Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0185391-77.2013.8.26.0000

Suscitante: Quinta Câmara de Direito Público

 

 

 

Ementa:

CONSTITUCIONAL. PROCESSO CIVIL. INCIDENTE DE INSCONSTITUCIONALIDADE. PRINCÍPIOS DA LIVRE INICIATIVA E DA LIVRE CONCORRÊNCIA. PRINCÍPIO DA ISONOMIA. ART. 170 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ART. 144 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. PRINCÍPIO DA IGUALDADE TRIBUTÁRIA. ARTS. 150, II, E 5º, “CAPUT” DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

1. Arts. 2º, 4º e 9º, § 1º, da Lei Complementar nº 273, de 19 de dezembro de 2003, do Município de São José dos Campos. Lei Complementar que dispõe sobre a realização de feiras para comercialização direta de bens no Município. Impugnação à limitação da realização de férias a uma vez por ano, por no máximo sete dias. Taxas de licença, fiscalização e funcionamento com valores diferenciados pra empresas que tenham sede no Município.

2. Instauração de incidente determinada pelo Órgão Fracionário do Egrégio Tribunal de Justiça, que concluiu pela inconstitucionalidade dos citados dispositivos legais.

3. Parecer pela inconstitucionalidade.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

 

Trata-se de Acórdão proferido pela Quinta Câmara de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça, no julgamento da Apelação Cível e do Reexame Necessário n. 0024991-41.2012.8.26.0577, que suscitou a instauração de incidente de inconstitucionalidade, determinando a remessa dos autos ao Excelso Órgão Especial, por força da conclusão no sentido da inconstitucionalidade de diversos dispositivos da Lei Complementar nº 273, de 19 de dezembro de 2003, do Município de São José dos Campos.

A Lei Complementar nº 273, de 19 de dezembro de 2003, do Município de São José dos Campos, dispõe sobre a realização de feiras para comercialização direta de bens no Município, nos seguintes termos:

“LEI COMPLEMENTAR Nº 273, DE 19/12/2003

DISPÕE SOBRE A REALIZAÇÃO DE FEIRAS PARA COMERCIALIZAÇÃO DIRETA DE BENS NO MUNICÍPIO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.

O Prefeito Municipal de São José dos Campos faz saber que a Câmara Municipal aprova e ele sanciona e promulga a seguinte Lei Complementar:

Art. 1º A realização de feiras para comercialização direta de bens no Município de São José dos Campos fica sujeita às normas estabelecidas na presente Lei Complementar.

Art. 2º Somente será autorizada a realização de uma feira por ano de cada segmento empresarial.

Art. 3º Ficam excluídas das disposições desta Lei Complementar as feiras:

I - de desenvolvimento tecnológico e cultural;

II - constantes do calendário oficial do Município;

III - regulamentadas por legislação especifica;

IV - dos setores automotivo, aeroespacial, de telecomunicação, e de defesa e segurança;

V - promovidas pelas entidades locais representativas dos respectivos segmentos empresariais;

VI - as feiras de livros e artigos religiosos.

Art. 4º O período de realização das feiras de que trata o artigo 1º desta Lei Complementar será de no máximo 07 (sete) dias corridos.

Art. 5º As empresas organizadoras ou promotoras das feiras de que trata esta Lei Complementar deverão apresentar no ato do requerimento do alvará de licença:

I - os croquis de distribuição dos estandes, com reserva de espaço para órgãos públicos, lazer e alimentação, serão exigidos apenas para as feiras com área de montagem total superior à 200m² (duzentos metros quadrados);

II - comprovante de regularidade fiscal perante o Município;

III - copia da inscrição municipal, se com sede no Município;

IV - copia do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica - CNPJ e da Inscrição Estadual;

V - autorização para uso da área;

VI - comprovante de expedição de oficio ao Sindicato do Comércio Varejista de São José dos Campos, à Associação Comercial e Industrial de São José dos Campos e à entidade representativa do segmento empresarial a qual se refere a feira, comunicando a realização da feira, com antecedência mínima de 45 (quarenta e cinco) dias da data prevista para o início do evento;

VII - comprovação de publicação, em jornal de grande circulação local, com antecedência mínima de 45 (quarenta e cinco) dias da data prevista para o inicio do evento, divulgando a sua realização e disponibilizando, pelo menos 50% (cinqüenta por cento) do espaço, aos expositores com sede em São José dos Campos.

§ 1º As empresas e entidades expositoras deverão protocolar individualmente o pedido de alvará de licença juntamente com os seguintes documentos:

I - requerimento padrão preenchido e assinado;

II - cópia do CNPJ;

III - cópia do CPF e RG do representante legal da empresa;

IV - cópia da Inscrição Municipal, se com sede no Município;

V - cópia da autorização do promotor da feira.

§ 2º Os espaços reservados à praça de alimentação deverão obedecer aos requisitos e exigências da Vigilância Sanitária.

§ 3º As empresas com sede no Município de São José dos Campos terão prazo de 30 (trinta) dias corridos, contados da data de divulgação da feira, para manifestação aos organizadores e/ou promotores do evento do interesse da participação, asseguradas as mesmas condições estabelecidas às empresas de outras localidades.

§ 4º Findo o prazo acima estabelecido para as empresas locais manifestarem sem desejo de participação na feira, as empresas organizadoras poderão disponibilizar os espaços anteriormente reservados as empresas de outras localidades.

Art. 6º Da apresentação de documentos:

I - a empresa promotora e/ou entidade organizadora somente poderá comercializar espaços aos expositores após a liberação do alvará de licença e a apresentação da apólice de seguro de responsabilidade civil, nos termos do disposto na Lei nº 4.813, de 29 de março de 1996.

II - a empresa e/ou entidade expositora deverá apresentar o alvará de licença até 05 (cinco) dias úteis antes do inicio da feira.

Parágrafo Único - O descumprimento do inciso I implicara na não autorização da realização da feira e o descumprimento do inciso II, no impedimento da participação do expositor na feira.

Art. 7º Poderão ser exigidos documentos complementares sempre que se fizerem necessários, em especial aqueles que visem preservar a segurança, proteção e conforto dos organizadores, participantes e públicos em geral.

Art. 8º Somente será autorizada a participação de entidades filantrópicas nas feiras, se:

I - a promotora/organizadora tiver previsto o espaço na distribuição dos estandes;

II - estiver, a entidade filantrópica, devidamente inscrita no cadastro mobiliário do Município.

Art. 9º As taxas de licença, fiscalização e funcionamento devidas pelas empresas promotoras e expositoras, que deverão ser recolhidas, uma vez obedecidos os requisitos da lei e após a aprovação do pedido de licença, ficam fixadas em:

I - R$ 1.276,92 (mil duzentos e setenta e seis reais e noventa e dois centavos) para as empresas promotoras ou organizadoras de feiras;

II - R$ 638,46 (seiscentos e trinta e oito reais e quarenta e seis centavos) para cada empresa expositora.

§ 1º As taxas constantes dos itens I e II do artigo 9º desta Lei Complementar serão limitadas a 5% (cinco por cento) dos valores ali fixadas, quando se tratar de empresas promotoras ou expositoras com sede no Município de São José dos Campos, e inscritas no cadastro mobiliário municipal.

§ 2º As entidades filantrópicas, autorizadas de acordo com as disposições do artigo 8º desta Lei Complementar, estão isentas da taxa de licença.

Art. 10 Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Prefeitura Municipal de São José dos Campos, 19 de dezembro de 2003.

Emanuel Fernandes

Prefeito Municipal

Luciano Gomes

Consultor Legislativo

Ramón Castro Tourón

Secretário de Desenvolvimento Econômico

José libereato Júnior

Secretário da Fazenda

José Adélcio de Araújo Ribeiro

Secretário de Assuntos Jurídicos

Roberta Marcondes Fourniol Rebello

Divisão de Formalização e Atos”.

Impugnação dos arts. 2º, 4º e 9º, § 1º, do mencionado diploma normativo, especialmente no que se refere à limitação do período de realização das feiras e ao tratamento diferenciado dado às empresas que tenham sede no Município.

A sentença de primeira instância reconheceu a inconstitucionalidade.

Na fase de apelação, sobreveio a manifestação do Colendo Órgão Fracionário do Egrégio Tribunal de Justiça no sentido da inconstitucionalidade:

“APELAÇÃO CÍVEL Lei Municipal n° 273/03 de São José dos Campos que dispõe sobre a realização de feiras para comercialização direta de bens no Município Limitação da realização de feiras a uma vez por ano, por no máximo sete dias Taxas de licença, fiscalização e funcionamento em valor diferenciado para empresas com sede no Município em relação a empresas de outras cidades Indícios de inconstitucionalidade - Matéria a ser analisada pelo C. Órgão Especial deste E. Tribunal. Artigo 97 da Constituição Federal e Súmula Vinculante 10 do E. Supremo Tribunal Federal - Suspensão do julgamento - Remessa que se determina”.

Citação dos seguintes precedentes:

“MANDADO DE SEGURANÇA Feira de Artesanato Indeferimento de realização do evento durante 10 dias, reduzindo-os a sete e pagamento de taxas diferenciadas pelos participantes sediados no Município, baseados na Lei Municipal Complementar n. 273/03 Inadmissibilidade Decretação de inconstitucionalidade dos artigos 4º e parágrafo 1º ao artigo 9 da Lei Violação do Princípio de Igualdade Tributária e Descaracterização do tributo "taxa", por ausência de relação entre a base de cálculo e a prestação do serviço público Ausência de interesse local Violação aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa Sentença mantida Recursos improvidos.” (Apelação Cível n° 0016748-79.2010.8.26.0577, 3ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Antonio Carlos Malheiros, j. 16/04/2013).

“Apelação em Mandado de segurança. Decisão que indeferiu dilação de prazo para realização de evento e determinou diferenciação injustificada no valor das taxas municipais. Violação do princípio da igualdade tributária. Artigos 150, inciso II, e 5°, "caput", da Constituição Federal. Cobrança que descaracterizou o tributo taxa, por ausência de relação entre a base de cálculo e a prestação do serviço público. Artigos 145, inciso II, da CF/88 e 77 do CTN. Ocorrência de confisco, nos termos do artigo 150, inciso IV, da CF/88. Ausência de "interesse local", configurando violação aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, da defesa do consumidor, entre outros. Aplicação dos artigos 1o, inciso IV; 5o, inciso XIII; 30, incisos I e II; e 170, incisos IV e V e parágrafo único, todos da Carta Magna. Aplicação analógica do § 4° do artigo 173 da CF/88. Violado o dever de incentivar as microempresas e empresas de pequeno porte e de incentivar o turismo de negócios (artigos 179 e 180 da Constituição Federal). Ausência da necessária razoabilidade na determinação. Sentença mantida. Recurso não provido” (Apelação Cível n° 0072814-64.2010.8.26.0000, 2ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Henrique Nelson Calandra, j. 29/06/2010).”.

É o breve relatório.

Com a advertência de que se restringe à questão prejudicial, o parecer é no sentido da inconstitucionalidade dos dispositivos legais impugnados.

A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos arts. 1º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (Cf. Alexandre de Moraes, in “Direito Constitucional”, Atlas, 7.ª ed., p. 261).

Essa autonomia consagrada aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano, muito pelo contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (Cf. De Plácido e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Forense, Rio de Janeiro, Volume I, 1984, p. 251), sendo definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que no caso é a Constituição (Cf. “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros Editores, São Paulo, 8.ª ed., 1992, p. 545).

A autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais      sobre       áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) autoadministração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (Cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).

Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da autoadministração) (ob. e loc. cits).

Também é relevante consignar a possibilidade do controle de constitucionalidade das leis municipais, em seus aspectos formais e materiais.

  Segundo Luís Roberto Barroso (Interpretação e aplicação da Constituição, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 153):

“A supremacia constitucional, em nível dogmático e positivo, traduz-se em uma superlegalidade formal e material. A superlegalidade formal identifica a Constituição como a fonte primária da produção normativa, ditando competências e procedimentos para a elaboração dos atos normativos inferiores. E a superlegalidade material subordina o conteúdo de toda a atividade normativa estatal à conformidade com os princípios e regras da Constituição. A inobservância dessas prescrições formais e materiais deflagra um mecanismo de proteção da Constituição, conhecido na sua matriz norte-americana como judicial review, e batizado entre nós de ‘controle de constitucionalidade’”.

Os parâmetros para o controle de constitucionalidade, portanto, são os aspectos formais e materiais da produção normativa infraconstitucional. Daí a razão pela qual se fala em inconstitucionalidade formal e material.

O diploma legal impugnado (Lei Complementar nº 273, de 19 de dezembro de 2003, do Município de São José dos Campos), ao restringir abstratamente o período de realização das feiras, de fato, é ofensivo aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, como apontado na R. Sentença e no V. Acórdão.

Trata-se de elemento de legitimação da própria atividade econômica, conforme dá conta o art. 170, IV, da CF:

“Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

IV – livre concorrência”.

Com efeito, o dispositivo mostra-se inconstitucional por mais de uma razão, pois o legislador municipal, a pretexto de legislar sobre assunto de interesse local (art. 30, I, da CR), desconsiderou princípios que regem a atividade econômica, especificamente a livre iniciativa e a livre concorrência (art. 170, IV, CF), mesmo porque às atividades comercial e econômica são aplicáveis os princípios constitucionais que a regem, entre os quais a livre iniciativa e a livre concorrência.

Dito de outro modo, ao limitar a legítima exploração de aspectos inerentes ao exercício da atividade econômica e comercial, deixou o legislador municipal de observar referidos princípios constitucionais.

Também há inconstitucionalidade, pelos mesmos motivos, quando a Lei Municipal n° 273/03, de São José dos Campos, dispõe que as feiras serão realizadas por no máximo sete dias.

Outra inconstitucionalidade se revela, por ofensa ao princípio da isonomia tributária, quando há tributação diferenciada em prol das empresas sediadas no Município.

No caso, há violação do princípio da igualdade tributária, consagrado nos artigos 150, inciso II, e 5°, "caput", da Constituição Federal.

Por fim, importa observar que no julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade nº 0153970-06.2012.8.26.0000, esse Colendo Órgão Especial já pronunciou a inconstitucionalidade do art. 4º da Lei Complementar nº 273, de 19 de dezembro de 2003, do Município de São José dos Campos.

Por isso, em relação ao mencionado dispositivo legal, a arguição não deverá ser conhecida (CPC, art. 481, parágrafo único).

Em tais circunstâncias, o parecer é no sentido do parcial conhecimento da arguição de inconstitucionalidade, pronunciando-se a inconstitucionalidade dos arts. 2º e 9º, § 1º, da Lei Complementar nº 273, de 19 de dezembro de 2003, do Município de São José dos Campos.

São Paulo, 25 de novembro de 2013.

 

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

                                    Jurídico

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