Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0204469-91.2012.8.26.0000

Órgão Especial

Suscitante: 18ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça

Apelantes: (...)

Apelada: Prefeitura Municipal de Mogi das Cruzes

Objeto: Lei nº 6.107, de 11 de janeiro de 2008, do Município de Mogi das Cruzes.

 

Ementa:

1)      Incidente de inconstitucionalidade. Lei nº 6.107, de 11 de janeiro de 2008, do Município de Mogi das Cruzes que obriga os estabelecimentos bancários a disponibilizarem um terminal eletrônico para os portadores de necessidades especiais visuais, e dá outras providências. Alegação de inconstitucionalidade por afronta ao disposto nos arts. 22, VI e VII, 48, XIII e 192 da CF, da Constituição Federal.

2)      Compete à União a regulação e a supervisão das atividades bancárias (CF, art. 48, XIII, Lei nº 4.595/64.

3)      Lei local que disciplina de forma específica a prestação de serviços bancários aos portadores de deficiência visual. Produção normativa local não autorizada pela competência suplementar do Município, prevista no art. 30, II da CF.

4)      Inconstitucionalidade. Violação do princípio federativo (CF, art. 1º), decorrente da repartição constitucional de competências, e do art. 48, XIII da Constituição Federal.

5)      Parecer pela admissão e acolhimento do incidente de inconstitucionalidade.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de arguição de inconstitucionalidade suscitada pela C. 18ª Câmara de Direito Público, quando do julgamento da apelação cível nº 0027772-10.2009.8.26.0361 da Vara Da Fazenda Pública de Mogi das Cruzes, na sessão realizada em 10 de maio de 2012, figurando como Relator o Des. Carlos Giarusso Santos.

A Col. Câmara argui a inconstitucionalidade da Lei nº 6.107, de 11 de janeiro de 2008, do Município de Mogi das Cruzes, que obriga os estabelecimentos bancários a disponibilizarem um terminal eletrônico para os portadores de necessidades especiais visuais, e dá outras providências.

Em conformidade com o v. acórdão (fls. 166/173), a inconstitucionalidade do referido ato normativo decorreria de sua contrariedade aos arts. 22, VI e VII, 48, XIII e 192 da Constituição Federal, tendo ficado consignado no voto do relator o seguinte:

“(...)

... a matéria em questão, qual seja, a disponibilização de caixas eletrônicos que imprimam extratos bancários em braile, destinados ao atendimento dos deficientes visuais, é, inequivocadamente, de interesse nacional, não se tratando de assunto de peculiar interesse municipal.

Os municípios possuem competência para legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I, da CF), suplementando a legislação federal e a estadual no que couber (art. 30, II, da CF).

Outrossim, cumpre destacar que, a competência suplementar do Município, “só pode verificar-se em torno de assuntos que sejam também de interesse local, além de sua dimensão federal ou estadual” (José Afonso da Silva, Comentário Contextual à Constituição, 6ª. Edição, Malheiros Editores, 2009, p. 309).

Cumpre observar que a Constituição Federal atribuiu a competência à União, aos Estados e ao Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre a proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência (art. 24, XIV), além da competência comum para cuidarem da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência (art. 23, II).

Ocorre que a competência para disciplinar as atividades das instituições financeiras é da União (arts. 22, VI e VII, 48, XIII e 192 da CF), em consonância com as diretrizes dos seus órgãos normativos instituídos pela Lei Federal nº 4.595/64 (Conselho Monetário Nacional - CMN e Banco Central do Brasil - BACEN).

Ademais, a acessibilidade em caixa de auto-atendimento bancário é regulamentada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT NBR 15250:2005, em harmonia com outras referências normativas federais (Leis Federais 10.048/00 e 10.098/00 e Resoluções do CMN 2.878/01 e 2.892/01 revogadas pela Resolução nº 3.694/09), que também dispõem sobre o atendimento à pessoas deficientes ou com necessidades especiais e, não impõem nenhuma obrigatoriedade de fornecimento de extratos bancários em braile emitidos em caixa eletrônico (cf. fls. 84/104).

Desse modo, como se observa, ao obrigar, sob pena de multa diária, os estabelecimentos bancários à disponibilizarem “terminal eletrônico com teclado e que emita extratos e demais serviços impressos em braile à disposição de seus usuários, para que os portadores de necessidades especiais visuais possam utilizar, sem o auxílio de qualquer pessoa.”, a lei Municipal estabelece regras relativas à atividade da instituição financeira, extrapolando os limites de sua competência, eis que, como já salientado, é competência privativa da União legislar sobre as atividades das instituições financeiras (arts. 22, VI e VII, 48, XIII e 192 da CF), o que acarreta a inconstitucionalidade da exigência em questão.”

É o relato do essencial.

O incidente deve ser conhecido e merece acolhimento.

A Lei nº 6.107, de 11 de janeiro de 2008, do Município de Mogi das Cruzes, que “Obriga os estabelecimentos bancários a disponibilizar um terminal eletrônico para os portadores de necessidades especiais visuais, e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1° Ficam os estabelecimentos bancários obrigados a disponibilizar, em suas agências centrais do município, um terminal eletrônico com teclado e que emita extratos e demais serviços impressos em braile à disposição de seus usuários, para que os portadores de necessidades especiais visuais possam utilizar, sem o auxilio de qualquer pessoa.

Art. 2° Deve o terminal mencionado no art. 1°:

I – estar posicionado em local seguro e separado dos demais terminais, para o fim de garantir segurança integral aos usuários especiais;

II – atender a todas as exigências da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), inclusive dispor de fone de ouvido;

III – ser abastecido com notas de um único valor;

IV – ser instalado sem qualquer ônus para os clientes.

Art. 3° Os estabelecimentos bancários de que trata esta lei deverão ser adaptados às suas disposições no prazo de 120 (cento e vinte) dias, a contar de sua publicação.

Art. 4° O não cumprimento ao disposto na presente lei ensejará multa diária no valor de R$ 1.000,00 (um mil reais), até a solução da desconformidade.

Parágrafo único. A multa de que trata o “caput” deste artigo será atualizada anualmente pela variação da UFM (Unidade Fiscal do Município), acumulada no exercício anterior, sendo que, no caso de extinção deste índice, será adotado outro índice criado pela legislação municipal e que reflita a perda do poder aquisitivo da moeda.

Art. 5° As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas, se necessário.

Art. 6° Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

O diploma legislativo do Município em referência não se reveste de legitimidade jurídico-constitucional, pois é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo que se manifesta na repartição constitucional de competências, (art. 1º da Constituição Federal).

O ato normativo impugnado disciplinou aspectos relativos à prestação de serviços bancários e operações financeiras ao obrigar a instalação pelas agências bancárias do Município de terminal eletrônico com teclado em braile que emita extratos em braile e possibilite demais serviços à disposição de deficientes visuais.

Integram as atividades bancárias operações de emissão de extrato, consulta a saldos, saques, depósitos, pagamentos e outras operações disponibilizadas em terminais eletrônicos.

Compete à União a regulação e a supervisão das atividades bancárias, conforme se extrai dos seguintes dispositivos da Constituição Federal:

“Art. 21 – Compete a União:

(...)

VIII - administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada;

(...)

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(...)

VI - sistema monetário e de medidas, títulos e garantias dos metais;

VII - política de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores;

(...)

Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:

(...)

XIII - matéria financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações;”

De outro lado, a Constituição Federal, ao dispor sobre o sistema financeiro nacional, estabelece que:

“Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.”

De forma geral, abrangendo a atividade de prestação de serviços bancários, a Lei nº 10.048/00 disciplinou a prioridade no atendimento a pessoas portadoras de deficiência, e a Lei nº 10.098/00, estabeleceu normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.

Não há qualquer normatização que estabeleça as condições específicas de operações bancárias envolvendo portadores de deficiência visual.

Isto não significa que o Município, a pretexto de legislar sobre interesse local ou de suplementar a legislação federal (CF, art. 30, I, II), discipline a matéria, uma vez que estaria invadindo área privativa da União, a quem compete regular a atividade bancária, a constituição e o funcionamento das instituições financeiras.

Em relação a esta área (Direito Bancário), cabe à União:

1)     a organização do sistema bancário e financeiro através do estabelecimento das condições de acesso à atividade bancária, sua fiscalização e supervisão, bem como as diversas regras relacionadas ao assunto;

2)    a regulação da atividade das instituições de crédito e sociedades financeiras

 São duas as principais vertentes dentro da matéria, a saber, o Direito Bancário Institucional, que trata dos bancos e seu comportamento enquanto instituições públicas ou privadas, e o Direito Bancário Material, que aborda o funcionamento de sociedades financeiras e instituições de crédito.

No Brasil, temos como importante instrumento de normatização e estudo a Lei nº 4.595/64, que dispõe sobre o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central da República do Brasil e todas as demais instituições financeiras públicas e privadas. Esse diploma legal, com valor de Lei Complementar, dispõe que:

"Art. 4º Compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo Presidente da República:

(...)

VIII - regular a constituição, funcionamento e fiscalização dos que exercerem atividades subordinadas a esta lei, bem como a aplicação das penalidades previstas;"

Por outro lado, o inciso IX, do art. 10, da Lei nº 4.595/64, enfatizando seu dever de cumprir as leis federais e as normas do Conselho Monetário Nacional, atribuiu ao Banco Central competências privativas entre as quais “exercer a fiscalização das instituições financeiras e aplicar as penalidades previstas”.

Desta forma, a União, exercendo sua competência privativa para legislar sobre matéria financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações (CF, art. 48, XIII), estruturou o sistema financeiro nacional, atribuindo a determinados órgãos atribuições reguladoras e fiscalizatórias.

Evidencia-se, portanto, que a Lei Municipal em questão, além de usurpar competência da União (CF, art. 48, XIII), conflita com a atividade regulatória do Conselho Monetário Nacional e fiscalizatória do Banco Central.

De outro lado, o interesse nacional em disciplinar a forma de realização de operações bancárias envolvendo pessoas portadoras de deficiência visual sobrepuja o interesse meramente local.

Por este motivo, não se pode cogitar de legítimo exercício da competência concorrente do Município de zelar pela proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência (CF, art. 23, II), sob pena de converter a competência suplementar do Município em competência concorrente em matéria alheia ao seu campo de atuação.

A competência suplementar do Município aplica-se, nos assuntos que são da competência legislativa da União ou dos Estados, àquilo que seja secundário ou subsidiário relativamente à temática essencial tratada na norma superior.

Não pode o legislador municipal, contudo, a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse local ou suplementar a legislação Federal ou Estadual de ordem geral, invadir a competência legislativa destes entes federativos superiores (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006).

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e da harmonia do Estado Federal.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre União, Estado e Município. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que a Lei nº 6.107, de 11 de janeiro de 2008, do Município de Mogi das Cruzes, violou a repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípio constitucional estabelecido.

Essa é a razão pela qual restou configurada, no caso, a ofensa ao disposto no art. 1º e no art. 48, XIII da Constituição Federal.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do conhecimento do incidente de inconstitucionalidade e de seu acolhimento, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 6.107, de 11 de janeiro de 2008, do Município de Mogi das Cruzes.

 

São Paulo, 7 de janeiro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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