Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0189089-91.2013.8.26.0000

Suscitante: 9ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo

 

 

Ementa: Incidente de Inconstitucionalidade da Lei n. 3.480/07, de 28 de junho de 2007, do Município de Guarujá, que proíbe o uso e a comercialização do produto composto de espuma expansível em aerossol (spray), comumente utilizado em festas, também conhecido como “espuma de carnaval”. Proteção à saúde. Competência legislativa concorrente entre União, Estados e Distrito Federal. Artigo 24, XII, da Constituição Federal. Competência suplementar dos Municípios. Art. 30, II, da Constituição Federal. Predominância de interesse nacional. Respeito ao pacto federativo. Art. 144, da Constituição do Estado de São Paulo. Parecer pela inconstitucionalidade da lei municipal.

 

Colendo Órgão Especial:

 

1.               Trata-se de incidente de inconstitucionalidade suscitado pela Colenda 9ª Câmara de Direito Público, nos autos da Apelação n. 0003633-54.2008.8.26.0223 (fls. 280/282) em que são partes a empresa Imã Aerossois Ltda – EPP (apelante) e o Município do Guarujá (apelado) sobre a Lei n. 3.480/07 que proíbe o uso e comércio de espuma de carnaval.

2.               É o relatório.

3.                Transcreve-se, a seguir, o texto da Lei n. 3.480, de 28 de junho de 2007, do Município de Guarujá:

“Art. 1º - Fica proibido no Município de Guarujá o uso e a comercialização do produto composto de espuma expansível em aerossol (spray), comumente utilizado em festas, também conhecido como "espuma de carnaval".

Parágrafo Único - A proibição de que trata o "caput" deste artigo se estende, também, aos produtos congêneres e afins daquele já mencionado nesta Lei.

Art. 2º - O Poder Executivo Municipal, no exercício de seu Poder de Polícia e a fim de fazer cumprir a presente Lei, deverá proceder à apreensão dos produtos e sua devida destruição.

Art. 3º - Aos comerciantes que incorrerem na proibição tratada nesta Lei, além do disposto no artigo antecedente, serão aplicadas as seguintes sanções:

I - multa equivalente a 585 (quinhentos e oitenta e cinco) Unidade Fiscal do Município (UFM), cujo valor deverá ser cobrado em dobro no caso da primeira reincidência;

II - suspensão definitiva do alvará que permite a localização e o funcionamento do comércio, no caso da segunda reincidência.

Art. 4º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em con-trário.”

4.                Nesse diapasão, a discussão cinge-se na análise da constitucionalidade da norma que proíbe a comercialização da “espuma de carnaval” e produtos congêneres.

5.                Observa-se que o Município do Guarujá, ao editar o ato normativo em tela, visa proteger a saúde de seus munícipes.

6.                Não há dúvida de que a matéria pertinente à Lei Municipal n. 3.480/07 diz respeito à proteção da saúde pública, cuja competência para legislar pertence à União, de forma concorrente com os Estados e o Distrito Federal, nos termos do art. 24, XII, da Carta Maior.

7.                Aos Municípios reserva-se tão-somente competência para suplementar a legislação federal e estadual, no que couber, conforme estabelecido no art. 30, II, da Constituição Federal.

8.                É de todo oportuno mencionar que a repartição de competências entre os entes da federação baseia-se no princípio da predominância do interesse.  (DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo Brasileiro. 31ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros. 2008. pg. 478.)

9.                Os Municípios, precisamente, têm competência para legislar sobre assuntos de interesse local, nos termos do art. 30, II, da CF, o que significa, nos dizeres do eminente autor Paulo Gustavo Gonet Branco, “interesse predominantemente municipal, já que não há fato local que não repercuta, de alguma forma, igualmente, sobre as demais esferas da Federação.” (Mendes, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 956.)

10.              No caso em tela, não se pode afirmar que absolutamente inexista interesse local tampouco que não seja o caso de interesse geral ou nacional.

11.              No entanto, é cristalino que não há predominância de interesse local a justificar a competência municipal.

12.              De outra feita, é cediço a obrigatoriedade de observância do pacto federativo, conforme interpretação extraída do art. 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

13.              Decorrência disso é a necessidade de haver compatibilidade entre as normas federal e municipal.

14.              Assim, no âmbito federal, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, conforme a Lei n. 9.782, de 26 de janeiro de 1999, editou a Resolução n. 77, de 14 de novembro de 2007, a qual permite expressamente a comercialização da “espuma de carnaval”, desde que obedecidos critérios de segurança. Veja-se:

(...)

 Art. 1º - Os produtos denominados “espuma de carnaval”, “neve de carnaval”, “neve artificial”, “serpentina”, “teia” ou qualquer outra denominação similar, apresentados na forma de aerossol, que possam entrar em contato direto com a pele, mucosas e/ou olhos somente poderão ser comercializados seguindo critérios de segurança para sua utilização.

Art. 2º - A fabricação destes produtos deve atender às medidas e aos mecanismos destinados a garantir ao consumidor a qualidade dos mesmos, tendo em vista sua identidade, pureza e segurança.

Art. 3º - As empresas fabricantes e importadoras destes produtos devem realizar os seguintes testes e mantê-los à disposição imediata da Vigilância Sanitária quando solicitados:

Absorção cutânea

Toxidade oral aguda

Alergenicidade

Irritação primária da pele

Irritação primária dos olhos

Parágrafo único. Os ensaios descritos no caput deste artigo devem seguir os protocolos internacionalmente aceitos e seus resultados não podem traduzir nenhum dano ou agravo à saúde da população exposta.

Art. 4º - É vedada a utilização de substâncias proibidas no país, assim como aquelas que apresentem efeito comprovadamente mutagênico, teratogênico e carcinogênico em mamíferos nos produtos abrangidos por este regulamento.

(...)”

15.              A respeito da repartição de competências, José Afonso da Silva, com muita propriedade, ensina que o conceito de competência concorrente abrange dois elementos, quais sejam: “possibilidade de disposição sobre o mesmo assunto ou matéria por mais de uma entidade federativa e primazia da União no que tange à fixação de normas gerais (art. 24 e seus parágrafos)”. Ainda, esclarece que a competência suplementar “significa o poder de formular normas que desdobrem o conteúdo de princípios ou normas gerais ou que supram a ausência ou omissão destas (art. 24, §§ 1º a 4º).” (DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo Brasileiro. 31ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros. 2008. pg. 481.)

16.              Não obstante isso, o Município de Guarujá, com a Lei Municipal n. 3.480/2007, ao exercer sua competência suplementar, no interesse local, invadiu a esfera de competência normativa federal e estadual (art. 24, XII, CF).

17.              Posto isso, urge o reconhecimento da inconstitucionalidade da aludida lei municipal.

18.              A título de exemplo, nesse sentido já decidiu esse Colendo Órgão Especial em acórdãos, cujos valiosos fundamentos, no que interessa, são transcritos e incorporados expressamente:

(...)

Sustenta-se a inconstitucionalidade da citada lei, por alegada violação da competência legislativa reservada aos Municípios pela Constituição Federal.

E assim pode ser entendido, respeitosamente.

Porque evidente a apontada ofensa à repartição constitucional de competências legislativas.

De efeito.

A lei municipal questionada, ao banir o produto conhecido como "espuma de carnaval" - e similares - volta-se à proteção da saúde, o que é definitivamente esclarecido pela Mensagem n° 55/06, que acompanhou o texto encaminhado como projeto de lei à Câmara Municipal (f. 152/153).

Com efeito, justificou-se aquela proposta mediante a menção de notícias sobre efeitos maléficos supostamente causados por tais produtos, assim como de riscos excessivos à saúde criados a partir de sua utilização.

Ocorre que a Constituição da República, em seu art. 24, XII, confere à União, aos Estados e ao Distrito Federal, competência concorrente para legislar acerca da "defesa da saúde".

Resta aos Municípios, então, o exercício da competência legislativa suplementar, conferida pelo art. 30, II, da Constituição Federal.

Nesses termos, são evidentemente precisos os limites estabelecidos pela Carta Magna para a regulamentação da matéria na esfera municipal.

Vale dizer.

Se a cada Município da Federação compete suplementar a legislação federal e estadual a respeito, não se lhe confere competência legislativa para estabelecer regulamentação contrária àquela instituída e vigente em âmbito nacional.

Como efetivamente ocorrido aqui.

Isto porque em 19 de novembro de 2007 foi publicada a Resolução n° 77 de 2007, editada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitário (ANV1SA), que, estabelecendo uma série de condições e critérios de segurança, permite a fabricação, a circulação e a utilização de produtos em aerossol, tais quais os banidos pela Lei n° 1.343/06. do Município de Caraguatatuba.

Cumpre observar que a atribuição para tanto foi conferida à ANVISA pela Lei n" 9.782/1999, que cometeu à agência, entre outras atividades: "normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde" (art. 2º, III) e "proibir a fabricação, a importação, o armazenamento, a distribuição e a comercialização de produtos e insumos, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde" (art. 7°, XV).

Conclui-se, assim, que a legislação instituída pelo Município de Caraguatatuba extrapola os limites da competência legislativa que lhe é atribuída pela Constituição Federal.

Afinal, além de instituir normatização contrária e incompatível com aquela introduzida por regulamentação federal, fêlo sem visar a qualquer aspecto concernente ao interesse local, elemento que deve necessariamente pautar toda a atividade legislativa do Município.

(...)

Por sua vez, Hely Lopes Meirelles leciona que "O que define e caracterizo, o "interesse local", inscrito como dogma constitucional, é a predominância do interesse do Município sobre o do Estado ou da União" ("Direito Municipal Brasileiro", Malheiros Editores, 15ª edição, 2006, pp. 109/110, item 3.2). (g.n.)

Evidentemente ausente, nesses termos, aspecto qualquer na lei municipal que remeta à necessidade de proteção de interesse local ou mesmo à preocupação com peculiaridades locais, a justificar a competência legislativa do Município.

Cristalina, portanto, a transgressão à distribuição constitucional de competências e conseqüente violação do pacto federativo.

O que basta, só por si, ao reconhecimento da inconstitucionalidade da lei.

Respeitosamente.

É assim que vem decidindo o Colendo Supremo Tribunal Federal (RE 596.48-RS. rel Min. Eros Grau, j. em 3.8.2009; RE 477.508/RS, rel. Min. Ellen Gracie, j. em 29.11.2010).

(...)”

(Arguição de Inconstitucionalidade n. 0237815-33.2012.8.26.0000, Caraguatatuba, Órgão Especial, 30-01-2013.)

“(...)

O incidente merece acolhida.

É que, nos termos do art. 144, da Constituição do Estado de São Paulo, os Municípios possuem autonomia política, legislativa, administrativa e financeira, devendo se auto-organizar por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos nas Constituições Federal e Estadual.

A autonomia política do ente municipal é, portanto, relativa, de maneira que seu poder de legislar deve, também, observar aos princípios do pacto federativo e da repartição de competências trazidos pela Carta Magna.

Sob esse contexto, observa-se que o art. 24, inc. XII, da CF, delega à União, aos Estados e ao Distrito Federal a competência concorrente de legislar sobre a "defesa da saúde".

Assim, em razão de tal competência, o Chefe do Poder Executivo Nacional promulgou, em 26.01.99, a Lei n. 9.782/99 que, dentre outras providências, disciplina a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a quem compete "normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde" e "proibir a fabricação, a importação, o armazenamento, a distribuição e a comercialização de produtos e insumos, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde." (art 2º, II, e art. 7°, XV, respectivamente).

Nesse contexto, demonstrou-se nos autos que a autarquia, em atenção às suas atribuições, editou a Resolução n. 77/07, cujos termos foram acostados a fls. 46, permitindo a fabricação e comercialização de "produtos denominados 'espuma de carnaval', 'neve de carnaval', 'neve artificial', 'serpentina', 'teia' ou qualquer outro similar" apenas se respeitadas certas especificações quanto à composição e embalagem.

Tal normatização, como não poderia deixar de ser, deve ser respeitada no âmbito nacional.

Assim, ao promulgar a lei inquinada como inconstitucional, a Municipalidade de Cerquilho agiu em afronta à regulamentação federal, o que, por certo, é descabido.

Vale dizer, ainda que não se olvide a possibilidade do ente municipal legislar em defesa da saúde dos munícipes, consoante disposto pelo art. 30, inc. II, da CF, sua competência é suplementar e, logo, apenas pode ser exercida diante da ausência de legislação federal e estadual a respeito, o que não é o caso dos autos.

Afinal, ainda que a permissão de fabricação e comercialização do produto seja prevista por Resolução editada pela ANVISA, e não por Lei Federal, tal verificação se torna irrelevante a este julgamento à vista de, como dito alhures, a atribuição da competência da autarquia ser trazida por diploma normativo de âmbito nacional.

(...)

A inconstitucionalidade da Lei 2.836/08, do Município de Cerquilho é reconhecida, portanto, devendo o julgamento da apelação n. 9197008-51.2008.8.26.0000 se dar sob esse enfoque.

Nada obstante, em razão da conclusão supra, cabe esclarecer que não se pretende declarar a inconstitucionalidade de diploma municipal com respaldo em disposições isoladas da Constituição Federal, o que seria atribuição do C. STF, mas, sim, à vista de dispositivo remissivo à Carta Magna trazido pelo diploma estadual.

Nesse sentido, cabe destacar que a competência dos Tribunais estaduais nessa esfera vem sendo reconhecida pelo C. STF, conforme exemplificam os seguintes julgados: Rcl 4.432 / TO, Relator Min. Gilmar Mendes, j . em 27.06.06 e Ag. Reg. na Rcl 10.500 / SP, Relator Min. Celso de Mello, julgado em 22.06.11, sendo, do último, extraído o seguinte trecho:

(...)

Não bastasse, também não passa despercebido que a proibição do comércio de "espuma de Carnaval" também acaba por violar o preceito constitucional da livre iniciativa, o que corrobora, ainda mais, com a inconstitucionalidade arguida no julgamento da apelação n. 9197008-51.2008.8.26.0000, que fica reconhecida.

(...)”

(Arguição de Inconstitucionalidade n. 0085143-40.2012.8.26.0000, Cerquilho, Órgão Especial, 25-07-2012.)

19.              Destarte, opino pelo acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.

         São Paulo, 24 de outubro de 2013.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

wpmj