Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0192760-25.2013.8.26.0000

Suscitante: 28ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo

 

 

Ementa:

1)     Incidente de inconstitucionalidade. Art. 19, § 2º do Decreto Estadual nº 41.466/96, que estabelece solidariedade entre o proprietário e ocupante do imóvel quanto ao pagamento de despesas de água e esgoto dele decorrentes.

2)     Constitucionalidade. O fornecimento de água e coleta de esgoto é serviço público prestado sob o regime de direito público, razão pela qual o Estado-Membro ou Município têm competência para disciplinar sua prestação, bem como estabelecer regras referentes aos responsáveis pelo pagamento da tarifa.

3)     Parecer no sentido do conhecimento e rejeição da arguição de inconstitucionalidade.

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

         Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 28ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, quando do julgamento da apelação cível nº 9077263-48.2016.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, na sessão realizada em 25 de junho de 2013, figurando como Relator o Desembargador Dimas Rubens Fonseca.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade do art. 19, § 2º, do Decreto Estadual, tendo ficado consignado no voto do relator o seguinte:

“(...)

Assim, em se considerando que o cerne da irresignação da apelante cinge-se, especificamente, ao reconhecimento da solidariedade entre o proprietário e o usuário do serviço, consoante o disposto no § 2º do art. 19 do Decreto Estadual nº 41.446/96 e, ainda, que a solidariedade deve ser estabelecida pela lei ou vontade das partes, consoante o disposto no art. 265 do Código civil, bem como que cabe à União a competência exclusiva para legislar sobre direito civil (art. 22, I, da Constituição Federal), infere-se que o dispositivo do decreto supracitado não está em harmonia com a Constituição Federal e com o Código Civil, todavia ante o que (...)”

É o relato do essencial.

O incidente deve ser conhecido, porém não merece acolhimento.

O § 2º do art. 19 do Decreto Estadual nº 41.446/96 tem a seguinte redação:

“Art. 19 (...)

(...)

§ 2º. É de responsabilidade solidária do proprietário do imóvel o ressarcimento de débitos de faturas/contas não quitadas põe eventual usuário ocupante do mesmo”

O referido dispositivo é compatível com nosso ordenamento constitucional haja vista que se trata de regulamentação da prestação de serviço público.

A propósito o art. 175 da Constituição Federal estabelece o seguinte:

“Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II - os direitos dos usuários;

III - política tarifária;

IV - a obrigação de manter serviço adequado.”

Os serviços públicos, em geral, são prestados pelo Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, nos temos da Constituição Federal. No Estado de São Paulo, o regime tarifário e de serviços relativos ao abastecimento de água e/ou coleta e disposição de esgotos sanitários, bem como dos demais serviços encontram-se regulamentados pelo Decreto Estadual n° 41.446/96, que revogou o de n° 21.123/83.

Segundo o art. 14 do Decreto n° 41.446/96, a tarifa será cobrada de todos aqueles que possuem seus imóveis ligados à rede, cadastrados como usuários dos seus serviços, com emissão de faturas/contas de água mensalmente.

Tratando-se de serviço prestado diretamente pelo Poder Público, sua regência compete ao respectivo ente político responsável por sua prestação. No caso dos autos o Estado, haja vista que o serviço é de responsabilidade de uma empresa pública a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP.

Desta forma, o dispositivo legal ao prever a responsabilidade solidária do proprietário do imóvel pelo ressarcimento de débitos de faturas/contas não quitadas, apenas disciplina questão relativa ao sujeito passivo da tarifa ou do preço público.

Ainda que o serviço público seja prestado ao usuário do imóvel, ele tem vinculação direta e inseparável com o imóvel. Não detendo o prestador do serviço, condições de controle e gestão do uso dos imóveis beneficiados pelo serviço de água e esgoto, não seria razoável impedir que a responsabilidade recaia sobre o proprietário do imóvel, haja vista que é ele quem o administra e dele extrai os frutos.

Embora a responsabilidade pelo pagamento da tarifa de água e esgoto seja atribuída, no caso de locação, ao locatário (art. 23, VIII da Lei nº 8.245/91), autorizando a rescisão contratual e despejo pelo inadimplemento, existem inúmeras situações jurídicas de uso do imóvel que fogem ao controle do prestador de serviço e por estarem diretamente subordinada a gestão do proprietário, justificam que o mesmo também seja responsável pelo pagamento daquele serviço.

O entendimento em sentido contrário importaria na criação de válvula e artifício para a inadimplência, com risco para a manutenção das condições e garantias da prestação do serviço público.

A regulamentação do serviço público que cabe ao ente político por ele responsável, abrange regras referentes à definição dos sujeitos passivos daquela prestação, sem que isto importe em usurpação da competência da União por estabelecer hipótese de solidariedade.

O quantitativo cobrado dos usuários das redes de água e esgoto é tido como preço público em sentido amplo ou tarifa. A propósito: RE 544.289-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 26-5-2009, Primeira Turma, DJE de 19-6-2009, e: RE 581.085-ED-AgR, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em 25-9-2012, Primeira Turma, DJE de 25-9-2012.

Os preços públicos e tarifas, por se tratarem de contraprestação a um serviço público, são regidos pelo regime contratual de direito público. Assim, ao estabelecer a solidariedade pelo pagamento do serviço público, o Poder Público não cria hipótese nova de solidariedade, mas apenas a estabelece especificamente para uma modalidade de relação jurídica, valendo-se de seu poder de fixar unilateralmente as condições do contrato de prestação daquele serviço.

A regulamentação e controle do serviço público e de utilidade pública caberá sempre ao Poder Público, qualquer que seja a modalidade de sua prestação aos usuários.

Assim, o Poder Público ao fixar regra de solidariedade pelo pagamento de um serviço público uti singuli  ou individual, não viola o art. 265 do Código Civil, pois age nos limites de sua competência de regulamentação que decorre do art. 175 da Constituição Federal.

O fornecimento de água e coleta de esgoto é serviço público prestado sob o regime de direito público, razão pela qual pode e deve o Poder Público, no exercício do poder inerente à sua soberania, disciplinar os seus standards, fixar tarifas, estabelecer regras referentes aos sujeitos  passivos e fiscalizar o serviço.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e de seu não acolhimento, declarando a constitucionalidade do art. 19, § 2º, do Decreto Estadual nº 41.466/96.

                       São Paulo, 25 de novembro de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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