Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0145049-24.2013.8.26.0000

Suscitante: 6ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo

 

Ementa:

1) Incidente de inconstitucionalidade suscitado pela 6ª Câmara de Direito Público tendo por objeto as Leis n. 1.811/02, 2.764/08, 2.583/07 e 3.083/10, do Município de Itapeva, no que se refere à forma de provimento dos cargos de Diretora de Departamento de Projetos Municipais e Convênios, Chefe de Divisão de Projetos Sócio-Educativos, Diretor de Departamento e Patrimônio, Assessor Técnico e Diretor de Administração Regional do Jardim Maringá, de provimento em comissão, aos quais não correspondem funções de direção, chefia e assessoramento, mas funções próprias dos cargos de provimento efetivo.  Violação ao art. 37, inc. II, da Constituição Federal.

2) Parecer pela declaração de inconstitucionalidade material das expressões das leis referentes a tais cargos.

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

 

 

 

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela C. 6° Câmara de Direito Público, nos autos de Ação Civil Pública em que figuram como partes o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO (autor) e o MUNICÍPIO DE ITAPEVA e OUTROS (requeridos).

Objetiva-se atender à cláusula de reserva de plenário (Súmula Vinculante nº 10 do STF), eis que se cogita do eventual afastamento, por inconstitucionalidade das Leis ns. 1.811/02, 2.764/08, 2.583/07 e 3.083/10, do Município de Itapeva, nas partes em que instituíram os cargos de Diretora de Departamento de Projetos Municipais e Convênios, Chefe de Divisão de Projetos Sócio-Educativos, Diretor de Departamento e Patrimônio, Assessor Técnico e Diretor de Administração Regional do Jardim Maringá, de provimento em comissão.

Não há notícia de pronunciamento anterior do Órgão Especial, do Plenário ou do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade dos atos normativos questionados (art. 481, parágrafo único, do CPC).

Este é o resumo do que consta dos autos.

O parecer é no sentido da inconstitucionalidade das legislações impugnadas.

Isto porque os referidos diplomas legais contém a mácula de não preverem as atribuições dos cargos em questão, fato que, por si só, a torna ilegítima. Com efeito, a lei que institui cargos de provimento em comissão deve descrever minuciosamente as atribuições dos mesmos, para que de seu texto se extraia a excepcionalidade da situação que afasta a regra geral do concurso.

Em outras palavras, o legislador municipal não pode criar, a seu bel prazer, cargos de confiança em profusão, como aconteceu em Pereira Barreto.

Com efeito, a Constituição em vigor consagrou o município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos arts. 1º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c”, da Constituição Federal (cf. Alexandre de Moraes, “Direito Constitucional”, São Paulo: Atlas, 7.ª ed., p. 261).

A autonomia concedida aos municípios não tem caráter absoluto e soberano. Pelo contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (cf. De Plácido e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Rio de Janeiro: Forense, v. I, 1984, p. 251), sendo definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que no caso é a Constituição (Curso de Direito Constitucional Positivo, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1992, p. 545).

A autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).

Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).

Assim, por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades municipais são livres para organizar os seus próprios serviços, segundo suas conveniências locais. E, na organização desses serviços públicos, a Administração cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e delimita os deveres e direitos de seus servidores (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 420).

Contudo, a liberdade conferida aos municípios para organizar os seus próprios serviços não é ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao servidor público (ob. e loc. cits.)

No caso em exame, o município criou os cargos de Diretora de Departamento de Projetos Municipais e Convênios, Chefe de Divisão de Projetos, Chefe de Divisão de Projetos Sócios-Educativos, Diretor de Departamento e Patrimônio, Assessor Técnico e Diretor de Administração Regional do Jardim Maringá, de provimento em comissão, sem descrever as suas atribuições, o que impede a certeza de se tratarem ou não de funções estritamente técnicas ou profissionais, próprias dos cargos de provimento efetivo e que, por essa razão, só poderia ser preenchido por concurso público.

Segundo Ruy Cirne Lima (Princípios de Direito Administrativo, RT, 6.ª ed., p. 162), o funcionário público profissional se peculiariza por quatro característicos básicos, a saber: (a) natureza técnica ou prática do serviço prestado; (b) retribuição de cunho profissional; (c) vinculação jurídica à Administração Direta; (d) caráter permanente dessa vinculação.

Desse modo, nitidamente diferenciado dos cargos que reclamam provimento em comissão, as funções profissionais devem ser exercidas em caráter permanente, ou seja, pelo quadro estável de servidores públicos municipais, os quais, em conformidade com o disposto na Constituição Federal, só podem ser arregimentados por concurso público de provas ou de provas e títulos.

Na verdade, o cargo em comissão destina-se apenas às atribuições de “direção, chefia e assessoramento” (CF, art. 37, inciso V, com a redação dada pela EC nº 19/98) e tem por finalidade propiciar ao governante o controle das diretrizes políticas traçadas. Exige, portanto, das pessoas indicadas a titularizá-los, absoluta fidelidade à orientação fixada pela autoridade nomeante. Em outras palavras, o cargo de provimento em comissão está diretamente ligado ao dever de lealdade à linha fixada pelo agente político superior.

Daí porque a exceção contida na parte final do art. 37, II, da CF - “ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração” -, tem alcance limitado a situações excepcionais, relativas aos cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso público.

Torna-se evidente, portanto, que a limitação apontada não tem caráter puramente formal, de simples e incriteriosa indicação legal de cargos de provimento em comissão, que pudesse afastar o princípio constitucional da igual acessibilidade aos cargos públicos.

Bem a propósito, ao estudar com profundidade esse assunto, Márcio Cammarosano deixou anotado que o princípio democrático implica no princípio da igualdade “e este no princípio da igual acessibilidade dos cargos públicos, com o que se resguarda também o princípio da probidade administrativa” (Provimento de Cargos Públicos no Direito Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 45).

Assim, para que a lei criadora de um cargo em comissão não venha a se constituir em burla ao princípio constitucional arrolado, enunciado expressamente pelo artigo 37, incisos I e II, da Constituição da República, deverá observar criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas, pois, no dizer de Celso Antonio Bandeira de Mello (O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Revista dos Tribunais, 1.ª ed., p. 49), “impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo”.

Afinado a esse mesmo entendimento, Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro, 18ª ed, São Paulo: Malheiros, p. 378) adverte sobre pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “a criação de cargo em comissão em moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional de concurso”.

E, da mesma forma, já decidiu o Pretório Excelso que “a exigência constitucional do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os caracteriza.” (STF, RTJ 156/793)

Na atual formação desse C. Órgão Especial, tem-se exigido que a lei descreva as atribuições do cargo, para que seja possível ao Judiciário sindicar se foram criados, efetivamente, para as situações permitidas. Confira-se:

“Ação direta de inconstitucionalidade – Lei Complementar n° 1.800, de 8 de março de 2005 – Criação de cargos de provimento em comissão, destinados, muitos deles, a funções burocráticas ou técnicas de caráter permanente - Inadmissibilidade - Dispositivo, ademais, que deixou de descrever as atribuições e responsabilidades de cada um dos cargos, impossibilitando a verificação de que foram criados exclusivamente para os casos constitucionalmente permitidos (direção, chefia e assessoramento) – Violação dos artigos 5°, § 1º, 111, 115, I e II e 144 da Constituição do Estado de São Paulo - Ação procedente” (ADIN nº 152.958-0/6, j. 4/03/2009, rel. Des. Debatin Cardoso, g.n.).

Desse último julgado, aliás, extrai-se preciosa lição:

“(...) o dispositivo deixou de descrever as atribuições e responsabilidades de cada um dos cargos criados, necessários para que se possa analisar e concluir que foram criados exclusivamente para os casos constitucionalmente permitidos.

Não basta denominar os cargos como sendo de diretor, chefe ou assessor para que se abra uma exceção à regra do concurso público e se justifique seu provimento em comissão, pois o que importa não é o rótulo, mas a substância deles, fazendo-se necessário examinar as atribuições a serem exercidas por seus titulares e tais atribuições devem estar definidas na lei.

Aliás, Márcio Cammarosano, em artigo intitulado CARGOS EM COMISSÃO - BREVES CONSIDERAÇÕES QUANTO AOS LIMITES À SUA CRIAÇÃO (http://www.sertoledo.org.br/limites.html - pesquisado em 18.06.08) ensina que: "... ofende a ordem jurídica em vigor criar cargos em comissão que não consubstanciem competências de direção, chefia e assessoramento, ainda que a denominação que lhes atribua seja própria de cargos daquela espécie, pois o que importa não é o rótulo, mas a substância de cada qual. Em outras palavras: denominar cargos públicos como sendo de diretor, chefia ou assessor não lhes atribui, por si só, a natureza que os permita ser de provimento em comissão. Faz-se necessário examinar as atribuições a serem exercidas por seus titulares, pois cargos públicos consubstanciam, como já assinalado, plexos de competências. Se estas não forem de direção, chefia ou assessoramento, haverá descompasso entre a denominação e as atribuições inerentes ao mesmo, entre o rótulo e a substância. Estar-se-á diante de expediente artificioso, mal disfarçada burla à exigência constitucional de concurso; de concurso público se devessem, em rigor, ter sido criados como cargos isolados ou iniciais de determinada carreira; de concurso interno se devessem ter sido criados como de classe intermediária ou final de carreira ".

Diante do exposto, o parecer é pela procedência do presente incidente, declarando-se a inconstitucionalidade das Leis ns. 1.811/02, 2.764/08, 2.583/07 e 3.083/10 do Município de Itapeva, nas partes em que instituíram os cargos de Diretora de Departamento de Projetos Municipais e Convênios, Chefe de Divisão de Projetos Sócio-Educativos, Diretor   de     Departamento e Patrimônio, Assessor Técnico e Diretor de

 

 

                                                                                        Administração Regional do Jardim Maringá, de provimento em comissão.

São Paulo, 13 de agosto de 2013.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

vlcb