Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Processo n. 0101654-79.2013.8.26.0000

Suscitante: 9° Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo

 

 

 

Ementa: 1. Incidente de inconstitucionalidade em face do art. 2.038, § 1°, inc. I do Código Civil. 2. Proibição de cobrança de laudêmio sobre as construções. 3. Órgão Fracionário do Tribunal que não conhece da arguição de inconstitucionalidade sob o argumento de que não tem competência para apreciar a questão. 4. Parecer pelo desacolhimento da representação proposta pela Relatora. No mérito, pela pronúncia de constitucionalidade.

 

 

  Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Desembargador Relator:

 

Trata-se de acórdão proferido pela C. 9° Câmara de Direito Privado do Egrégio Tribunal de Justiça, no julgamento da Apelação Cível n. 0000760-44.2011.8.26.0072, que não conheceu do recurso e determinou a remessa dos autos ao Excelso Órgão Especial, por força da Súmula Vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal.

É o breve relatório.

Preliminarmente.

Da rejeição da representação (fl. 136).

Antes do Órgão Fracionário deliberar sobre o mérito do recurso de apelação, para provê-lo ou não, há necessidade de ser instaurado o necessário incidente de inconstitucionalidade, disciplinado a partir do art. 480 do Código de Processo Civil.

Assim, arguida a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, é necessária a prévia deliberação da Câmara, que, se rejeitar a argumentação, deverá prosseguir no julgamento e, nesse caso, negar ou dar provimento ao recurso.

Todavia, quando há o acolhimento da arguição de inconstitucionalidade, a Câmara “suspende” o julgamento, isto é, não pode prosseguir no julgamento para dar ou negar provimento ao recurso. Deve determinar a instauração do incidente de inconstitucionalidade, a fim de provocar a deliberação do Pleno.

Portanto, a representação proposta pela Relatora (fl. 136) não merece acolhimento, a fim de que seja conhecido o recurso e adentrado ao exame do capítulo referente à constitucionalidade ou não do dispositivo legal impugnado, embora não seja o caso de se passar ao exame das demais questões tratadas no recurso. Caso a deliberação do Colendo Órgão Fracionário seja pela inconstitucionalidade da lei, deve ser suscitada a formação do incidente para a análise da questão prejudicial pelo Excelso Órgão Especial.

De fato, é prejudicial a questão da eventual inconstitucionalidade, sendo que o órgão competente para apreciá-la, como se disse, é o Órgão Especial, por força do princípio da reserva de plenário esculpido no art. 97 da Lei Maior.

Requer-se, pois, que seja desacolhida a representação de fl. 136.

Em função do princípio da eventualidade, a Procuradoria-Geral passa a analisar o mérito, com a advertência de que o parecer se restringe à questão prejudicial. E, no mérito, tem-se que é constitucional o art. 2.038, § 1º, inc. I, do Código Civil.

Em breve resumo, trata-se de ação de consignação em pagamento que o recorrido propôs contra a recorrente, em virtude discordância sobre o valor do laudêmio a ser pago pelo primeiro à segunda.

Pretende a Diocese de Jaboticabal (recorrida) o recebimento do percentual previsto em lei sobre o imóvel e suas construções, enquanto que o recorrido pretende pagá-lo somente sobre o valor do terreno.

Daí a questão voltar-se para a discussão a respeito da constitucionalidade do art. 2.038, § 1º, inc. I, do vigente Código Civil.

Indica a Diocese recorrente afronta ao: 1) art. 5º, XXXVI (direito adquirido), da Constituição Federal; 2) art. 5, caput e inc. XXII (direito de propriedade), da Constituição Federal; 3) art. 5º, caput (isonomia – tratamento desigual ao aforamento da União - § 2º), da Constituição Federal; e 4) art. 49, do ADCT (fls. 147/150).

Com o mais absoluto respeito, não prosperam as argumentações da Diocese recorrente.

Assim dispõe a norma impugnada:

“Art. 2.038. Fica proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916, e leis posteriores.

§ 1o Nos aforamentos a que se refere este artigo é defeso:

I - cobrar laudêmio ou prestação análoga nas transmissões de bem aforado, sobre o valor das construções ou plantações;

II - constituir subenfiteuse.

§ 2o A enfiteuse dos terrenos de marinha e acrescidos regula-se por lei especial.”

Com efeito, não cabe a argumentação de violação ao direito adquirido, na medida em que o crédito da Diocese oriundo do laudêmio se perfez quando já em vigor o novo Código Civil. Note-se que, pela escritura de fls. 24 e segs., vê-se que o negócio se concretizou em 13 de janeiro de 2011 e o novo Código Civil é de 10 de janeiro de 2002. Tivesse a compra se efetivado antes desta última data, aí então estar-se-ia diante de direito adquirido da recorrente, o que, como demonstrado, não teve ocorrência.

Também não socorre à Diocese a alegação de afronta ao direito de propriedade, já que não há, de forma alguma, tolhimento ao direito que lhe assiste sobre a propriedade imóvel. É direito seu o recebimento do laudêmio, mas com observância das regras legais, que a partir da edição do novo Código Civil, passaram a vigorar.

Outrossim, foi-lhe dado o direito de preferência na aquisição da propriedade útil do imóvel negociado, em respeito à sua direta propriedade, tendo a Diocese aberto mão deste direito, tudo conforme consta da escritura pública de venda e compra (fl. 26) e na declaração de fl. 30.

Já com relação à isonomia pretendida com o aforamento da União, melhor sorte não lhe sorri. Ocorre que tanto a lei civil quanto a Constituição Federal tratam diferentemente os bens da União daqueles pertencentes aos particulares. E, diga-se, pelas mais variadas razões.

Primeiramente, de se lembrar que o interesse público suplanta o particular. Assim, o bem da União deve ser melhor resguardado. Sob este prisma, os bens da União não podem ser usucapidos, como se pode ver, v.g. nos arts. 183, § 3º e 191, parágrafo único, da Constituição Federal. E, em sentido diametralmente oposto, os bens de particulares podem ser objeto de usucapião.

O próprio Código Civil dispõe em seu art. 102 que: ”Os bens públicos não estão sujeito a usucapião” e a partir do art. 1.238 passa a regulamentar esta forma de aquisição da propriedade de bens particulares.

Desta forma, lícito é o tratamento diferenciado quanto aos bens da União e de particulares, posto que o princípio da isonomia corresponde em tratamento igual aos iguais e desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam.

Por fim, no que tange ao argumento de violação art. 49, § 1º, do ADCT, da mesma forma não se verifica a apontada transgressão. Assim dispõe a norma em estudo:

“Art. 49. A lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos, sendo facultada aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que dispuserem os respectivos contratos.

§ 1º - Quando não existir cláusula contratual, serão adotados os critérios e bases hoje vigentes na legislação especial dos imóveis da União.

§ 2º - Os direitos dos atuais ocupantes inscritos ficam assegurados pela aplicação de outra modalidade de contrato.

§ 3º - A enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima.

§ 4º - Remido o foro, o antigo titular do domínio direto deverá, no prazo de noventa dias, sob pena de responsabilidade, confiar à guarda do registro de imóveis competente toda a documentação a ele relativa.”

 Não se pode analisar um único parágrafo do artigo para determinar sua violação ou não. É necessária a leitura do artigo como um todo. Neste passo, veja-se que o caput do art. 49 reza que a lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos, sendo facultada aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que dispuserem os respectivos contratos. Ou seja, somente no caso de extinção da enfiteuse é que haverá a remição dos aforamentos, com observância do que dispuserem os respectivos contratos. E, somente na inexistência destes é que serão aplicadas as regras previstas em legislação especial dos imóveis da União (§ 1º).

No caso presente não está havendo a extinção da enfiteuse. Ela está sendo reconhecida, tanto é que o que se discute é a base de cálculo da quantia a ser paga a título de laudêmio (com depósito para pagamento em consignação). Ou seja, a discussão se circunscreve se no quantum devido pelo laudêmio devem estar presentes os valores correspondentes às construções ou não.

Assim, não se vislumbra transgressão alguma ao apontado art. 49, § 1º, dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).

Conclui-se, portanto, que a disposição do art. 2.038, § 1º, inc. I, do Código Civil em vigor não viola qualquer disposição constitucional.

Em tais circunstancias, o parecer é no sentido do desacolhimento da representação de fl. 136 ou, se assim não se entender, que seja reconhecida a constitucionalidade da norma impugnada.

 

São Paulo, 30 de julho de 2013.

 

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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