Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0126285-87.2013.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 9ª Câmara de Direito Público

Apelante: Municipalidade de Várzea Paulista

Apelado: Ministério Público do Estado de São Paulo

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 149, de 02 de maio de 2005, de Várzea Paulista, regulamentada pelo Decreto Municipal 3.147/05, que prevê cargos de provimento em comissão.

2)      Lei previu a criação de cargos de provimento em comissão, sem definir, entretanto, as respectivas atribuições. Lei que cria os postos, mas não contém descrição, nem mesmo sumária, das suas atribuições, remetendo o suprimento dessa omissão à atividade regulamentar. Contrariedade ao disposto no art. 5º, § 1º, art. 115, I, II e V, c.c. o art. 144, todos da Constituição do Estado (reprodução dos artigos 2º, e 37, I, II e V da CF).

3)      Parecer no sentido do conhecimento e acolhimento da arguição de inconstitucionalidade.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 9ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da Apelação nº 0305505-84.2009.8.26.0000, relator o Desembargador Décio Notarangelli, na sessão realizada em 27 de fevereiro de 2013.

A Col. Câmara suscitou a inconstitucionalidade da previsão legal de cargos de provimento em comissão, constando do julgado a seguinte ementa:

 “(...)

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO – SERVIDOR PÚBLICO – CARGO PÚLICO – PROVIMENTO EM COMISSÃO – INADMISSIBILIDADE – CONCURSO PÚBLICO – OBRIGATORIEDADE – EXONERAÇÃO – LEI MUNICIPAL – INCONSTITUCIONALIDADE – RESERVA DE PLENÁRIO.

1. As coisas são o que são pela qualidade intrínseca que possuem e não pelo rótulo que possam ostentar. Cargos públicos que não se qualificam tecnicamente como de confiança. Inexistência de vínculo pessoal entre o nomeado e o nomeante. Cargos técnicos para funções administrativas corriqueiras da Administração. Lei nº 149/05, do Município de Várzea Paulista, que ofende o princípio da obrigatoriedade de concurso público (art. 37, II, CF). Inconstitucionalidade.

2. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público (art. 97 CF). Cláusula de reserva de plenário. Súmula Vinculante nº 17 do STF. Incidente de inconstitucionalidade. Remessa dos autos ao E. Órgão Especial do Tribunal de Justiça.

(...)”

Do voto do relator consta a seguinte elucidativa passagem:

“(...)

No mérito, a controvérsia cinge-se à legitimidade de nomeações para cargos públicos com base na Lei Municipal nº 149, de 02 de maio de 2005, regulamentada pelo Decreto nº 3147, de 23 de junho de 2005.

(...)

Na espécie, pela descrição das atribuições, infere-se que os cargos impugnados não se qualificam tecnicamente como de confiança. A propósito, foi o que registrou com precisão a douta Procuradora de Justiça, Dra. Maria Cristina Barreira de Oliveira, ao observar que os cargos ‘não exigem vínculo pessoal entre o nomeado e o nomeante, não podem ser tidos como de grande relevo para exercício de tarefas diferenciadas. Não se enquadram, portanto, na exceção constitucional. Não possuem natureza de cargos em comissão.

Trata-se, na verdade, de cargos técnicos para funções administrativas corriqueiras da Administração (motorista, agente de segurança, assessor técnico, assessor jurídico, etc.) devendo ser providos com observância da regra constitucional da obrigatoriedade do concurso público.

(...)”

O Senhor Procurador Geral do Estado declinou de manifestar-se a respeito do mérito do incidente (fls. 358/360).

Houve manifestação do Prefeito de Várzea Paulista (fls. 362/370), pugnando pela extinção do feito, ante a extinção dos cargos impugnados na inicial da ação, bem como em função da revogação da Lei Complementar Municipal nº 149/2005 e do Decreto Municipal nº 3.147/2005.

É o relato do essencial.

PRELIMINAR

É necessário registrar, inicialmente, que a manifestação do Prefeito Municipal neste incidente, no sentido de que o presente feito deverá ser extinto sem exame do mérito, não merece acolhida.

Basta lembrar que o incidente de inconstitucionalidade representa cisão de competência funcional para o julgamento da causa, de forma que a competência do Órgão Especial ou do Pleno do Tribunal é limitada ao exame da questão constitucional, devendo os autos, posteriormente à conclusão do julgamento do incidente, serem devolvidos ao colegiado fracionário, que concluirá o julgamento do recurso, examinando com amplitude as demais questões de fato e de direito.

Em outras palavras: caberá exclusivamente ao órgão colegiado fracionário, ou seja, à Col. 9ª Câmara de Direito Público, que tem competência para concluir o julgamento da apelação após a análise do incidente, examinar se a alegação de carência superveniente deve ser acolhida ou não.

MÉRITO

O objeto do incidente de inconstitucionalidade são as disposições da Lei Complementar Municipal nº 149, de 25 de maio de 2005, de Várzea Paulista, que “Dispõe sobre a administração pública municipal, a organização administrativa da Prefeitura Municipal de Várzea Paulista, o reajuste geral dos servidores públicos municipais e dá outras providências”, relativamente a vários cargos de provimento em comissão nela previstos.

O art. 128 da Lei complementar nº 149, de 25 de maio de 2005, criou os cargos de provimento em comissão, prevendo:

“(...)

Art. 128. A fim de atender a estrutura organizacional executiva e do sistema de assessoria da administração direta, disciplinada nesta lei, ficam criados 14 (quatorze) cargos em comissão de agente político, 234 (duzentos e trinta e quatro) cargos em comissão e 36 (trinta e seis) funções gratificadas, na forma da tabela de cargos em comissão do Anexo II a esta lei.

(...)” (g.n.)

Os cargos de provimento em comissão da referida lei estão, portanto, previstos no seu Anexo II (v. fl. 109, 2º apenso, 1º volume), sem a descrição das respectivas atribuições, remetida ao decreto regulamentar.

Pois bem.

Essa situação é suficiente para o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei, sequer sendo necessário examinar um a um os cargos mencionados na inicial da ação civil pública, para verificar se também por seu perfil seria pertinente a declaração de inconstitucionalidade.

Anote-se, ademais, que o reconhecimento incidental da inconstitucionalidade da norma não fica adstrito ao fundamento apontado na inicial da Ação Civil Pública ou mesmo no v. acórdão que suscitou o Incidente de Inconstitucionalidade, por se tratar de questão de ordem pública, examinável de ofício.

Como acentua a doutrina, cargos públicos, em direito administrativo, “são as mais simples e indivisíveis unidades de competência a serem expressadas por um agente, previstas em número certo, com denominação própria, retribuídas por pessoas jurídicas de direito público e criadas por lei (...)” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 25. Ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 250).

Nesse mesmo sentido Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 34. Ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19. Ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 506; Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2005, p. 254; Lúcia Valle Figueiredo, Curso de Direito Administrativo, 9. Ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 598.

A criação de cargos de provimento em comissão ou de provimento efetivo, sem a fixação na própria lei, ainda que sumária, de atribuições específicas, revela-se inconstitucional.

No caso dos cargos de provimento em comissão, essa situação é ainda mais grave, pois é indispensável que a lei contenha a indicação das funções que demonstrem que se trata de postos de direção, chefia ou assessoramento superior, a exigir especial relação de confiança entre o seu ocupante e o agente político ao qual está vinculado.

A omissão legislativa quanto a essa indicação revela, na prática, burla à sistemática constitucional relativamente a esse tema.

Isso decorre do fato de que a regra é o acesso ao serviço público mediante concurso, sendo absolutamente excepcional o provimento de cargos sem o certame, admissível unicamente nos casos em que seja exigível especial relação de confiança entre o governante e o servidor, para que adequadamente sejam desempenhadas funções inerentes à atividade administrativa e política.

A criação de posto comissionado só se mostra legítima quando for indispensável, por parte do seu ocupante, verdadeiro comprometimento e fidelidade com relação às diretrizes estabelecidas pelos seus superiores, que vão bem além do dever comum de lealdade às instituições públicas, necessárias a todo e qualquer servidor comum (cf. Diógenes Gasparini, Direito administrativo, 3. ed., São Paulo, Saraiva, 1993, p. 208; Odete Medauar, Direito administrativo moderno, 5. ed., São Paulo, RT, p. 317; Márcio Cammarosano, Provimento de cargos públicos no direito brasileiro, São Paulo, RT, 1984, p. 95/96; Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, cit., p. 440).

Isso não ocorre com relação a funções meramente “técnicas, burocráticas ou operacionais, de natureza puramente profissional, fora dos níveis de direção, chefia e assessoramento superior” (cf. Adilson de Abreu Dallari, Regime constitucional dos servidores públicos, 2. ed., 2ª tir., São Paulo, RT, 1992, p. 41).

 Essa também é a posição do Colendo STF (ADI-MC 1141/GO, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, J. 10/10/1994, Pleno, DJ 04-11-1994, PP-29829, EMENT VOL-01765-01 PP-00169), e vem sendo acolhida em inúmeros julgados desse Colendo Órgão Especial (ADI 111.387-0/0-00, j. em 11.05.2005, rel. des. Munhoz Soares; ADI 112.403-0/1-00, j. em 12 de janeiro de 2005, rel. des. Barbosa Pereira; ADI 150.792-0/3-00, julgada em 30 de janeiro de 2008, rel. des. Elliot Akel; ADI 153.384-0/3-00, rel. des. Armando Toledo, j. 16.07.2008, v.u.).

Em síntese, a não indicação das funções dos cargos de provimento efetivo ou comissionados revela delegação legislativa ao Poder Executivo, o que é vedado pelo princípio da separação e harmonia entre os Poderes, bem como por regra expressa prevista no art. 5º, § 1º, da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da Carta Estadual.

Ademais, no que diz respeito aos postos comissionados, a ausência de indicação, ainda que sumária, das respectivas funções, acarreta contrariedade ao art. 115, incisos I, II e V da Constituição Estadual, bem como ao art. 37, incisos I, II e V da Constituição Federal, cuja aplicabilidade à hipótese decorre do art. 144 da Carta Estadual.

Não bastasse isso e ad argumentandum tantum, ainda que não seja acolhida a arguição de inconstitucionalidade pelos motivos acima expostos, a própria denominação dos cargos de provimento em comissão, glosados na inicial da ação civil pública, na hipótese em exame, sinaliza para a caracterização de perfil predominantemente técnico, pois a referência é feita aos seguintes cargos: Assessor Jurídico, Assessor Setorial, Assessor Técnico Departamental, Assessor Técnico Superior, Motorista, Agente de Segurança, Procurador Setorial.

Fica evidente, nesse quadro, que tais cargos, destinados ao exercício de funções predominantemente técnicas e situados na estrutura ordinária da administração, e não em nível de assessoramento superior, deveriam ser providos mediante concurso público.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento e acolhimento do incidente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar Municipal nº 149, de 25 de maio de 2005, de Várzea Paulista, e por arrastamento do Decreto Municipal nº 3.147/2005, que a regulamentou.

São Paulo, 17 de setembro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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