Código de Processo Penal, art. 28

 

Protocolado n.º 151.064/10

Autos n.º 241/10 – MM. Juízo da 1.ª Vara Criminal da Comarca de Americana

Indiciado: (...)

Vítima: (...)

Assunto: incidência das medidas despenalizadoras previstas na Lei n. 9.099/95 a contravenções penais relacionadas com violência doméstica ou familiar contra a mulher

 

EMENTA: CPP, ART. 28. CONTRAVENÇÃO PENAL DE VIAS DE FATO (D.L. N. 3.688/41, ART. 21). VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU FAMILIAR CONTRA A MULHER (LEI N. 11.340/06). INCIDÊNCIA DAS MEDIDAS DESPENALIZADORAS DA LEI N. 9.099/95 AO CASO. RESTRIÇÃO PREVISTA NO ART. 41 DA LEI MARIA DA PENHA. INTERPRETAÇÃO. DESCABIMENTO DE TRANSAÇÃO PENAL. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA QUE SE IMPÕE.

1.     A controvérsia estabelecida neste expediente reside em determinar o alcance da norma inserta no art. 41 da Lei Maria da Penha, isto é, trata-se de estabelecer se o afastamento da Lei n. 9.099/95 por ela promovido, em atos relacionados com violência doméstica ou familiar contra a mulher, se resume aos delitos ou se estende às contravenções penais.

2.     Em que pese o nobre Membro do Parquet encontrar-se amparado por sólida base doutrinária, parece-nos que a melhor solução reside em se conceber a Lei n. 11.340/06 como um sistema harmônico, de modo a compatibilizar o escopo do legislador quanto ao tratamento das infrações cometidas contra mulheres em situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência. Significa dizer que se deve buscar uma interpretação que extravase o método puramente gramatical e, mais do que isto, prestigie os elementos sistemático, histórico e teleológico.

3.     Com referência ao critério sistemático, deve-se ter em conta o disposto no art. 33 do mesmo Diploma, o qual determinou cumprir às Varas Criminais e, posteriormente, aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher “conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente”. Nota-se, destarte, que a competência dos Juizados Especiais Criminais foi afastada de modo abrangente, compreendendo todas as causas criminais.

4.     Com relação ao elemento teleológico, não há dúvida alguma que o espírito da lei foi dar maior proteção ao núcleo familiar, independentemente da nomenclatura do ilícito penal. Vale dizer que a mens legis, relativamente ao alcance de seus institutos, prega a análise do contexto em que o comportamento ocorreu, ou seja, se possui relação com violência doméstica e familiar, nos termos do disposto no art. 5º, I, c.c. o art. 7º, I e II, da Lei 11.340/06.

5.     No que pertine ao elemento histórico, constitui fato notório e de há muito reconhecido a elevada gravidade de tais condutas. Durante anos tais atos foram subsumidos à Lei dos Juizados Especiais com desastrosas consequências para as vítimas do crime. Deveras, mulheres eram (e são) covardemente agredidas no âmbito de seu lar e, por temor ou vergonha, não comunicavam o ocorrido às autoridades. Das poucas que se decidiam a fazê-lo, muitas voltavam atrás e se retratavam, seja por verificarem que nada se fazia para protegê-las ou por terem sido novamente ameaçadas ou agredidas pelos agentes. Daí a razão de ser do art. 16 (que estabelece a necessidade de confirmação em juízo da retratação da representação nos crimes de ação penal pública a ela condicionada) e das medidas protetivas dos arts. 22 a 24 da Lei.

6.     Nos poucos casos em que o fato era comunicado à Polícia e a ofendida não recuava em sua atitude, aplicava-se a Lei n. 9.099/95 e, sendo o ofensor primário e de bons antecedentes, recebia uma proposta de transação penal, muitas vezes resumida ao pagamento de valores em dinheiro a entidades ou à entrega de cestas básicas. Ou seja, o autor do fato desembolsava uma quantia em dinheiro e se via livre da acusação, retornando ao lar para conviver com a vítima. Por este motivo é que não se permitem “aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa” (art. 17 da Lei n. 11.340/06). Pois bem. O art. 41 da Lei mencionada, objeto central da discussão trazida neste processo, coloca-se na mesma linha de Política Criminal dos dispositivos acima mencionados, consistente em tratar com severidade infrações relacionadas com violência doméstica ou familiar contra a mulher.

7.     Parece-nos, aliás, que agiu bem o legislador. Essa atitude coaduna-se com a moderna concepção do princípio da proporcionalidade em sua faceta de proibição de proteção deficiente (Untermassverbot), que opera como um “recurso auxiliar” para determinação da medida do dever de prestação legislativa, estabelecendo-se um padrão mínimo das medidas estatais do qual não se pode abrir mão, sob pena de afronta à Constituição.

8.     Diante do que se expôs, pode-se concluir que o rigor imprimido pela Lei n. 11.340/06, a qual, entre outras disposições, afastou do alcance das infrações penais ligadas à violência doméstica ou familiar contra a mulher os dispositivos da Lei n. 9.099/95, afina-se com o princípio citado, pois visa a evitar a proteção (material e processual) deficiente à ofendida que vigorava até então. A conclusão que aqui se sufraga já foi acolhida pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em voto proferido pelo eminente Ministro JORGE MUSSI: “Assim, apesar do art. 41 da citada norma dispor que "aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995", a expressão "aos crimes" deve ser interpretada de forma a não afastar a intenção do legislador de punir, de forma mais dura, a conduta de quem comete violência doméstica contra a mulher, afastando de forma expressa a aplicação da Lei dos Juizados Especiais” (trecho do voto proferido no julgamento do CC 102.571/MG, rel. Ministro JORGE MUSSI, 3ª SEÇÃO, julgado em 13/05/2009, DJe de 03/08/2009).

Solução: designação de outro membro do Parquet para propor a ação penal e prosseguir nos ulteriores termos da causa.

 

Cuida-se de procedimento instaurado visando a apurar contravenção penal de vias de fato (D.L. n. 3.688/41, art. 21), praticada, em tese, no dia 16 de fevereiro de 2010, por volta das 15 horas, figurando como autor do fato (...).

O Douto Promotor de Justiça pugnou pela designação de audiência preliminar, visando à elaboração de proposta de aplicação imediata de pena alternativa (fls. 19).

O MM. Juiz, todavia, indeferiu o pleito, por se tratar de fato relacionado com violência doméstica e familiar contra a mulher, para o qual incidiria a vedação estampada no art. 41 da Lei n. 11.340/06 (fls. 20).

O Ilustre Representante Ministerial, então, justificou seu requerimento, aduzindo entender que o óbice retro mencionado não atingiria contravenções penais, somente crimes (fls. 21/23).

O Digno Magistrado reiterou sua posição e, em face da opinio exarada, aplicou à espécie o art. 28 do CPP, remetendo o feito a esta Procuradoria Geral de Justiça (fls. 25/28).

Eis a síntese do necessário.

A controvérsia estabelecida neste expediente reside em determinar o alcance da norma inserta no art. 41 da Lei Maria da Penha, isto é, trata-se de estabelecer se o afastamento da Lei n. 9.099/95 por ela promovido, em atos relacionados com violência doméstica ou familiar contra a mulher, se resume aos delitos ou se estende aos crimes anões.

Em que pese o nobre Membro do Parquet encontrar-se amparado por sólida base doutrinária, parece-nos que a melhor solução reside em se conceber a Lei n. 11.340/06 como um sistema harmônico, de modo a compatibilizar o escopo do legislador quanto ao tratamento das infrações cometidas contra mulheres em situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência. Significa dizer que se deve buscar uma interpretação que extravase o método puramente gramatical e, mais do que isto, prestigie os elementos sistemático, histórico e teleológico.

Com referência ao critério sistemático, deve-se ter em conta o disposto no art. 33 do mesmo Diploma, o qual determinou que cumprir às Varas Criminais e, posteriormente, aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher “conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente”. Nota-se, destarte, que a competência dos Juizados Especiais Criminais foi afastada de modo abrangente, compreendendo todas as causas criminais.

Com relação ao elemento teleológico, não há dúvida alguma que o espírito da lei foi dar maior proteção ao núcleo familiar, independentemente da nomenclatura do ilícito penal. Vale dizer que a mens legis, relativamente ao alcance de seus institutos, prega a análise do contexto em que o comportamento ocorreu, ou seja, se possui relação com violência doméstica e familiar, nos termos do disposto no art. 5º, I, c.c. o art. 7º, I e II, da Lei 11.340/06.

No que pertine ao elemento histórico, constitui fato notório e de há muito reconhecido a elevada gravidade de tais condutas. Durante anos tais atos foram subsumidos à Lei dos Juizados Especiais com desastrosas consequências para as vítimas do crime. Deveras, mulheres eram (e são) covardemente agredidas no âmbito de seu lar e, por temor ou vergonha, não comunicavam o fato às autoridades. Das poucas que se decidiam a fazê-lo, muitas voltavam atrás e se retratavam, seja por verificarem que nada se fazia para protegê-las ou por terem sido novamente ameaçadas ou agredidas pelos agentes. Daí a razão de ser do art. 16 (que estabelece a necessidade de confirmação em juízo da retratação da representação nos crimes de ação penal pública a ela condicionada) e das medidas protetivas dos arts. 22 a 24 da Lei.

Nos poucos casos em que o evento era comunicado à Polícia e a ofendida não recuava em sua atitude, aplicava-se a Lei n. 9.099/95 e, sendo o ofensor primário e de bons antecedentes, recebia uma proposta de transação penal, muitas vezes resumida ao pagamento de valores em dinheiro a entidades ou à entrega de cestas básicas. Ou seja, o autor do fato desembolsava uma quantia em dinheiro e se via livre da acusação, retornando ao lar para conviver com a vítima. Por este motivo é que não se permitem “aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa” (art. 17 da Lei n. 11.340/06).

Pois bem. O art. 41 da Lei mencionada, objeto central da discussão trazida neste processo, coloca-se na mesma linha de Política Criminal dos dispositivos acima mencionados, consistente em tratar com severidade infrações relacionadas com violência doméstica ou familiar contra a mulher.

Parece-nos, aliás, que agiu bem o legislador. Essa atitude coaduna-se com a moderna concepção do princípio da proporcionalidade.

Em sua concepção originária, a proporcionalidade fora concebida como limite ao poder estatal em face da esfera individual dos particulares; tratava-se de estabelecer uma relação de equilíbrio entre o “meio” e o “fim”, ou seja, entre o objetivo que a norma procurava alcançar e os meios dos quais ela se valia.

Sua origem normativa repousa na Carta Magna de 1215, nos itens 20 e 21, quando dizia que: “For a trivial offence, a free man shall be fined only in proportion to the degree of his offence...”; “Earls and barons shall be fined only by their equals, and in proportion to the gravity of their offence”.

Montesquieu e Beccaria também desenvolveram o conceito de proporcionalidade, o último, como é cediço, o fez no âmbito do Direito Penal.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, declara que: “a lei não deve estabelecer outras penas que não as estrita e evidentemente necessárias” (art. 8º).

 A evolução da proporcionalidade deve-se muito à contribuição de países ocidentais no pós-guerra, referentemente à vedação de arbitrariedade.

Mais recentemente, todavia, se tem admitido outra faceta do princípio: a proibição de proteção deficiente (Untermassverbot), cuja dignidade constitucional foi reconhecida pelo Tribunal Constitucional da Alemanha.

A proibição de proteção deficiente deve ser um “recurso auxiliar” para determinação da medida do dever de prestação legislativa, estabelecendo-se um padrão mínimo das medidas estatais do qual não se pode abrir mão, sob pena de afronta à Constituição. Nesse sentido, a obra de LUCIANO FELDENS, intitulada “A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais” (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005).

Diante do que se expôs, pode-se concluir que o rigor imprimido pela Lei n. 11.340/06, a qual, entre outras disposições, afastou do alcance das infrações penais ligadas à violência doméstica ou familiar contra a mulher os dispositivos da Lei n. 9.099/95, afina-se com o princípio da proporcionalidade, pois visa a evitar a proteção (material e processual) deficiente à ofendida que vigorava até então.

A conclusão que aqui se sufraga já foi acolhida pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como bem lembrou o Digno Magistrado, em voto proferido pelo eminente Ministro JORGE MUSSI:

“Assim, apesar do art. 41 da citada norma dispor que "aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995", a expressão "aos crimes" deve ser interpretada de forma a não afastar a intenção do legislador de punir, de forma mais dura, a conduta de quem comete violência doméstica contra a mulher, afastando de forma expressa a aplicação da Lei dos Juizados Especiais” (Trecho do voto proferido no julgamento do CC 102.571/MG, rel. Ministro JORGE MUSSI, 3ª SEÇÃO, julgado em 13/05/2009, DJe de 03/08/2009).

Em face do exposto, parece-nos inaplicável à hipótese a transação penal, como aventou o mui competente Promotor de Justiça, sendo mesmo caso de oferecimento de denúncia. Designo, portanto, outro membro do Parquet para propor a ação penal e prosseguir nos ulteriores termos da causa.

Faculta-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n. 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n. 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.

Expeça-se portaria designando o substituto automático.

Cumpra-se. Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 29 de novembro de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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