Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0137286-69.2013.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Apelante: Prefeitura Municipal de Santa Barbara D’Oeste

Apelado: (...)

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Art. 1º, § 1º, da Lei complementar nº 33/2007, do Município de Santa Barbara d’Oeste, que proíbe a instalação de novos estabelecimentos comerciais destinados ao desmanche de veículos, comércio de peças usadas, depósito de ferro-velho e congêneres, bem como veda aos estabelecimentos regularizados a alienação, mudança de endereço, alteração do objeto do contrato social, ampliações e abertura de filiais.

2)      Limitações à propriedade privada e à livre iniciativa, que envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato, regra que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, não exercidas no interesse da realização justiça social.

3)      Proibição de instalação de novos estabelecimentos comerciais no município. Criação de reserva de mercado, em afronta aos princípios da livre concorrência, da defesa do consumidor e da liberdade do exercício das atividades econômicas, que informam o modelo de ordem econômica consagrado pela Constituição Federal.

4)      Afronta aos princípios da livre iniciativa, da propriedade privada e da livre concorrência (arts. 1º, IV, 5º, caput, XXII e XXIII, e 170, caput, II e IV e parágrafo único da Constituição Federal). Incidência da Súmula 646 do Supremo Tribunal Federal.

5)       Parecer no sentido do conhecimento e acolhimento da arguição de inconstitucionalidade.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

         Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 5ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação cível nº 0006801-65.2012.8.26.0533 da Comarca de Santa Barbara D’Oeste, figurando como Relator o Desembargador Nogueira Diefenthaler.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade do art. 1º, § 1º, da Lei Complementar nº 33/2007, do Município de Santa Barbara D’Oeste, por violação aos arts. 1º, inciso IV, 30, I e II, e 170 da Constituição Federal, tendo ficado consignado no voto do relator o seguinte:

“(...)

inadmissível ao legislador invocar a defesa de interesse local para impor proibição ou restrição generalizada no território do município a atividade econômica legal de desmanche, de comercialização de peças usas usadas, de depósito de ferro-velho e congêneres, por implicar em inconstitucionalidade por ofensa ao disposto no artigo 1º, inciso IV, artigo 170 e por exorbitar a competência legislativa prevista no artigo 30, incisos I e II, todos da Constituição da República.

Forçoso considerar, portanto, a inconstitucionalidade do artigo 1º, “caput” e §1º da Lei Complementar municipal nº 33/07, em razão da afronta aos artigos 1º, inciso IV, 170 e 30, incisos I e II da Constituição Federal.

(...)”

É o relato do essencial.

O incidente deve ser conhecido e merece acolhimento.

O art. 1º, § 1º, da Lei Complementar nº 33/2007, do Município de Santa Barbara d’Oeste, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º - Fica proibida a instalação de novos estabelecimentos comerciais destinados ao desmanche de veículos, comércio de peças usadas, depósito de ferro-velho e congêneres, em todo o território do Município de Santa Bárbara d’Oeste.

§ 1º - Os estabelecimentos dedicados a esse ramo de atividade que se encontrarem totalmente regularizados na data da promulgação desta lei, poderão manter-se em funcionamento no mesmo local onde se encontrarem instalados, vedada toda e qualquer forma de alienação do estabelecimento para terceiros, bem como alterações do objeto do contrato social, mudanças de endereço, ampliações e abertura de filiais, sob pena de cancelamento da inscrição municipal e cassação do respectivo alvará de funcionamento.

(...)”

 O legislador municipal, a pretexto de legislar sobre assunto de interesse local (art. 30, I, da Constituição Federal), acabou por violar os princípios que regem a atividade econômica, especificamente a livre iniciativa, a livre concorrência e o da propriedade privada (art. 170, caput, II e V da CF).

A propriedade privada é um direito fundamental do cidadão, desde que manifeste sua função social.

Este princípio está consagrado na Constituição Federal nos direitos e garantias fundamentais (art. 5º, caput, XXII e XXIII) e também como um dos princípios da ordem econômica (art. 170, II e III).

Principal relevância disso está na sua compreensão como um dos instrumentos destinados à realização da existência digna de todos e da justiça social, bem como instituto indispensável para a construção da sociedade justa, livre e solidária. (NERY Jr, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade Nery. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. 4ª. ed. at. e ampl., Revista dos Tribunais, 2013, p. 847)

O uso da propriedade há de ser compatível com o bem estar social; se é contra o bem-estar social, deve ser desaprovado.

Dentro destes parâmetros, a vedação imposta no Município de Santa Barbara d’ Oeste a toda e qualquer forma de alienação dos estabelecimentos comerciais que se dedicam ao ramo de desmanche de veículos, comércio de peças usadas, depósito de ferro-velho e congêneres, bem como suas ampliações são limitações à propriedade privada que não se destinam à realização da função social.

Desta forma flagrante a violação do direito à propriedade privada assegurado nos arts. 5º, caput, XXII e XXIII e 170, II, da Constituição Federal.

De outro lado, restou contrariado o princípio da livre iniciativa.

A livre iniciativa, consagrada como princípio fundamental (art. 1º, IV da Constituição Federal) e fundamento da ordem econômica (art. 170), constitui um valor do Estado Liberal, mas que no contexto de nossa ordem constitucional deve estar voltada à realização da justiça social.

Desta forma, a possibilidade de criar e explorar atividade econômica, usar, ampliar, trocar seus bens, transferir o estabelecimento comercial, a autonomia jurídica para a regulação das relações do modo que lhes seja mais conveniente e a garantia a cada um de desenvolver livremente a atividade econômica escolhida ficam subordinados à função social da empresa e ao dever do empresário de propiciar melhores condições de vida aos trabalhadores, exigidos pela valorização do trabalho.

A liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato. É regra que assegura a todos “o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei” (art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal).

A Constituição Federal, preocupada com a realização da justiça social, permite que a lei condicione a liberdade de desenvolvimento da empresa. 

Livre iniciativa não é sinônimo de liberdade econômica absoluta. O princípio da livre iniciativa, inserido no caput do art. 170 da Constituição Federal, nada mais é do que uma cláusula geral cujo conteúdo é preenchido pelos incisos do mesmo artigo. Esses princípios claramente definem a liberdade de iniciativa não como uma liberdade anárquica, porém social, e que pode, consequentemente, ser limitada.

De qualquer forma, só será legítima a restrição à liberdade de empresa e à liberdade de contrato enquanto exercida no interesse da realização da justiça social.

Dentro deste quadro, a vedação pura e simples à instalação de estabelecimentos comerciais de desmanche de veículos, comércio de peças usadas, depósito de ferro-velho e congêneres, em todo o território do Município de Santa Bárbara d’Oeste, bem como a proibição de mudanças de endereço, abertura de filiais e alteração do objeto do contrato social de estabelecimentos daquele ramo, existentes e regulares, configura ofensa ao princípio da livre iniciativa, uma vez que a limitação imposta não foi exercida no interesse da realização da justiça social.

Ainda que o objetivo do município tenha sido o de evitar e facilitar práticas criminosas que podem decorrer do exercício daquela atividade comercial, o controle da atividade de desmanche não é da competência municipal, porquanto a prevenção, a repressão e o combate às irregularidades e ilicitudes verificadas nessa área são atribuições dos órgãos ligados à Segurança Pública (Polícias Civil e Militar).

Por outro lado, a competência para tratar do registro, licenciamento e emplacamento de veículos motorizados é do órgão de trânsito estadual, em conformidade com o Código de Trânsito Brasileiro, soando, assim, invasivo à competência estadual a iniciativa do Município de Santa Barbara d’ Oeste de controlar a atividade de desmanche.

Aliás, a Lei Estadual n.º 4.980, de 8 de abril de 1986, trata especificamente desse assunto, impondo o registro na repartição competente da Secretaria da Segurança Pública das oficinas mecânicas que procedam ao desmanche de veículos, para fins de controle dessa atividade, em face de suas características especiais.

Evidentemente, a constatação de que compete ao Estado exercer o controle da atividade de desmanche não afasta a competência dos municípios para cuidar de aspectos gerais relacionados à sua localização e funcionamento, à prevenção de incêndios, à segurança da construção, à higiene, saúde e saneamento, aos costumes, etc. Mas jamais da proibição e limitações da natureza que foram impostas pela Lei Complementar nº 33/2007, do Município de Santa Barbara d’Oeste.

Por fim, importante ressaltar que a proibição da instalação de novos estabelecimentos comerciais do ramo de desmanche acaba por estabelecer no município um monopólio daquela atividade em benefício dos estabelecimentos existentes e regulares, com violação ao princípio da livre concorrência (art. 170, IV da Constituição Federal).

O dispositivo legal impugnado cria reserva de mercado e, consequentemente, em afronta aos princípios da livre concorrência, da defesa do consumidor e da liberdade do exercício das atividades econômicas, que informam o modelo de ordem econômica consagrado pela Carta da República (art. 170, IV e parágrafo, da Constituição Federal).

Ademais, nem mesmo é possível limitar territorialmente a instalação de determinado ramo de atividade comercial, como estabelece a Súmula 646 do Supremo Tribunal Federal ao proclamar que Ofende o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que o art. 1º, § 1º, da Lei Complementar nº 33/2007, do Município de Santa Barbara d’Oeste, violou os princípios da livre iniciativa, da propriedade privada e da livre concorrência, afrontando os arts. 1º, IV, 5º, caput, XXII e XXIII e 170 caput, II e IV, e parágrafo único, da Constituição Federal.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e de seu acolhimento, declarando a inconstitucionalidade do art. 1º, § 1º, da Lei Complementar nº 33/2007, do Município de Santa Barbara d’Oeste.

 

 

                        São Paulo, 31 de julho de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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