Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0082865-61.2015.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 2ª Câmara de Direito Público

Apelante: (...)

Apelado: Câmara Municipal de Cruzeiro

 

 

Ementa:

1)     Incidente de inconstitucionalidade. Artigos 54, XXXI, e 56, § 1º, “a”, da LOM, que definem como crime de responsabilidade do Prefeito Municipal deixar de prestar as informações solicitada pela Câmara Municipal no prazo de quinze dias.

2)     Tema da alçada federal. Ofensa à regra da repartição constitucional de competências que dá suporte ao princípio federativo (arts. 1º e 18 da CF/88). Princípios de observância obrigatória pelos Estados e Municípios (arts. 1º e 144 da Constituição do Estado de São Paulo).

3)     Parecer no sentido da admissão do incidente e acolhimento da arguição de inconstitucionalidade.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 2ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da Apelação nº 0003007-32.2014.8.26.0156, relatora a Desembargadora Vera Angrisani, na sessão de julgamento realizada em 06 de outubro de 2015 (v. acórdão às fls. 913/918).

A Col. Câmara suscitou a inconstitucionalidade dos artigos 54, XXXI, e 56, § 1º, “a”, da Lei Orgânica do Município de Cruzeiro, constando do julgado a seguinte ementa:

 “(...)

ANULATÓRIA. Decreto legislativo de cassação do mandato de Prefeita em decorrência do fornecimento de informações solicitadas pela Câmara Municipal após o prazo previsto na Lei Orgânica do Município. Infração político administrativa. Competência da União para legislar sobre o tema. Precedentes. Incidente de Inconstitucionalidade que se impõe. Inteligência do art. 97 da Constituição Federal e Súmulas Vinculantes nºs 10 e 46 do E. Supremo Tribunal Federal”.

(...)”

Do voto do relator consta a seguinte elucidativa passagem:

“(...)

No entanto, ao estipular prazo para resposta, a LOM fez inserir elemento novo ao tipo previsto no Decreto-Lei nº 201/67. Tornou-o mais restritivo, acrescentando o critério temporal, além de não trazer qualquer ressalva, tal como ocorre na norma federal, para eventuais obstáculos justificados ao atendimento do pedido por exemplo, a exiguidade do prazo, a propiciar sua prorrogação razoável de forma a preservar, ao mesmo tempo, o mandato do Chefe do Executivo e a prerrogativa do Legislativo.

Consequentemente, usurpou competência da União para legislar sobre o tema, pois “o Estado-membro e o Município, portanto, considerada a jurisprudência predominante nesta Suprema Corte, não dispõem de competência para estabelecer normas definidoras de crimes de responsabilidade (ainda que sob a designação de infrações administrativas ou político-administrativas), bem assim para disciplinar o respectivo procedimento ritual”.

Ainda: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE (...) CONSTITUIÇÃO ESTADUAL E TRIBUNAIS DE CONTAS: CONSELHEIROS DO TRIBUNAL DE CONTAS ESTADUAL - A QUESTÃO DAS INFRAÇÕES POLÍTICO-ADMINISTRATIVAS E DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE - COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PARA TIPIFICÁ-LOS E PARA ESTABELECER O RESPECTIVO PROCEDIMENTO RITUAL (SÚMULA 722/STF). - A Constituição estadual representa, no plano local, a expressão mais elevada do exercício concreto do poder de auto-organização deferido aos Estados membros pela Lei Fundamental da República. Essa prerrogativa, contudo, não se reveste de caráter absoluto, pois se acha submetida, quanto ao seu exercício, a limitações jurídicas impostas pela própria Carta Federal (art. 25). - O Estado-membro não dispõe de competência para instituir, mesmo em sua própria Constituição, cláusulas tipificadoras de crimes de responsabilidade, ainda mais se as normas estaduais definidoras de tais ilícitos tiverem por finalidade viabilizar a responsabilização política dos membros integrantes do Tribunal de Contas. - A competência constitucional para legislar sobre crimes de responsabilidade (e, também, para definir lhes a respectiva disciplina ritual) pertence, exclusivamente, à União Federal. Precedentes. Súmula 722/STF. (...)” (ADI 4.190-MC-REF/RJ, rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJe 11.06.2010) grifos nossos. (...)”

É o relato do essencial.

O incidente deve ser conhecido, declarando-se a inconstitucionalidade dos dispositivos que são o objeto da arguição, pois tipificam infrações político-administrativas e crimes de responsabilidade do Prefeito, invadindo competência legislativa da União, violando assim o princípio federativo, que se manifesta através da repartição das competências.

O art. 85 da Constituição Federal, após definir de forma genérica quais atos do Presidente da República que caracterizam crimes de responsabilidade, estabeleceu em seu parágrafo único que: Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

A Constituição Estadual por sua vez no art. 48 estabelece que:

“Art. 48 - São crimes de responsabilidade do Governador ou dos seus Secretários, quando por eles praticados, os atos como tais definidos na lei federal especial, que atentem contra a Constituição Federal ou a do Estado, especialmente contra:”

Não se discute, portanto, acerca da competência legislativa da União para a definição dos crimes de responsabilidade. Tal questão foi pacificada pelo E. STF, que editou a respeito à Súmula nº 722, com o seguinte teor: “São da competência legislativa da União a definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento”, bem como pela Súmula Vinculante nº 46, com o seguinte teor: “A definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento são de competência legislativa privativa da União”.

   Assim, há violação ao disposto no art. 144 da Constituição Paulista, que tem a seguinte redação:

“Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

Cumpre recordar que um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Não pode o legislador municipal, a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse local ou suplementar a legislação Federal ou Estadual de ordem geral, invadir a competência legislativa destes entes federativos superiores (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006).

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre União, Estados e Municípios. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que os artigos 54, XXXI, e 56, § 1º, “a”, da Lei Orgânica do Município de Cruzeiro violaram a repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípio constitucional estabelecido.

Essa é a razão pela qual restou configurada, no caso, a ofensa ao disposto no art. 1º e no art. 144, ambos da Constituição do Estado de São Paulo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, Soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. STF, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

“a ideia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I). (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).”

Por essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que a Lei Municipal que trate de matéria cuja competência é do legislador federal ou estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

A prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput da CR/88 prevê que os Municípios, ao editarem suas leis orgânicas deverão respeitar os “princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado”.

Para a solução do caso, é necessário ter em mente que a definição das infrações político-administrativas e a tipificação dos crimes de responsabilidade do Prefeito Municipal é atividade que se encontra inserida dentro da competência legislativa exclusiva do legislador federal.

A propósito, o professor Alexandre de Moraes, referindo-se aos ilícitos político-administrativos, que há “(...) necessidade de que a tipificação de tais infrações emane de lei federal, eis que o Supremo Tribunal Federal tem entendido que a definição formal dos crimes de responsabilidade se insere, por seu conteúdo penal, na competência exclusiva da União” (Direito Constitucional, 19. ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 443).

Saliente-se que a posição aqui sustentada encontra amparo em precedentes desse E. Tribunal de Justiça:

“EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Artigos 123, seus incisos e parágrafo único, e 128, seus incisos e parágrafos, da Lei Orgânica do Município de Sete Barras. Dispositivos que tipificam os crimes de responsabilidade e infrações político-administrativas praticadas pelo Prefeito. Competência legislativa da União. Violação ao princípio do pacto federativo. Ofensa aos artigos 5o, caput, e 144 da Constituição Estadual. Inconstitucionalidade reconhecida. Precedentes deste Colendo Órgão Especial. Procedência da ação.” (Adin n. 0144067-44.2012.8.26.0000 – Rel. Des. Kioitsi Chicuta, j. 23.01.2013)

Há leis federais que tratam da tipificação de crimes de responsabilidade praticados por Prefeitos e Vereadores, bem como do respectivo processo e julgamento.

A Lei nº 1.079/50, recepcionada pela Constituição da República, define quais são as infrações e disciplina o processo e julgamento, nos casos de crimes de responsabilidade (infrações político-administrativas) cometidos pelo Presidente da República e Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador-Geral da República, Governadores e Secretários de Estado.

O Decreto-lei nº 201/67 define e regula o processo atinente aos crimes de responsabilidade cometidos por Prefeitos Municipais e por Vereadores.

Destarte, ostentam vício de inconstitucionalidade, por violação ao princípio federativo – não observância das regras associadas à repartição constitucional de competências - normas contidas na legislação municipal (Lei Orgânica) que discriminam as infrações político-administrativas e os crimes de responsabilidade.

Por todo o exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente, declarando-se a inconstitucionalidade dos dispositivos anteriormente destacados.

 

São Paulo, 14 de abril de 2016.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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