Parecer em Incidente de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0205318-29.2013.8.26.0000

Suscitante: 6ª Câmara de Direito Público

 

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Incidente de Inconstitucionalidade. Lei n. 2.470, de 31 de março de 2011, do Município de Itirapina. Proibição de parada ou manobra de qualquer veículo ou composição ferroviária na linha férrea localizado do perímetro urbano, em especial nos trechos de passagem de nível com vias públicas. Invasão da competência normativa federal. É inconstitucional lei municipal que inscreve limitações ao trânsito ferroviário em seu território em face da competência reservada à União nos arts. 21, XII, d, e 22, XI, da Constituição Federal, à vista da falta de predominância do interesse local.

 

 

 

 

Eminente Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

1.                No julgamento de apelação interposta contra respeitável sentença denegatória de mandado de segurança por (...) contra o Prefeito do Município de Itirapina, a colenda 6ª Câmara de Direito Público suscita incidente de inconstitucionalidade da Lei n. 2.470, de 31 de março de 2011, do Município de Itirapina, por sua incompatibilidade com o art. 22, XI, da Constituição Federal (fls. 286/291) que foi processado com manifestação da apelante (fls. 322/332) e a abstenção da defesa do ato normativo pelo douto Procurador-Geral do Estado (fls. 337/338), registrado o decurso in albis do prazo assinado à Prefeitura Municipal de Itirapina (fl. 339).

2.                É o relatório.

3.                Tem o seguinte teor a Lei n. 2.470, de 31 de março de 2011, do Município de Itirapina, proibitiva de parada ou manobra de qualquer veículo ou composição ferroviária na linha férrea localizado do perímetro urbano, em especial nos trechos de passagem de nível com vias públicas:

“Artigo 1º - Fica proibida a parada e/ou a realização de manobras de qualquer veículo ou composição ferroviária nos trechos da linha férrea com distância mínima de 200 metros de qualquer residência em perímetro urbano, em especial nos trechos de passagem de nível com vias públicas, no perímetro urbano do Município de Itirapina.

Parágrafo único – Em horário noturno, compreendido das 22h até as 06h do dia seguinte, e nos cruzamentos em nível a qualquer horário, em caso de descumprimento das normas estabelecidas no ‘caput’, o valor da multa será aplicado em dobro.

Artigo 2º - Nos casos de haver necessidade justificada de interrupções nos trechos da linha férrea, que tenham passagem de nível com vias públicas, deverão ser comunicadas pela concessionária do transporte ferroviário à Prefeitura de Itirapina com antecedência mínima de 48 (quarenta e oito) horas.

Artigo 3º - A infração ao disposto nesta lei acarretará ao infrator as seguintes penalidades:

I – Notificação de empresa concessionária quanto à proibição de que trata a presente Lei, uma única vez, que terá prazo de 60 (sessenta) dias para se adequar.

II – Multa de 500 (quinhentas) UFESPs, a cada infração cometida, e inscrição em dívida ativa, no caso de não pagamento.

III – Multa em dobro nos seguintes casos:

a) paralisação superior a 30 minutos;

b) paralisação em horários noturnos, compreendidos entre às 22h00 e 06h00.

c) paralisação dos cruzamentos em nível em qualquer horário.

IV) A multa poderá ser aplicada por qualquer agente fiscalizador Municipal, desde que constatada a infração, por meios que entender substancialmente comprovada;

Artigo 4º - Eventuais despesas decorrentes da presente Lei serão suportadas pelas dotações próprias consignadas no Orçamento do Município;

Artigo 5º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

4.                O conflito de interesses travado no processo coloca em cena tensão no princípio federativo.

5.                A Constituição Federal atribui à União competência executiva para prestação dos serviços de transporte ferroviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais ou que transponham os limites de Estado ou Território (art. 21, XII, a) e arrola na sua competência normativa privativa a disciplina de trânsito e transporte (art. 22, XI), enquanto assinala aos Municípios legislar sobre assunto de interesse local e suplementar a legislação federal e estadual no que couber (art. 30, I e II).

6.                Decisivamente, não tem o Município, a pretexto da autonomia local, competência para a disciplina do trânsito ferroviário ainda que se desenvolva sob seu território.

7.                Em atenção à forma federativa de Estado, as competências são comuns ou consignadas aos entes federados conforme a preponderância do interesse, pois, não seria confortável ao indivíduo que precisa de segurança jurídica submeter-se a várias ordens legislativas sobre idêntica matéria, nem seria aconselhável ao bom funcionamento da nação cuja meta é o interesse público.

8.                 Evitar conflitos – eis a chave do princípio federativo. Por isso, é arquitetada na Constituição a discriminação de competências entre os atores da Federação.

9.                Ao Município não é consentido, à luz do interesse local ou da suplementação da legislação alheia, livremente penetrar, direta ou indiretamente, na esfera de competência normativa federal ou estadual como a que trata dos serviços ferroviários, para fins de neutralização daquela.

10.              Normas atinentes a trânsito e transporte são da alçada privativa da União, como emerge do inciso XI do art. 22 da Constituição Federal, e essa esfera não podem ser molestadas por uma excessiva dimensão do interesse local, sobretudo se sopesado que a autonomia municipal exercida pela lei impugnada causou embaraço a serviço público igualmente reservado à União.

11.              Ausente o traço nuclear da autonomia municipal, pois, a falta de predominância do interesse local é notória.

12.              Interesse todos os entes federativos têm. Porém, a medida do interesse local para balizamento da autonomia municipal é a sua predominância em face dos interesses federais (centrais) ou estaduais (regionais), o que não corresponde à exclusividade, pois, como acentua Jair Eduardo Santana:

“O traço que torna diferente o interesse local do interesse geral é a predominância, jamais a exclusividade (...)

Em conclusão, o interesse local previsto na Carta atual somente pode ser entendido como sendo aquele que se refere, inicial e diretamente ao agrupamento humano local, mas que também deve atender aos interesses do Estado e de todo o país” (Competências legislativas municipais, Belo Horizonte: Del Rey, 1993, pp. 99, 102).

13.              Resume Fernanda Dias Menezes de Almeida que:

“(...) já se solidificara toda uma construção doutrinária, avalizada pela jurisprudência de nossos Tribunais, no sentido de fazer coincidir o peculiar interesse com o interesse predominante do Município” (Competências na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2000, 2ª ed., p. 114).

14.              E mesmo a competência suplementar não é ilimitada, pois, se ela se habilita quando necessário ao exercício de competências materiais (comuns ou privativas), exige-se a pertinência ao círculo do interesse local, como salienta a ilustre Professora das Arcadas ao explicar que:

“(...) só cabe a suplementação em assuntos que digam respeito ao interesse local. Nenhum sentido haveria, por exemplo, em o Município suplementar legislação federal relativa ao comércio exterior ou relativa à nacionalidade ou naturalização” (Competências na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2000, 2ª ed., pp. 156-157).

15.              O Supremo Tribunal Federal impõe caráter restritivo à produção normativa para além da esfera federal em matéria de trânsito, como, ad esempia, a obrigação contida em lei estadual de uso de cinto de segurança em veículos do transporte coletivo (ADI 874-BA) ou do trânsito de veículos com faróis acesos nas rodovias estaduais (ADI 3.055-PR), e a disciplina do serviço de transporte individual em ciclomotores e motocicletas (ADI 3.135-PA) ou do transporte de trabalhadores (ADI 403-SP). Neste sentido, ainda:

“INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Arts. 1º e 2º da Lei nº 3.680/2005, do Distrito Federal. Competência legislativa. Trânsito. Serviço público. Transporte coletivo urbano. Veículos. Provisão de dispositivos redutores de estresse e cansaço físico a motoristas e cobradores. Obrigação das permissionárias de garantir descanso e prática de exercícios físicos. Inadmissibilidade. Competências legislativas exclusivas da União. Ofensa aparente ao art. 22, incs. I e XI, da CF. Liminar concedida. Precedentes. Aparenta inconstitucionalidade, para efeito de liminar, a lei distrital ou estadual que dispõe sobre obrigatoriedade de equipar ônibus usados no serviço público de transporte coletivo com dispositivos redutores de estresse a motoristas e cobradores e de garantir-lhes descanso e exercícios físicos” (RTJ 207/1.072).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO ESTADO DE MINAS GERAIS. LICENCIAMENTO DE MOTOCICLETAS PARA TRANSPORTE DE PASSAGEIROS (‘MOTOTÁXI’). COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL RECONHECIDA. I - Competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte (CF, art.22, XI). II - Exercício de atribuição pelo Estado que demanda autorização em lei complementar. III - Inexistência de autorização expressa quanto ao transporte remunerado de passageiros por motocicletas. IV - Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da lei mineira 12.618/97” (RT 857/168).

16.              Essas premissas são extensíveis ao exercício da competência normativa municipal, como decidido:

“Recurso extraordinário. - A competência para legislar sobre trânsito é exclusiva da União, conforme jurisprudência reiterada desta Corte (ADI 1.032, ADIMC 1.704, ADI 532, ADI 2.101 e ADI 2.064), assim como é a competência para dispor sobre a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança (ADIMC 874). - Ora, em se tratando de competência privativa da União, e competência essa que não pode ser exercida pelos Estados se não houver lei complementar - que não existe - que o autorize a legislar sobre questões específicas dessa matéria (artigo 22 da Constituição), não há como pretender-se que a competência suplementar dos Municípios prevista no inciso II do artigo 30, com base na expressão vaga aí constante ‘no que couber’, se possa exercitar para a suplementação dessa legislação da competência privativa da União. - Ademais, legislação municipal, como ocorre, no caso, que obriga o uso de cinto de segurança e proíbe transporte de menores de 10 anos no banco dianteiro dos veículos com o estabelecimento de multa em favor do município, não só não diz respeito, obviamente, a assunto de interesse local para pretender-se que se enquadre na competência legislativa municipal prevista no inciso I do artigo 30 da Carta Magna, nem se pode apoiar, como decidido na ADIMEC 874, na competência comum contemplada no inciso XII do artigo 23 da Constituição, não estando ainda prevista na competência concorrente dos Estados (artigo 24 da Carta Magna), para se sustentar que, nesse caso, caberia a competência suplementar dos Municípios. Recurso extraordinário não conhecido, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei 11.659, de 4 de novembro de 1994, do Município de São Paulo” (STF, RE 227.384-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, 17-06-2002, v.u., DJ 09-08-2002, p. 68).

17.              E também se pronuncia desfavoravelmente à constitucionalidade de lei estadual que reserva espaço para o tráfego de certos veículos nas vias públicas de grande circulação:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL. RESERVA DE ESPAÇO PARA O TRÁFEGO DE MOTOCICLETAS EM VIAS PÚBLICAS DE GRANDE CIRCULAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. ART. 22, XI DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. A lei impugnada trata da reserva de espaço para motocicletas em vias públicas de grande circulação, tema evidentemente concernente a trânsito. É firme a jurisprudência desta Corte no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade formal de normas estaduais que tratam sobre trânsito e transporte. Confira-se, por exemplo: ADI 2.328, rel. min. Maurício Corrêa, DJ 17.03.2004; ADI 3.049, rel. min. Cezar Peluso, DJ 05.02.2004; ADI 1.592, rel. min. Moreira Alves, DJ 03.02.2003; ADI 2.606, rel. min. Maurício Corrêa, DJ 07.02.2003; ADI 2.802, rel. Min. Ellen Gracie, DJ 31.10.2003; ADI 2.432, rel. Min. Eros Grau, DJ 23.09.2005, v.g.. Configurada, portanto, a invasão de competência da União para legislar sobre trânsito e transporte, estabelecida no art. 22, XI, da Constituição federal. Ação julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei estadual paulista 10.884/2001” (STF, ADI 3.121-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 17-03-2011, v.u., DJe 15-04-2011).

18.              São inconfundíveis os círculos da competência normativa federal sobre trânsito e da competência normativa municipal para organização e fiscalização do trânsito no seu território. Remanesce espaço normativo ao Município para limitações ao tráfego de veículos em suas vias públicas em atenção às peculiaridades locais e desde que não neutralizada a legislação federal.

19.              Ora, no caso, não é possível afirmar-se que o Município de Itirapina se conteve aos limites de sua competência, pois, a norma por ele expedida intervém diretamente em serviço público federal e bem público federal. Deveras, sendo titular desses serviço e bem públicos, somente a União detém competência para sua disciplina, motivo pelo qual também se afigura ofensa ao art. 21, XII, d, da Carta Magna.

20.              Face ao exposto, opino pela declaração de inconstitucionalidade da Lei n. 2.470, de 31 de março de 2011, do Município de Itirapina.

                   São Paulo, 07 de fevereiro de 2014.

 

 

 

 

 

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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