Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0155040-24.2013.8.26.0000

Suscitante: 6ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Leis Complementares nº 01/90, 20/91, 54/93, 65/93, 91/94, 105/94, 122/95, 166/96, 168/97, 170/97, 180/97, 194/98, 210/98, 237/99, 240/00, 249/00, 280/01, 296/02, 366/03 e 386/04, do Município de Botucatu, que criaram cargos de provimento em comissão que não retratam atribuições de assessoramento, chefia e direção, senão funções técnicas, burocráticas, operacionais e profissionais a serem preenchidas por servidores públicos investidos em cargos de provimento efetivo. Inexigibilidade de especial relação de confiança. Violação de dispositivos da Constituição Estadual (art. 115, I, II e V e art. 144) e da Constituição Federal (art. 37, II e V)

2)      Parecer pela admissão e acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

         Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 5ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação cível nº 0242714-79.2009.8.26.0000 da 1ª Vara Cível de Botucatu, figurando como Relatora a Desembargadora Maria Olívia Alves.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade das Leis Complementares nº 01/90, 20/91, 54/93, 65/93, 91/94, 105/94, 122/95, 166/96, 168/97, 170/97, 180/97, 194/98, 210/98, 237/99, 240/00, 249/00, 280/01, 296/02, 366/03 e 386/04, do Município de Botucatu, por violação ao art. 37 da Constituição Federal, tendo ficado consignado no voto do relator o seguinte:

“(...)

Apreciadas tais questões, quanto ao mérito, verifica-se que há pedido de declaração incidental de inconstitucionalidade de várias Leis Complementares Municipais.

E, a princípio, cumpre reconhecer que referidas Leis criaram cargos públicos irregularmente e em afronta ao disposto no artigo 37, inciso II e V, da Constituição Federal, pois, conforme bem registrou o ilustre Juiz sentenciante,

‘...Portanto, Lei que cria cargos públicos de provimento em comissão, dispensando concurso público, quando a natureza das atribuições a serem exercidas não se caracterizam como estritamente de confiança é inconstitucional, uma vez que consubstancia afronta aos princípios constitucionais do concurso público, da isonomia, da impessoalidade, da motivação e do interesse público insculpidos no  artigo 37, II, da Constituição Federal.’

(...)

Diante disso, parece mesmo ser o caso de se reconhecer a inconstitucionalidade incidental das Leis Complementares Municipais mencionadas na petição inicial, editadas após a vigência da Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, que deu nova redação ao artigo 37, inciso II, da Constituição Federal.

 (...)”

Veio aos autos manifestação do apelante informando a edição das Leis Complementares nº 911 e 912, ambas de 13 de dezembro de 2011, que dispuseram respectivamente sobre o Estatuto do Servidor Público e sobre a reorganização administrativa, alterando a legislação na qual foi fundamentada a ação civil pública, razão pela qual entende ter perdido seu objeto.

 É o relato do essencial.

Observe-se que, quando a ação civil pública foi ajuizada em face do Município de Botucatu, os atos normativo impugnados (Leis Complementares nº 01/90, 20/91, 54/93, 65/93, 91/94, 105/94, 122/95, 166/96, 168/97, 170/97, 180/97, 194/98, 210/98, 237/99, 240/00, 249/00, 280/01, 296/02, 366/03 e 386/04, do Município de Botucatu) estavam em pleno vigor produzindo efeitos.

Com base nas inconstitucionalidades reconhecidas incidentalmente é que foi proferida a decisão impondo ao Município obrigações de fazer.

Diversamente do que ocorre nas ações diretas de inconstitucionalidade, que podem perder o objeto e serem extintas sem julgamento do mérito, em virtude de alteração ou revogação da lei, o mesmo não ocorre no incidente de inconstitucionalidade.

É que na ação direta de inconstitucionalidade o controle da constitucionalidade é abstrato, ao passo que no incidente, o controle é difuso.

         Revogada a norma jurídica potencialmente desconforme a Constituição, descabe o controle abstrato, concentrado, direto e objetivo de constitucionalidade, consoante julgado pelo Supremo Tribunal Federal:

“Esta Suprema Corte entende que é inviável o controle concentrado de constitucionalidade de norma já revogada. Se tal norma, porém, gerou efeitos residuais concretos, o Poder Judiciário deve se manifestar sobre as relações jurídicas dela decorrentes, por meio do controle difuso. Precedente: ADI 1.436” (STF, RE-AgR 397.354-SC, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, 18-10-2005, v.u., DJ 18-11-2005, p. 21).

Desta forma, não parece ter perdido o objeto a Ação Civil Pública, sobretudo porque em face dos cargos de provimento em comissão impugnados determinou-se que fosse alterada sua forma de provimento, bem como a exoneração de seus ocupantes.

Pela análise das atribuições dos cargos de provimento em comissão impugnados na Ação Civil Pública, verifica-se que os mesmos desempenham atribuições essencialmente técnicas, burocráticas, operacionais e profissionais, devendo ser preenchidos por servidores efetivos, de carreira, com indispensável a realização de concurso público.

As atribuições previstas para os referidos cargos, relacionadas a suporte técnico, supervisão, gerenciamento, coordenação, orientação, fiscalização, interlocução, controle, acompanhamentos de informações são atividades destinadas a atender necessidades executórias ou dar suporte a decisões e à execução. Trata-se, portanto, de atribuições técnicas, administrativas e burocráticas, distantes dos encargos de comando superior, no qual se exige especial confiança e afinamento com as diretrizes políticas do governo.

Dessa forma, os cargos comissionados impugnados são incompatíveis com a ordem constitucional vigente, em especial com o art. 115 incisos I, II e V, e o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo e art. 37, II e V da Constituição Federal.

Essa incompatibilidade decorre da inadequação ao perfil e aos limites impostos pela Constituição quanto ao provimento no serviço público sem concurso.

Embora o município seja dotado de autonomia política e administrativa, dentro do sistema federativo (art. 1º e art. 18 da Constituição Federal), esta autonomia não tem caráter absoluto, pois se limita ao âmbito pré-fixado pela Constituição Federal (cf. José Afonso da Silva, Direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 459).

A autonomia municipal deve ser exercida com a observância dos princípios contidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual (cf. Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior, Curso de direito constitucional, 9ª ed., São Paulo, Saraiva, 2005, p. 285).

No exercício de sua autonomia administrativa, o município cria cargos, empregos e funções, mediante atos normativos, instituindo carreiras, vencimentos, dentre outras questões, bem como se estruturando adequadamente.

Todavia, a possibilidade de que o município organize seus próprios serviços encontra balizamento na própria ordem constitucional, sendo necessário que o faça respeitando normas constitucionais federais e estaduais relativas ao regime jurídico do serviço público.

A regra, no âmbito de todos os Poderes Públicos, deve ser o preenchimento dos postos através de concurso público de provas ou de provas e títulos, pois assim se garante a acessibilidade geral (prevista inclusive no art. 37, I, da Constituição Federal; bem como no art. 115, I, da Constituição do Estado de São Paulo). Essa deve ser a forma de preenchimento dos cargos e empregos de natureza técnica ou burocrática.

A criação de cargos de provimento em comissão, de livre nomeação e exoneração, deve ser limitada aos casos em que seja exigível especial relação de confiança entre o governante e o servidor, para que adequadamente sejam desempenhadas funções inerentes à atividade predominantemente política.

Há implícitos limites à sua criação, visto que assim não fosse, estaria na prática aniquilada a exigência constitucional de concurso para acesso ao serviço público.

A propósito, anota Hely Lopes Meirelles, amparado em precedente do E. STF, que “a criação de cargo em comissão, em moldes artificiais e não condizentes com as praxes do nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional do concurso (STF, Pleno, Repr.1.282-4-SP)” (Direito administrativo brasileiro, 33. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 440).

Podem ser de livre nomeação e exoneração apenas aqueles cargos ou empregos que, pela própria natureza das atividades desempenhadas, exijam excepcional relação de confiança e lealdade, isto é, verdadeiro comprometimento político e fidelidade com relação às diretrizes estabelecidas pelos agentes políticos, que vão bem além do dever comum de lealdade às instituições públicas, necessárias a todo e qualquer servidor.

É esse o fundamento da argumentação no sentido de que “os cargos em comissão são próprios para a direção, comando ou chefia de certos órgãos, onde se necessita de um agente que sobre ser de confiança da autoridade nomeante se disponha a seguir sua orientação, ajudando-a a promover a direção superior da Administração. Por essas razões percebe-se quão necessária é essa fragilidade do liame. A autoridade nomeante não pode se desfazer desse poder de dispor dos titulares de tais cargos, sob pena de não poder contornar dificuldades que surgem quando o nomeado deixa de gozar de sua confiança” (cf. Diógenes Gasparini, Direito administrativo, 3. ed., São Paulo, Saraiva, 1993, p. 208).

Daí a afirmação de que “é inconstitucional a lei que criar cargo em comissão para o exercício de funções técnicas, burocráticas ou operacionais, de natureza puramente profissional, fora dos níveis de direção, chefia e assessoramento superior” (cf. Adilson de Abreu Dallari, Regime constitucional dos servidores públicos, 2ª ed., 2 ª tir., São Paulo, RT, 1992, p. 41, g.n.).

São a natureza do cargo e as funções a ele cometidas pela lei que estabelecem o imprescindível “vínculo de confiança” (cf. Alexandre de Moraes, Direito constitucional administrativo, São Paulo, Atlas, 2002, p. 158), que justifica a dispensa do concurso. Daí o entendimento de que tais cargos devam ser destinados “apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento” (cf. Odete Medauar, Direito administrativo moderno, 5. ed., São Paulo, RT, p. 317).

Essa também é a posição do E. Supremo Tribunal Federal (ADI-MC 1141/GO, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, J. 10/10/1994, Pleno, DJ 04-11-1994, PP-29829, EMENTA VOL-01765-01 PP-00169).

Não é qualquer unidade de chefia, assessoramento ou direção que autoriza o provimento em comissão; a atribuição do cargo deve reclamar especial relação de confiança para desenvolvimento de funções de nível superior de condução das diretrizes políticas do governo.

Pela análise da natureza e atribuições dos cargos impugnados não se identificam os elementos que justificam o provimento em comissão.

Escrevendo na vigência da ordem constitucional anterior, mas em lição plenamente aplicável ao caso em exame, anotava Márcio Cammarosano a existência de limites à criação de postos comissionados pelo legislador. A Constituição objetiva, com a permissão para tal criação, “propiciar ao Chefe de Governo o seu real controle mediante o concurso, para o exercício de certas funções, de pessoas de sua absoluta confiança, afinadas com as diretrizes políticas que devem pautar a atividade governamental. Não é, portanto, qualquer plexo unitário de competências que reclama seja confiado o seu exercício a esta ou aquela pessoa, a dedo escolhida, merecedora da absoluta confiança da autoridade superior, mas apenas aquelas que, dada a natureza das atribuições a serem exercidas pelos seus titulares, justificam exigir-se deles não apenas o dever elementar de lealdade às instituições constitucionais e administrativas a que servirem, comum a todos os funcionários, como também um comprometimento político, uma fidelidade às diretrizes estabelecidas pelos agentes políticos, uma lealdade pessoal à autoridade superior (...). Admite-se que a lei declare de livre provimento e exoneração cargos de diretoria, de chefia, de assessoria superior, mas não há razão lógica que justifique serem declarados de livre provimento e exoneração cargos como os de auxiliar administrativo, fiscal de obras, enfermeiro, médico, desenhista, engenheiro, procurador, e outros mais, de cujos titulares nada mais se pode exigir senão o escorreito exercício de suas atribuições, em caráter estritamente profissional, técnico, livres de quaisquer preocupações e considerações de outra natureza” (Provimento de cargos públicos no direito brasileiro, São Paulo, RT, 1984, p. 95/96).

No caso em exame, evidencia-se claramente que os cargos de provimento em comissão, antes referidos, destinam-se ao desempenho de atividades meramente burocráticas ou técnicas, que não exigem, para seu adequado desempenho, relação de especial confiança.

A exigência constitucional de prévio concurso público não pode ser ludibriada pela criação abstrata e arbitrária de cargos em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os caracteriza.

A jurisprudência trabalhista e pública firmou o entendimento de que a função diretiva em uma empresa ou no poder público são destinadas a um grau de comando que não se confunde com um chefe ou diretor, subordinado comum, que detém determinada parcela de comando, distingue-se em face da posição hierárquica, das funções de colaboração e de exercício do poder diretivo superior do órgão ou empresa, além da confiança que nele é depositada pelo empregador ou agente político. Esta confiança não deve ser confundida com uma confiança normal e inerente a toda relação de emprego, mas tida como elemento objetivo da relação, expressão do cargo ocupado. São ainda traços característicos da direção superior a não sujeição a controle de horário, existência de posição hierárquica superior em relação aos demais integrantes de seu órgão, padrão salarial elevado, nível superior de escolaridade, poderes de gestão, representação e mando em grau mais alto do que a simples execução da rotina empregatícia, pela prática de atos próprios do empregador ou do titular do poder ou órgão superior a que pertencer.

É necessário ressaltar que a posição aqui sustentada encontra esteio em julgados desse E. Tribunal de Justiça (ADI 111.387-0/0-00, j. em 11.05.2005, rel. des. Munhoz Soares; ADI 112.403-0/1-00, j. em 12 de janeiro de 2005, rel. des. Barbosa Pereira; ADI 150.792-0/3-00, julgada em 30 de janeiro de 2008, rel. des. Elliot Akel; ADI 153.384-0/3-00, rel. des. Armando Toledo, j. 16.07.2008, v.u.).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e de seu acolhimento, declarando a inconstitucionalidade das Leis Complementares nº 01/90, 20/91, 54/93, 65/93, 91/94, 105/94, 122/95, 166/96, 168/97, 170/97, 180/97, 194/98, 210/98, 237/99, 240/00, 249/00, 280/01, 296/02, 366/03 e 386/04, do Município de Botucatu.

 

 

                        São Paulo, 1° de outubro de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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