras locais e repercuta em outros Municípios ou mesmo nacionalmente.

Notadamente, uma leitura ampliativa da competência municipal para legislar sobre interesse local desequilibraria o sistema de repartição de competências federativas por uma razão bastante simples. A União e os Estados não detêm um território diverso do que é representado pelo conjunto dos Municípios, de modo que a maioria das questões, por mais abrangentes que sejam, afetam, também, interesses locais. Se essa circunstância, por si só, autorizasse a intervenção legislativa municipal, seu objeto seria praticamente ilimitado, esvaziando a competência dos demais entes.

Diversos exemplos ilustram o ponto. Um Município de fronteira não poderá legislar sobre defesa nacional ou imigração, matérias de competência privativa da União, sob o argumento de que o conjunto normativo editado pelo ente central é insatisfatório e causa transtornos à municipalidade.

Da mesma forma, não há dúvida de que a instalação de uma usina nuclear ou hidroelétrica em determinado Município é um evento capaz de afetar profundamente os interesses locais. Os possíveis impactos para o meio ambiente e o ordenamento urbanístico municipal também são evidentes. Nada obstante, a Constituição determina que a União estabelecerá, por lei, a localização dessas instalações (no caso das nucleares). O Município cujo território venha a ser escolhido não poderá invocar sua competência legislativa para o fim de impedir a instalação da usina, quer diretamente, quer por meio da instituição de exigências urbanísticas que inviabilizem a instalação e/ou o funcionamento da unidade.

Ainda que os legisladores ou a população do Município se oponham radicalmente à determinada política de imigração ou à utilização da referida matriz energética, a decisão simplesmente não lhes cabe no âmbito da Federação brasileira. Esses agentes poderão tentar se valer de ações políticas ou mesmo jurídicas para modificar a vontade do ente central, mas não podem subverter a divisão federativa de competências e atropelar as decisões tomadas por outras esferas de governo no exercício de suas atribuições constitucionais.

O argumento está sendo empregado em relação aos Municípios, mas pode ser generalizado no âmbito da Federação: a repartição de competências determina quem deverá decidir, sem que se abra espaço para que outras unidades federativas, descontentes, reformulem ou ignorem a decisão tomada.

O espaço de atuação material deve ser definido a partir da interpretação sistemática do sistema de repartição de competências, aplicando-se os critérios de solução de conflitos: (i) a prevalência de competências específicas sobre as genéricas; e (ii) a predominância do interesse.

Será igualmente necessário observar o conjunto normativo editado sobre cada tema no exercício das competências legislativas já analisadas.

Afinal, embora se admita que a Constituição possa fundamentar diretamente a prática de atos administrativos, a lei continua sendo a grande baliza dos atos materiais praticados pelo Poder Público, sobretudo quando a norma constitucional prevê uma meta geral, ficando a definição dos meios para atingi-la a cargo da política majoritária. Nesse contexto, e como parece evidente, as competências legislativas condicionam o exercício das administrativas, e não o contrário.

 À luz desses parâmetros, é possível concluir que caberá à União a primazia no controle administrativo incidente sobre as atividades que apresentem repercussão ambiental nacional; aos Estados e ao Distrito Federal, as atividades de repercussão regional; e, aos Municípios, a fiscalização das atividades que apresentem impacto local.

É certo que tais critérios não estabelecem zonas de competência absolutamente estanques, sendo até mesmo desejável que haja cooperação entre os entes na fiscalização de possíveis agressões ao meio ambiente e ao ordenamento urbanístico, coordenando esforços e minimizando o risco de omissões.

Cuida-se, como foi referido, de uma relação de primazia, cuja principal manifestação ocorrerá nos casos de conflito entre a orientação de entes situados em diferentes níveis federativos. Nesses casos, será necessário definir o responsável pela palavra final, devendo prevalecer a decisão emanada do ente situado no nível de abrangência correspondente ao potencial ou efetivo impacto ambiental ou urbanístico. Estando presente interesse nacional, não há como afastar a precedência da União.

Os critérios de divisão de competências que se acaba de resumir foram adotados de forma expressa pelo Min. Celso de Mello ao decidir sobre pedido de medida cautelar na AC 1255/RR. Vale a pena transcrever uma passagem da decisão:

"É certo que os limites de atuação normativa e administrativa das pessoas políticas que compõem a estrutura institucional da Federação brasileira (CF, art. 18, "caput") acham-se predeterminados no próprio texto da Constituição da República, que define, mediante a técnica dos poderes enumerados e residuais, a esfera de atribuições de cada uma das unidades integrantes do Estado Federal, como resulta claro do que dispõem os arts. 21 a 24 da Lei Fundamental. Nesse contexto, cabe, à União Federal, considerada a maior abrangência dos interesses por cuja defesa deve velar, o desempenho de um papel de alto relevo no plano da proteção ambiental e da utilização dos mecanismos inerentes ao fiel adimplemento de tal encargo constitucional. (...) Vê-se, portanto, considerada a repartição constitucional de competências em matéria ambiental, que, na eventualidade de surgir conflito entre as pessoas políticas no desempenho de atribuições que lhes sejam comuns - como sucederia, p. ex., no exercício da competência material a que aludem os incisos VI e Vll do art. 23 da Constituição -, tal situação de antagonismo resolver-se-á mediante aplicação do critério da preponderância do interesse e, quando tal for possível, pela utilização do critério da cooperação entre as entidades integrantes da Federação (...). Isso significa que, concorrendo projetos da União Federal e do Estado membro visando à instituição, em determinada área, de reserva extrativista, o conflito de atribuições será suscetível de resolução, caso inviável a colaboração entre tais pessoas políticas, pela aplicação do critério da preponderância do interesse, valendo referir - como já assinalado - que, ordinariamente, os interesses da União revestem-se de maior abrangência. (...) Isso tudo evidencia, em princípio, notadamente em face da norma de competência exclusiva inscrita no art. 21, IX, da Constituição da República, o caráter preponderante (porque mais abrangente) do interesse da União Federal em tema ambiental, em ordem a reconhecer-se-lhe, ordinariamente, precedência, se e quando concorrerem, relativamente à mesma área, projetos federais e estaduais eventualmente conflitantes, ressalvada, no entanto, a possibilidade constitucional - sempre desejável - de cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, nos termos de lei complementar da própria União, cujas normas considerarão, para efeito da referida colaboração, o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional (CF, art. 23, parágrafo único) (...) .

Como já descrito, a questão central do presente estudo envolve o conflito entre o que dispõe, de um lado, a legislação federal que trata do serviço público de energia elétrica, telecomunicações, radiodifusão sonora, e de sons e imagens e, de outro, lei municipal que pretende impor exigências à União, aos Estados e ao Município ou aos concessionários dos referidos serviços, invocando competências relacionadas ao ordenamento urbanístico.

O primeiro passo para a solução do conflito federativo descrito é a identificação das competências atribuídas a cada um dos entes estatais pela Constituição Federal. No caso da União, interessa à presente hipótese suas competências: a) privativa para legislar sobre águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão (art. 22, IV, da Constituição Federal); b) concorrente com os Estados para legislar sobre direito urbanístico, cabendo-lhe a edição de normas gerais (art. 24, I, CF); c) privativa para prestar o serviço de radiodifusão sonora, e de sons e imagens e os serviços e instalações de energia elétrica (art. 21, XII, a e b, CF); e d) do Município para promover, no que couber, adequado ordenamento territorial  (art. 30, VIII, CF).

Importante ressaltar que cabe aos Municípios "promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano" (art. 30, VIII, CF), o que lhes permite zonear seus respectivos territórios e, assim, evitar que atividades poluentes provoquem impacto direto sobre áreas residenciais ou que o uso não ordenado do solo repercuta sobre a qualidade de vida da cidade.

Assim, podemos identificar o seguinte conflito normativo gerado pela lei municipal que, a pretexto de regular o uso do solo, interfere diretamente na prestação de serviços de competência da União.

A competência da União para prestação de serviço de energia elétrica, telecomunicações, radiodifusão sonora, e de sons e imagens não é irrelevante. Por si só, ela teria o condão de conferir a esses entes o poder de se valer dos meios essenciais à prestação do serviço. As competências constitucionais não são enunciados vazios, vindo naturalmente acompanhadas das prerrogativas indispensáveis à sua execução. Contudo, considerando que a competência normativa na matéria também é privativa da União, toma-se desnecessário considerar esse aspecto em um primeiro momento.

No conflito apontado, embora detenham os Municípios competência legislativa em matéria de uso e ocupação do solo, o seu exercício não lhe confere um poder normativo autônomo, em contraste com as competências legislativas que a Constituição atribui a outros órgãos.

O suposto conflito entre a competência privativa da União para legislar sobre águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão, bem como para explorar os serviços e instalações de energia elétrica e os serviços de radiodifusão sonora, atrairia a aplicação do critério da generalidade-especialidade: a competência legislativa genérica em matéria urbanística e a competência sobre energia, informática, telecomunicações e radiodifusão como norma específica, nesse particular, inclusive no que diz respeito às repercussões urbanísticas da atividade. Essa modalidade de conflito, como é corrente, é solucionada pela prevalência das competências específicas, na medida da sua especificidade, mantendo-se a validade dos enunciados gerais e sua aplicação às demais hipóteses.

Com efeito, a disciplina dos serviços de energia, informática, telecomunicações e radiodifusão terá de cuidar em alguma medida de questões urbanísticas correlatas, sendo indispensável que haja um regime nacional da matéria. Por outro lado, o tratamento urbanístico decorrente da implantação da infraestrutura para tais serviços não poderá ser concebido de forma isolada e estanque, sem comunicação com os outros interesses envolvidos na regulação do setor, notadamente a necessidade de manutenção de um sistema eficiente e acessível.

Por tudo isso, retirar os aspectos urbanísticos da disciplina unificada dos serviços de energia elétrica, telecomunicações e radiodifusão poderia prejudicar o desempenho dessa competência. Essa mesma circunstância pode ser identificada em algumas outras competências atribuídas à União em caráter exclusivo, a despeito de suas inúmeras repercussões para a ordenação urbanística.

A competência legislativa específica da União deve prevalecer, em princípio, sobre competências legislativas genéricas. Isso afastaria a competência legislativa concorrente dos Estados e, mais ainda, qualquer pretensão dos Municípios de invocar supostos interesses locais para legislar sobre uso do solo pela infraestrutura daqueles serviços.

O uso do solo urbano para a prestação dos serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens e pelos serviços e instalações de energia elétrica consiste em circunstância comum a todas as localidades do país, descaracterizando a existência de um interesse local, o que evidencia a violação do princípio federativo.

No entanto, a análise do segundo binômio - competência da União para editar normas gerais sobre direito urbanístico em oposição à competência dos Municípios para promover a ordenação urbanística do seu território, servirá para reforçar a conclusão obtida e, mais importante, para afastar qualquer dúvida sobre ela.

Para definir as competências normativas em matéria urbanística, seria preciso determinar o campo das normas gerais - atribuído à União - e o campo da legislação conferido aos Municípios. O conceito de normas gerais é relativamente indeterminado. Apesar disso, é possível reconhecer dois conteúdos logicamente inseridos nessa categoria: (i) a instituição de diretrizes, destinadas a conferir alguma uniformidade ao tratamento das matérias, sem prejuízo da competência dos Municípios; e (ii) a disciplina de questões nas quais predomine o interesse nacional, superposto a eventuais interesses regionais ou locais, exigindo a instituição de um regramento uniforme para todo o país.

Embora possam surgir dúvidas sobre a fronteira entre as normas gerais e a regulamentação específica, é natural que haja também zonas de certeza. As palavras e conceitos ostentam sentidos mínimos, sem os quais a comunicação seria impossível. Assim, por mais que seja difícil, em algumas circunstâncias, caracterizar o que seja um "interesse nacional predominante", ninguém duvidará que a rubrica se aplica ao sistema de distribuição de energia elétrica e dos serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens. As normas indispensáveis à existência de tal sistema devem ser unificadas, para garantir sua eficácia.

A regionalização das exigências inviabilizaria ou, quando menos, oneraria gravemente a prestação do serviço.

Dessa forma, ainda que a competência privativa da União para legislar nacionalmente sobre energia, informática, telecomunicações e radiodifusão não abarcasse as repercussões urbanísticas da atividade, isso não afastaria a conclusão de que a matéria deve ser regulada por esse ente federativo. No caso de atividades que devam ser desenvolvidas nacionalmente, de forma interligada, é necessário que haja requisitos também nacionais de ocupação urbanística ordenada, atraindo inquestionavelmente a matéria para o âmbito de competência da União, a quem caberá instituir normas gerais sobre o tema.

Resta, ainda, uma nota final. A eventual omissão do ente central autorizaria os Municípios a exercer competência legislativa na matéria?

Em princípio, a resposta parece positiva, por conta do art. 24, § 2°, e 30, II e VIII, da Constituição Federal. No entanto, o exercício dessa competência por parte dos Municípios estaria sujeito a um importante limite, que decorre de tudo o que já se expôs: ele não poderia inviabilizar o serviço público de transporte a cargo da União ou dos Estados. A observação é feita apenas por zelo teórico, já que não se verifica na hipótese a omissão do ente central.

A União, no uso de desta competência, editou a Lei n. 12.587/2012. Observe-se que, embora a regulamentação existente em matéria de transporte rodoviário e ferroviário se ocupe de questões ambientais, ela não disciplina aspectos relativos a ruídos provocados no interior dos mesmos.

É certo, porém, que a obrigação imposta pela lei municipal não parece razoável, além de interferir diretamente na forma e nas condições da prestação do serviço de energia elétrica e de radiodifusão sonora, e de sons e imagens. O ato normativo cuida de restringir e limitar o exercício da competência da União para a exploração e regulamentação destas atividades.

Como se vê, não se trata, aqui, de omissão da União em regulamentar a matéria. O fato de a União não haver editado norma com o conteúdo eventualmente desejado pelo Município não significa, por natural, omissão. O ponto é saber se o tema foi objeto de consideração pelo ente competente. Havendo disciplina nacional sobre o tema, não se verifica a hipótese de legítimo exercício da competência legislativa do Município.

Nem se alegue a existência de competência complementar municipal, fundada na autonomia para legislar sobre assunto de interesse local e sobre ordenamento urbanístico. A questão, como exposta, demonstra a inocorrência dos motivos que justificariam a competência legislativa municipal, haja vista que regras acerca dos serviços de energia elétrica e de radiodifusão sonora, e de sons e imagens, têm abrangência nacional e não se subordinam à prevalência local. Deste modo, normas municipais que invadem o campo da disciplina normativa desta matéria, violam a competência normativa federal.

Ainda que assim não fosse, o assunto, em termos acadêmicos, foi bem examinado por Fernanda Menezes Dias de Almeida, assentando que a colisão de competências resolve-se pela prevalência das “determinações emanadas do titular da competência legislativa privativa” (Competências na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2ª ed., p. 159).

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre a União, os Estado e os Municípios. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

Não se vislumbra, no entanto, inconstitucionalidade no que se refere à retribuição pelo uso do solo e subsolo a ser prestada pelas empresas de prestação de serviços privados. É legítimo ao poder público institui preço público para a retribuição pelo uso privado de bem público.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que a Lei Complementar nº 1.158/2.000 do Município de Ribeirão Preto, na parte em que instituiu retribuição pelo uso e ocupação do solo para a implantação e instalação de equipamentos de infraestrutura urbana, destinados à prestação de serviços públicos, viola o princípio da repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípios constitucionais estabelecidos.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e de seu acolhimento, declarando inconstitucional a Lei Complementar nº 1.158/2.000 do Município de Ribeirão Preto, na parte em que impõe condicionamentos e retribuição pelo uso do solo para a implantação e instalação de equipamentos de infraestrutura urbana destinados a prestação de serviços públicos.

 

                 São Paulo, 10 de dezembro de 2015.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

iccb