Código de Processo Penal, art. 28

Protocolado n.º 118.349/14

Autos n.º 4.005/14 – MM. Juízo do DIPO 4 (Comarca da Capital)

Indiciado: (...)

Assunto: revisão de pedido de arquivamento de inquérito policial

 

EMENTA: CPP, ART. 28. ARQUIVAMENTO FUNDADO NA ATIPICIDADE DO ATO, EM FACE DA NORMA DE EXCLUSÃO DA ADEQUAÇÃO TÍPICA PREVISTA NO ART. 17 DO CP (CRIME IMPOSSÍVEL) E NO RECONHECIMENTO DA INSIGNIFICÂNCIA DO FATO. FURTO SIMPLES TENTADO (CP, ART. 155, “CAPUT”, C.C. ART. 14, II). SUJEITO ATIVO OBSERVADO POR FUNCIONÁRIO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL, QUE SUSPEITOU DE SUA ATITUDE. INDIVÍDUO VISTO EM OUTRAS OPORTUNIDADES NO LOCAL EM SITUAÇÃO SIMILAR. MEIO EXECUTÓRIO RELATIVAMENTE INEFICAZ. “CONATUS PROXIMUS” CONFIGURADO. INEXISTÊNCIA, ADEMAIS, DE INDUZIMENTO POR PARTE DOS REPRESENTANTES DO SUJEITO PASSIVO. DISTINÇÃO ENTRE FLAGRANTE PREPARADO (CRIME IMPOSSÍVEL) E ESPERADO (CRIME TENTADO OU CONSUMADO). OBJETO MATERIAL AVALIADO EM R$ 200,00 (DUZENTOS REAIS). VALOR SIGNIFICATIVO DA “RES FURTIVAE”. VETORES DA INSIGNIFICÂNCIA AUSENTES, EM PARTICULAR, EM DECORRÊNCIA DA REINCIDÊNCIA EM DELITOS PATRIMONIAIS. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA QUE SE IMPÕE.

1.     O sujeito foi surpreendido na saída do estabelecimento, pelo gerente da empresa, levando consigo um par de tênis, sem efetuar o pagamento pela mercadoria. A res furtivae encontrava-se oculta sob suas vestes. O averiguado admitiu o fato em seu interrogatório policial, confessando que pretendia revender o bem, avaliado em R$ 200,00 (duzentos reais). Nota-se, destarte, que o investigado deu início à execução do furto, somente não o consumando por circunstâncias alheias à sua vontade, consistentes na vigilância efetuada, passivamente e à distância, por funcionários. Não há falar-se em crime impossível, porquanto o modus operandi não se revela absolutamente ineficaz, mas relativamente inapto à consumação do delito. Frise-se, ainda, que inexistiu qualquer induzimento por parte do ofendido, de modo a configurar flagrante preparado ou provocado.

2.     Não é o caso, outrossim, de aplicação do princípio da insignificância. O Supremo Tribunal Federa, como é cediço, fixou entendimento no sentido de que referido princípio tem sua incidência condicionada à presença de quatro vetores: a inexpressividade da lesão ao bem jurídico; a ausência de periculosidade social da ação; a falta de reprovabilidade da conduta; a mínima ofensividade do comportamento do agente (cf. HC n. 94.931, rel. Min. Ellen Gracie). No caso em tela, mostram-se ausentes as diretrizes assinaladas, em particular o elevado grau de reprovabilidade do comportamento do indiciado e a periculosidade social da conduta, em virtude da reiteração de atos similares (confirmados por testemunhas e por seus antecedentes criminais, indicando reincidência em crimes patrimoniais).

Solução: designa-se outro promotor de justiça para oferecer denúncia e prosseguir no feito em seus ulteriores termos.

 

 

 

Cuida-se de investigação penal instaurada a partir da lavratura de auto de prisão em flagrante, visando à apuração do delito de furto simples tentado (art. 155, caput, c.c. art. 14, II, do CP) cometido, em tese, por (...).

Encerradas as providências inquisitivas, a Douta Promotora de Justiça, em judiciosa manifestação, requereu o arquivamento do caso, apontando a atipicidade da conduta por duas razões: a caracterização do crime impossível, porquanto o comportamento do sujeito fora monitorado por funcionário do estabelecimento empresarial, e em virtude da aplicabilidade ao fato do princípio da insignificância (fls. 39/44).

O MM. Juiz, discordando de tal solução, encaminhou a questão para análise desta Procuradoria-Geral de Justiça, nos termos do art. 28 do CPP (fls. 45/48).

Eis a síntese do necessário.

A razão se encontra com o Digníssimo Magistrado, com a devida vênia da Ilustre Representante Ministerial; senão, vejamos.

Segundo consta dos autos, no dia 28 de julho de 2014, o increpado foi abordado pelo gerente do estabelecimento empresarial situado junto à Rodovia SP-270, altura do n.º 6.008, Bairro Rio Pequeno, nesta Capital, na saída da loja.

Com o autor, encontrou-se um par de tênis, escondido na calça que trajava.

O suspeito, deve-se citar, já fora visto no local em outras ocasiões em atitude suspeita.

Acionou-se, a partir daí, a Polícia Civil (fls. 03/05).

O indiciado, em seu interrogatório, confirmou a atitude imputada, asseverando que iria vender o bem (fl. 06).

Os calçados, apreendidos, foram avaliados no montante de R$ 200,00 (duzentos reais, consoante o auto de fl. 10).

Pois bem.

Com a devida vênia, as teses nas quais fundamentou o competente Membro do Parquet seu pleito de arquivamento não vem sendo aceitas por esta Procuradoria-Geral de Justiça, em que pese suas judiciosas razões.

Pondere-se, inicialmente, que a circunstância de o representante da empresa vítima não ter deixado de exercer vigilância sobre seu patrimônio e as atitudes do investigado não se mostra apta a excluir a adequação típica do delito tentado.

Com efeito, o crime impossível pressupõe absoluta ineficácia do meio executório ou impropriedade do objeto material.

No caso, o objeto material era idôneo e o meio executório, eficaz.

 A infração não se consumou somente porque o gerente da sociedade abordou o sujeito, já conhecido no local por seus atos anteriores, na saída da loja, quando levava consigo a mercadoria sem pagar por elas.

Não há como se vislumbrar o argumento de que é impossível a consumação do fato. São incontáveis os casos que, em circunstâncias semelhantes, resultam na efetiva retirada dos bens. O próprio sujeito ativo, dado o relato dos funcionários, já pode ter logrado êxito em fazê-lo em oportunidades anteriores.

Tal tese, ademais, não possui aceitação dos nossos tribunais. Nesse sentido:

 

HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO CONTRA ACÓRDÃO DE APELAÇÃO. SUCEDÂNEO RECURSAL INOMINADO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. FURTO. UM CONSUMADO E UM TENTADO CONTRA O MESMO ESTABELECIMENTO COMERCIAL. CONTINUIDADE DELITIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO INCIDÊNCIA. CRIME IMPOSSÍVEL. NÃO OCORRÊNCIA PELA SIMPLES EXISTÊNCIA DE VIGILÂNCIA POR SEGURANÇAS E CÂMERAS. CONFISSÃO NO INQUÉRITO CORROBORADA PELA PROVA JUDICIA. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE PATENTE. NÃO CONHECIMENTO.

...

2. Consoante entendimento jurisprudencial, o “princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentaridade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material (...) Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento  e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.” (HC Nº 84.412-0/SP, STF, Min. Celso de Mello, DJU 19.11.2004).

3. No caso, o paciente furtou e tentou furtar, em continuidade delitiva, o mesmo supermercado, o que mostra reprovabilidade suficiente para a tipicidade material, não havendo como reconhecer o caráter bagatelar do comportamento imputado, pois houve, em tal contexto, afetação do bem jurídico tutelado, ainda que sejam duas garrafas de uísque, avaliadas, cada uma, em R$ 41,00.

4. A existência de sistema de monitoramento eletrônico ou a observação dos passos do praticante do furto pelos seguranças da loja não rende ensejo, por si só, ao automático reconhecimento da existência de crime impossível, porquanto, mesmo assim, há possibilidade de o delito ocorrer. Precedentes das Turmas componentes da Terceira Seção.

(...)

7. Ordem não conhecida.”

(STJ, HC n. 192.539/SP, rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, 6.ª Turma, j. em 24/09/2013, DJe de 03/10/2013; grifo nosso).

                                     

Poder-se-ia cogitar de tentativa inidônea se o agente fosse induzido à prática criminosa pelo sujeito passivo, como que numa farsa posta em cena para incriminá-lo.

Inexistiu, todavia, qualquer tipo de preparação do flagrante pelos funcionários da empresa, senão mera observação, sem qualquer interferência na conduta consciente e voluntária do increpado.

Por outro lado, reconhece-se que o valor do bem subtraído não se mostra expressivo; contudo, se aplicado o princípio da insignificância, resultando na atipicidade material da conduta, estar-se-ia estimulando o cometimento de infrações patrimoniais de bens de pequeno valor.

Admitir como atípicos comportamentos desse porte é, nas palavras do eminente Desembargador Francisco Bruno, agir como se o próprio Estado dissesse ao autor do fato: “Isto não é crime, o senhor está autorizado a fazê-lo novamente” (Apelação n.º 990.10.079006-4, j. em 29.7.10, 9.ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo).

Não se ignora, outrossim, a existência de posturas jurisprudenciais favoráveis ao referido princípio.

É de ver, todavia, que o próprio Supremo Tribunal Federal tem colocado limites à sua aplicação, ao exigir o cumprimento de quatro vetores para sua incidência, a saber: a inexpressividade da lesão ao bem jurídico; a ausência de periculosidade social da ação; a falta de reprovabilidade da conduta; a mínima ofensividade do comportamento do agente (cf. HC n.º 94.931, rel. Min. Ellen Gracie).

No caso em apreço, cuida-se de averiguado com histórico de atividades delituosas, de tal maneira que o reconhecimento da atipicidade do fato serviria de estímulo à que perpetrasse novas infrações.

Sua folha de antecedentes revela, nessa mesma linha, que ostenta numerosas passagens criminais por furtos, chegando a ser condenado e preso (fls. 16/31).

         Registre-se que há diversos julgados recentes do Colendo Tribunal de Justiça de São Paulo afastando a aplicação do princípio em casos semelhantes ao presente, como se nota no julgamento das Apelações ns. 0002124-36.2010.8.26.0347 (9.ª Câmara Criminal), 0049017-06.2010.8.26.0050 (15.ª Câmara Criminal), 0000674-22.2007.8.26.0587 (11.ª Câmara Criminal), 0096660-23.2011.8.26.0050 (10.ª Câmara Criminal), 0061013-64.2011.8.26.0050 (14.ª Câmara Criminal), 0004838-16.2008.8.26.0063 (5.ª Câmara Criminal).

Diante de tudo o quanto se expôs, designa-se outro promotor de justiça para oferecer denúncia e prosseguir nos ulteriores termos da ação penal.

Faculta-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n.º 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n.º 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006. Expeça-se portaria designando o substituto automático. Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 12 de agosto de 2014.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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