Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0203230-18.2013.8.26.0000

Suscitante: 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

 

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Art. 19 da Lei nº 14.658/2007, do Município de São Paulo, que determina o cômputo dos valores pagos a título de Auxílio-Refeição e de Auxílio-Transporte nas despesas de pessoal e respectivos encargos para fins da apuração do limite dos reajustes quadrimestrais aos servidores públicos, com aplicação retroativa.

2)      Os auxílios (alimentação, refeição, transporte) têm natureza indenizatória, não estando incluídos em quaisquer espécies remuneratórias a que alude o art. 18 da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

3)      Retroatividade da lei que viola o princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal)

4)       Parecer pela admissão e acolhimento parcial do incidente de inconstitucionalidade.

 

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

 

         Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 8ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da Apelação Cível nº 0046244-42.2011.8.26.0053 da 8ª Vara da Fazenda Pública da Capital, figurando como Relatora a Desembargadora Cristina Cotrofe.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade do art. 19 da Lei nº 14.658/2007, do Município de São Paulo, por violação aos princípios constitucionais da exclusividade orçamentária e da segurança jurídica, tendo ficado consignado no acórdão o seguinte:

“(...)

Contudo, vislumbra-se que a aplicação retroativa do artigo 19 da Lei nº 14.658/2007 causa afronta aos princípios constitucionais da exclusividade orçamentária e da segurança jurídica, conforme manifestação do Tribunal de Contas do Munícipio de São Paulo de fls.105/110.

Ademais, a Lei de Responsabilidade Fiscal nº 101/2001 ao definir o conceito de despesas de pessoal não incluiu as parcelas de natureza indenizatória, que é o caso do auxílio-refeição e auxílio-transporte de acordo com o entendimento do E. Órgão Especial:

(...)”

É o relato do essencial.

O artigo 19 da Lei nº 14.658/2007, do Município de São Paulo, tem a seguinte redação:

“Art. 19. O montante pago a título de Auxílio-Refeição e Auxílio-Transporte será computado na apuração das despesas de pessoal e respectivos encargos, para efeito do disposto no inciso II do art. 4º da Lei nº 13.303, de 18 de janeiro de 2002, desde a vigência da Lei nº 11.722, de 13 de fevereiro de 1995.”

Não se vislumbra no dispositivo legal transcrito ofensa ao princípio da exclusividade orçamentária (art. 165, § 8º, da Constituição Federal).

O princípio da exclusividade decorre do abuso que se verificava na votação dos orçamentos durante a República Velha, quando, por meio de emendas à proposta do Executivo, deputados e senadores introduziam na lei orçamentária matérias absolutamente estranhas ao direito financeiro – o que gerava as chamadas caudas orçamentárias ou orçamentos rabilognos, na expressão de Ruy Barbosa. O princípio deve ser entendido hoje como meio de evitar que se incluam na lei orçamentária normas relativas a outros campos jurídicos, tais como as que modificam ou ampliam, por exemplo, o código civil, o Código Comercial e a legislação de pessoal. Esse é o objetivo do princípio da exclusividade, que não pode significar impedimento de inclusão de conteúdo programático. (Da Silva, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: 8ª Ed., Malheiros, 2012, pag. 706).

No caso dos autos não se tratando de lei orçamentária, não se pode cogitar ofensa ao princípio da exclusividade (art. 165, § 8º, da Constituição Federal).

Importante, porém ressaltar que o art. 18 da Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, define quais são os gastos que compõe a despesa com pessoal, ao dispor que:

“Art. 18. Para os efeitos desta Lei Complementar, entende-se como despesa total com pessoal: o somatório dos gastos do ente da Federação com os ativos, os inativos e os pensionistas, relativos a mandatos eletivos, cargos, funções ou empregos, civis, militares e de membros de Poder, com quaisquer espécies remuneratórias, tais como vencimentos e vantagens, fixas e variáveis, subsídios, proventos da aposentadoria, reformas e pensões, inclusive adicionais, gratificações, horas extras e vantagens pessoais de qualquer natureza, bem como encargos sociais e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência.”

Tanto auxílio-refeição quanto o auxílio-transporte são indenizações cuja finalidade é ressarcir despesas a que o servidor seja obrigado em razão do serviço.

Referidas verbas, em razão da natureza jurídica indenizatória, não se incorporam à remuneração, não repercutem no cálculo dos benefícios previdenciários e não estão sujeitas ao imposto de renda e nem mesmo se enquadram em quaisquer espécies remuneratórias a que alude o art. 18 da Lei Complementar nº 101/2000.

Desta forma, o confronto do art. 19 da Lei nº 14.658/2007, do Município de São Paulo, seria com legislação infraconstitucional, não podendo dar ensejo a presente arguição.

De qualquer forma, o dispositivo legal em análise viola o princípio da segurança jurídica em razão de sua imposição retroativa.

A noção de ato jurídico perfeito e direito adquirido emergem do anseio por segurança jurídica. Lembra CELSO RIBEIRO BASTOS “ser característica das leis a virtualidade de serem alteradas a qualquer tempo, nada do que se adquiriu no passado poderia nos proporcionar a certeza de que manteríamos no futuro”, todavia, continua ele, a “condição humana, por falta de segurança jurídica, ficaria insuportável” (Direito público, estudos e pareceres, São Paulo: Saraiva, p. 126).

Referido jurista adverte ainda que o direito adquirido – e, por extensão, o ato jurídico perfeito - “constitui-se num dos recursos de que se vale a Constituição para limitar a retroatividade da lei. Com efeito, esta está em constante mutação; o Estado cumpre o seu papel exatamente na medida em que atualiza as suas leis. No entanto, a utilização da lei em caráter retroativo, em muitos casos, repugna porque fere situações jurídicas que já tinham por consolidadas no tempo, e esta é uma das fontes principais da segurança do homem na terra” (Bastos, Celso Ribeiro – Dicionário de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 1994, p. 43).

A diversidade das fórmulas encontradas para tratar da retroatividade da lei não abala uma certeza oportunamente descartada na advertência do ilustre jurista: não se nega ao Estado o direito de revogar uma lei; o que se veda é a possibilidade de ver-se o indivíduo desprotegido da lei que o beneficiou. E sentencia o emérito publicista: “Não é dado ao Poder Público conferir um direito para quem cumpriu um fato no passado e depois revogá-lo com caráter retroativo”. E ainda acrescenta: “Não pode, portanto, impedir que se frua de um direito que já estava incorporado, sob pena de estar praticando uma arbitrariedade passível de reparação judicial” (Direito público, ob.cit., pág. 129).

Por essas razões, a cláusula pétrea em questão, obra do Poder Constituinte Originário, deve ser respeitada pelo Poder Reformador, e toda emenda que venha a desrespeitá-la será inconstitucional.

E ninguém duvida de que se configura como uma típica garantia individual a regra constante do inc. XXXVI do art. 5º da Constituição de 1988, segundo o qual a lei não pode prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Na hipótese dos autos, abstraindo-se da legalidade do dispositivo em face da Lei de Responsabilidade Fiscal, forçoso reconhecer que sendo a regra instituída válida, sua aplicação retroativa sacrificaria direitos e situação jurídica dos servidores já consolidadas no tempo, em afronta ao princípio da segurança jurídica.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e de seu acolhimento parcial, declarando a inconstitucionalidade da expressão desde a vigência da Lei nº 11.722, de 13 de fevereiro de 1995”, do art. 19 da Lei nº 14.658/2007, do Município de São Paulo.

 

                        São Paulo, 12 de dezembro de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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