Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0199688-89.2013.8.26.0000

Suscitante: 6ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Lei nº 914/2011, do Município de São Manuel, que “Dispõe sobre a gratuidade no transporte coletivo urbano do município aos portadores de deficiência física e seu acompanhante e dá providências.”

2)      A concessão de isenção ao pagamento de preço público (tarifa) pela prestação de serviço público comercial ou industrial, executado direta ou indiretamente, é matéria reservada ao Poder Executivo (art. 120 e 159, parágrafo único, da Constituição Estadual).

3)      A competência do órgão executivo para fixação da tarifa abrange alterações, isenções etc., e, portanto, a outorga de isenção por ato normativo do Poder Legislativo, de iniciativa parlamentar, viola a cláusula da separação de poderes, apresenta vício de iniciativa, estando ainda maculada pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos. (arts. 5º, 24, § 2, 25, 47, II, XIV, XIX, 120 e 144, da Constituição do Estado)

4)      Parecer pela admissão e acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

         Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 6ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da Apelação Cível nº 0003894-07.2011.8.26.0581 da 1ª  Vara da Comarca de São Manuel, figurando como Relator o Desembargador Sidney Romano dos Reis.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade da Lei nº 914/2011, do Município de São Manuel, por violação aos arts. 2º e 61, § 1º, II, b, da Constituição Federal e arts. 5º, 25 e 47, XVIII, da Constituição Estadual, tendo ficado consignado na ementa o seguinte:

“(...)

Apelação cível Ação declaratória de inexistência de relação jurídico-normativa - Lei Municipal pela qual se deu a isenção tarifária aos indivíduos portadores de deficiência física, mental sensorial ou doença crônica que os impossibilite para a vida independente Iniciativa da Lei por Vereadores Sanção da Lei pelo Prefeito Municipal Processo legislativo que desafiou a competência privativa do Chefe do Executivo, conforme dispõem a Constituição Federal (art. 61, § 1º, b), a Constituição Estadual (art. 5º, § 1º; art. 47, inc. XI) e a Lei Orgânica do Município de São Manuel (art. 49, inc. IV). Além disso, não houve indicação de recursos ou fonte de custeio frente à liberalidade ora combatida, violando, novamente, a Constituição Federal (art. 195, § 5º), a Constituição Estadual (art. 144) e a Lei Orgânica do Município de São Manuel (art.45, inc. III e § 1º). Sentença de procedência, com a declaração de inexigibilidade da Lei perante a autora, condenando-se os réus ao ressarcimento em razão da eventual concessão de gratuidade aos usuários do transporte entre a data da entrada em vigor da Lei até a concessão da tutela antecipada.

Recurso da Câmara Municipal de São Manuel Requer sua exclusão do polo passivo da demanda.

Recurso da Prefeitura Municipal de São Manuel - Alegação de que, em tendo o Prefeito Municipal sancionado, na íntegra, a Lei Municipal em comento, teve sim, esta Lei, seu trâmite regular, tanto na esfera do Legislativo, quanto na do Executivo, não havendo que se falar em usurpação daquele Poder em relação às funções deste ao disciplinar a gratuidade do deficiente físico. Inadmissibilidade Lei municipal que viola dispositivos da Constituição Estadual e Federal, além da própria Lei Orgânica do Município. Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 914/11 – Questão prejudicial que deve ser apreciada pelo E. Órgão Especial desta Corte Art. 97 da Constituição Federal - Súmula Vinculante nº 10 do STF.

É o relato do essencial.

A Lei nº 914/2011, do Município de São Manuel, de iniciativa parlamentar, tem a seguinte redação:

“Art. 1º Farão jus à carteira especial de livre acesso aos transportes coletivos em operação no Município de São Manuel, sem quaisquer ônus, o indivíduo portador de deficiência física, nesta também, enquadrada a mental, sensorial ou doença crônica grave que o impossibilite para a vida independente e que tenha renda familiar igual ou inferior a 04(quatro) salários mínimos.

Art. 2º A situação de passageiro especial deverá ser concedida em função da patologia ou deficiência, atestada pelo profissional especialista de instituição a qual o sujeito esteja vinculado.

Art. 3º Nos casos em que o paciente não esteja vinculado a alguma instituição, seu atestado deverá ser emitido por especialista da Diretoria Municipal de Saúde do Município.

Art. 4º Em caso de necessidade de acompanhamento para a locomoção do passageiro, o especialista competente deverá fazer referência de tal, no atestado médico.

Parágrafo único: Os acompanhantes dos portadores de deficiência, somente poderão se valer do benefício, quando efetivamente estiverem assistindo os mesmos.

Art. 5º A carteira especial mencionada no "caput" deste art. deverá conter:

a) Nome completo, data do nascimento e identidade do beneficiado.

b) Prazo de validade, obrigatoriamente anual.

c) Declaração de direito a acompanhante, quando se tratar de pessoas que tenha necessidade interrupta de assistência.

d) Fotografia 3x4.

e) Tipo de deficiência.

f) Deverão constar os nomes das instituições a qual o deficiente estiver vinculado, se houver.

Art. 6º As carteiras de “Passageiro Especial” só poderão ser emitidas pela Diretoria Municipal da Saúde do Município.

Art. 7º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas às disposições em contrário.”

Inicialmente, importante ressaltar que o disposto no art. 61, § 1º, I, b, da CF, é destinado às proposições legislativas que disponham sobre matéria tributária pertinente aos Territórios Federais, não se aplicando aos Estados e Municípios

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio da separação de poderes e o da reserva da Administração, previstos nos arst. 5º e 47, II, XIV, e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“ (...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)”

A matéria disciplinada pela Lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A instituição da carteira especial de livre acesso aos transportes coletivos em operação no Município de São Manuel, para indivíduos portadores de deficiência física e mental, ou doença crônica grave que impossibilite para a vida independente e que tenha renda familiar igual ou inferior a 04 (quatro) salários mínimos, consiste em matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Na verdade a carteira especial de livre acesso aos transportes coletivos confere isenção tarifária total, atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Interfere de outro lado no equilíbrio econômico financeiro dos contratos da administração pública. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da Administração.

A concessão de isenção ao pagamento de preço público (tarifa) pela prestação de serviço público comercial ou industrial, executado direta ou indiretamente, é matéria reservada ao Poder Executivo, nos termos do que dispõe o art. 120 e 159, parágrafo único, da Constituição Estadual.

Com efeito, ao prever a competência do órgão executivo para fixação da tarifa, tal inclui alterações, isenções etc., e, portanto, a outorga de isenção por ato normativo do Poder Legislativo, de iniciativa parlamentar, viola a cláusula da separação de poderes constante do art. 5º da Constituição Estadual.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode por meio de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

O ato normativo impugnado afeta o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão de transporte público, celebrado pelo Município de São Manuel e a apelada (Transporte Cidade Paraízo Ltda).

Trata-se de afronta evidente ao princípio da harmonia e separação entre os poderes, na medida em que o Poder Legislativo pretende substituir o Executivo na gestão dos contratos administrativos celebrados.

O Executivo não deve sofrer indevida interferência em sua primacial função de administrar (planejamento, direção, organização e execução das atividades da Administração).

Assim, quando o Poder Legislativo edita lei estabelecendo hipóteses de isenção tarifária no transporte urbano coletivo, como ocorre, no caso em exame, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, gestão dos contratos administrativos de concessão, violando o princípio da separação de poderes.

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, pois envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo, no caso em análise representados pela concessão de isenção tarifária parcial nos serviços de transporte urbano coletivo. A atuação legislativa impugnada equivale à prática de ato de administração, de sorte a violar a garantia constitucional da separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX, da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

A importância da reserva da Administração é bem aquilatada pelo Supremo Tribunal Federal:

 “RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

Em caso similar, esse egrégio Órgão Especial declarou a inconstitucionalidade de lei de iniciativa parlamentar:

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei do Município de Andradina, de iniciativa parlamentar, que concedeu isenção de tarifa de água e esgoto a aposentados - Violação à separação de Poderes - Matéria referente à tarifa e preço público pela remuneração dos serviços que é de competência do Executivo (art. 120, da CE) - Vício de iniciativa caracterizado - Ação procedente, para reconhecer a inconstitucionalidade da Lei 2.733, de 19 de setembro de 2011, do Município de Andradina. (TJSP, ADI 0256692-55.2011.8.26.0000, Rel. Des. Enio Zuliani, v.u., 23-05-2012).

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da instituição de isenção tarifária em benefício dos munícipes ou de determinada categoria profissional. Trata-se de atuação administrativa fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV, 120, 159, parágrafo único e 144).

Ainda que se considere que isenção tarifária deva ser instituída por lei, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, em decorrência da atribuição que lhe foi conferida pelo art. 120 e 159, parágrafo único, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao instituir isenção tarifária a determinados indivíduos no transporte coletivo municipal, de um lado, viola o art. 47, II e XIV e o art. 120, 159, parágrafo único, da Constituição Estadual, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização do serviço público e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, da Constituição Estadual na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

Nem se alegue que o vício de iniciativa foi sanado pela sanção do Prefeito, haja vista cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

A norma combatida ao instituir isenção tarifária transporte coletivo municipal não indicou os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto importa em alteração nas condições do contrato de concessão do transporte público, que demandará da Administração municipal meios financeiros para subsidiar o valor dos descontos, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias.

Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e no art. 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e de seu acolhimento, declarando a inconstitucionalidade Lei nº 914/2011, do Município de São Manuel.

                        São Paulo, 12 de dezembro de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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