Código de Processo Penal, art. 28

 

Protocolado n.º 119.143/10

Inquérito Policial n.º 595/10 – MM. Juízo da Comarca de Itaí

Investigadas: (...) e (...)

Assunto: revisão de arquivamento de inquérito policial

 

 

 

 

EMENTA: CPP, ART. 28. FALSIDADE DE DOCUMENTO PÚBLICO (CP, ART. 297). REQUISITOS NECESSÁRIOS À SUA CONFIGURAÇÃO AUSENTES. AUSÊNCIA DE DANO POTENCIAL. FALSO GROSSEIRO. ARQUIVAMENTO MANTIDO.

1.     Segundo a doutrina, os elementos necessários à existência da falsidade documental podem ser decompostos em quatro requisitos: a) a alteração da verdade sobre fato juridicamente relevante (immutatio veritatis);  b) a imitação da verdade (immitatio veritatis); c) a potencialidade de dano (falsum punitur licet nemini damun inferret, sufficit enim quod potuit damnum inferre); d) o dolo (animus fallendi).

2.     Na hipótese dos autos, trata-se de advogadas que, utilizando-se de líquido corretor, modificaram o nome da parte em guia de recolhimento de depósito recursal no valor de R$ 50,00 (cinquenta reais). A taxa foi efetivamente recolhida, embora não utilizada no feito a que originariamente se destinava, em razão da celebração de acordo entre os litigantes.

3.     O comportamento sub examen não preenche as exigências da figura típica insculpida no art. 297 do CP. A conduta das investigadas não impôs à administração qualquer dano, sequer potencial, de vez que o valor do tributo foi adimplido. Além disso, o emprego de líquido corretivo torna o suposto falsum perceptível ictu oculi, razão pela qual se exclui a possibilidade de vislumbrar crime contra a fé pública. Acrescente-se, ainda, que a hipótese remanescente, qual seja, de delito patrimonial (estelionato), também fica desde logo afastada diante da ausência de qualquer prejuízo econômico ao Estado.

Solução: deixo de oferecer denúncia ou designar outro promotor de justiça para fazê-lo e insisto no arquivamento promovido.

 

Cuida-se de inquérito policial instaurado para apurar suposto crime de falsificação de documento público (CP, art. 297), praticado, em tese, por advogadas que, utilizando-se de líquido corretor, modificaram o nome da parte em guia de recolhimento de depósito recursal no valor de R$ 50,00 (cinquenta reais).

O competente Promotor de Justiça entendeu por bem requerer o arquivamento dos autos, porquanto lhe pareceu inexistir justa causa para embasar a ação penal (fls. 95/97).

A MM. Juíza, todavia, discordou da manifestação e aplicou o art. 28 do CPP (fls. 99/101).

É o relatório.

Com a devida vênia da Digna Magistrada, cremos que se mostra inviável o oferecimento de denúncia.

De acordo com SYLVIO DO AMARAL, os elementos necessários à existência da falsidade documental podem ser decompostos em quatro requisitos: a) a alteração da verdade sobre fato juridicamente relevante (immutatio veritatis);  b) a imitação da verdade (immitatio veritatis); c) a potencialidade de dano (falsum punitur licet nemini damun inferret, sufficit enim quod potuit damnum inferre); d) o dolo (animus fallendi)[1].

Cuida-se a immutatio veritatis da essência da infração, pois o que busca o falsário não é outra coisa senão alterar a verdade transposta num documento, modificando as condições relativas a um fato ou relação jurídica.

Complementando o requisito anterior, entende-se indispensável a imitação da verdade (immitatio veritatis), ou seja, o meio executivo do qual se vale o agente deve ter como alvo a reprodução do verdadeiro, de modo a iludir as pessoas. “Não se pode conceber a ideia de falsificação desacompanhada da ideia de semelhança, pois não se coaduna aquele conceito com o de dissemelhança[2]. A falsificação deve ser apta a enganar o homem médio; em outras palavras, deve se prestar a reproduzir, com alguma fidelidade, o documento original. De regra, se levará em conta como padrão para se aquilatar a aptidão ilusiva do falsum o critério de uma pessoa de mediana prudência e discernimento.

O falso grosseiro, qual seja, aquele incapaz de induzir ou manter alguém em erro, por ser perceptível a olho nu (ictu oculi), não constituirá jamais crime contra a fé pública, dada sua absoluta incapacidade de gerar risco à força probante dos documentos, embora possa configurar delito patrimonial (estelionato, por exemplo). É o entendimento consubstanciado na Súmula n. 73 do STJ: “A utilização de papel moeda grosseiramente falsificado configura, em tese, o crime de estelionato, da competência da Justiça Estadual”.

A immitatio veritatis e a potencialidade de dano guardam, como de resto todos os requisitos expostos, verdadeira interdependência.

Recorde-se, nesse sentido, que a lei penal visa tutelar a força probante dos documentos, por meio do reforço à crença de sua veracidade e autenticidade. Se a falsificação for grosseira ou inverossímil, o objeto produzido ou modificado será totalmente incapaz de enganar as pessoas, de modo que o agente não lesará a fé pública ou seu consectário, a segurança no tráfico jurídico probatório.

Note-se que não se exige dano efetivo, mas possibilidade de dano (essa é justamente a diferença entre os “crimes contra a fé pública” e os delitos contra o patrimônio que têm o falso como meio executivo). “Se a ação do falsário é dirigida no sentido de modificar o documento, visando primordialmente alterar suas qualidades intrínsecas ou extrínsecas como meio de prova de fato juridicamente relevante, basta que se criem condições de perigo de alteração da verdade a dano de outrem para a perfeita integração do crime consumado de falsidade; ao contrário, sempre que a enunciação mendaz feita através da falsificação não passa de meio ardiloso de que se vale o agente para ludibriar o ofendido, isto é, de instrumento material da fraude cometida, a figura delituosa (estelionato, sob qualquer de suas formas) se terá por meramente tentada, quando o prejuízo não vier a concretizar-se”[3].

Pondere-se ainda que o prejuízo visado não precisa ser de natureza econômica, mas de qualquer ordem, conquanto possa ter o condão de macular algum bem ou direito alheio.

Exige-se, por derradeiro, ação dolosa.

Pois bem. As condutas das investigadas não impuseram à administração qualquer dano, sequer potencial, de vez que se cuidava de guia efetivamente paga, embora em data anterior. O que houve foi o uso de documento, com a taxa devidamente recolhida, mas que não foi utilizado no feito anterior em razão de acordo a que chegaram os litigantes, tendo então as autoras aproveitado para juntar a guia em processo distinto.

Além disso, o emprego de líquido corretivo torna o suposto falsum perceptível ictu oculi, razão pela qual se exclui a possibilidade de vislumbrar crime contra a fé pública. Acrescente-se, ainda, que a hipótese remanescente, qual seja, de delito patrimonial (estelionato), também fica desde logo afastada diante da ausência de qualquer prejuízo econômico ao Estado.

Diante do exposto, deixo de oferecer denúncia ou de designar outro promotor de justiça para fazê-lo e insisto no arquivamento promovido pelo Órgão do Ministério Público. Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 20 de setembro de 2010.

 

                        Fernando Grella Vieira

                        Procurador-Geral de Justiça

/aeal



[1] Trechos retirados de Direito Penal. Parte Especial. São Paulo: Saraiva, vol. 4 (no prelo), de autoria de André Estefam.

[2] AMARAL, Sylvio do. Falsidade documental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1958. pág. 61.

[3]  AMARAL, Sylvio do. Falsidade documental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1958. pág. 67.