Código de Processo Penal, art. 28

 

Protocolado n.º 161.011/10

Autos n.º 002.08/000168-0 – MM. Juízo da 2.ª Vara Criminal do Foro Regional de Santo Amaro (Comarca da Capital)

Investigada: (...)

Assunto: arquivamento indireto de inquérito policial (controvérsia relativa à capitulação jurídica do fato: maus-tratos ou cárcere privado qualificado)

 

EMENTA: CPP, ART. 28. ARQUIVAMENTO INDIRETO. REQUERIMENTO MINISTERIAL VISANDO À REMESSA A OUTRO ÓRGÃO JUDICIAL. INDEFERIMENTO. ENVIO DO PROCEDIMENTO À PGJ. CABIMENTO. DIVERGÊNCIA ACERCA DA CAPITULAÇÃO JURÍDICA DOS FATOS: MAUS-TRATOS (CP, ART. 136) OU CÁRCERE PRIVADO (CP, ART. 148). ELEMENTO SUBJETIVO DIVERSO DO ANIMUS CORRIGENDI VEL DISCIPLINANDI. ATRIBUIÇÃO DAS PROMOTORIAS CRIMINAIS DA CAPITAL.

1.     No procedimento sub examen não houve pedido formal de arquivamento dos autos. De ver-se, contudo, que ocorreu o chamado “arquivamento indireto”. Tal figura se dá justamente quando o Representante do Ministério Público declina de sua atribuição e requer o envio do procedimento a outro juízo supostamente competente e o magistrado, discordando do requerimento, o indefere. Deveras, não pode o juiz simplesmente obrigar o Promotor de Justiça a examinar o mérito da causa, promovendo o arquivamento do inquérito ou oferecendo denúncia, sob pena de violar não só o princípio da independência funcional, mas sobretudo o princípio da demanda. A solução viável em tais situações, portanto, só pode ser a aplicação analógica do art. 28 do CPP. Nestes termos, a lição de EDÍLSON MOUGENOT BONFIM: “A manifestação do promotor público pela competência da Justiça Federal em razão da natureza do delito caracteriza pedido indireto de arquivamento em face do magistrado que se deu por competente, cuja decisão é irrecorrível (art. 581, inc. II, do CPP), devendo ser o impasse solucionado pela aplicação do art. 28 do CPP (remessa dos autos ao procurador-geral), tendo em vista a preservação da titularidade da ação pública” (Código de Processo Penal Anotado, São Paulo, Saraiva, 2007, p. 82).

2.     No mérito, não é possível atribuir à conduta da suspeita o crime menos grave (maus-tratos), pois ausente no comportamento da investigada o elemento subjetivo específico presente nesta infração, traduzido no fim de educar, ensinar, tratar ou custodiar (animus corrigendi vel disciplinandi). Precedente jurisprudencial (STJ, CC n. 102.833, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, 3.ª SEÇÃO, julgado em 26/08/2009, DJe de 10/09/2009). Na hipótese vertente, a atitude não foi movida por nenhum dos propósitos antes assinalados; antes disso, agiu a investigada, segundo declarou, porque precisava trabalhar e não tinha com quem deixar as filhas. Deve-se destacar, todavia, que nem mesmo essa finalidade resultou plenamente demonstrada, posto que ela aduziu ter deixado às menores comida, as chaves da residência e asseverou ter saído no dia anterior, ao passo que as testemunhas indicaram que as infantes ali se encontravam há dois dias, trancadas e em prantos, tendo os vizinhos improvisado uma corda para levar alimentos, pela janela, às crianças, somente libertadas quando policiais arrombaram a porta do imóvel e as libertaram.

Solução: deixo de designar outro promotor de justiça para oferecer denúncia ou transação penal e insisto na remessa do procedimento ao Foro Central da Capital.

 

Cuida-se de procedimento dedicado à apuração da conduta de (...) que, no dia 09 de novembro de 2007 deixou suas filhas menores, (...) e (...), então com três e nove anos, respectivamente, trancadas no interior do imóvel em que residiam, enquanto se ausentou para trabalhar.

Ao final das investigações, o Douto Promotor de Justiça considerou que o comportamento praticado consistia em crime de cárcere privado qualificado (CP, art. 148, §1.º, inc. I, segunda figura), delito apenado com reclusão, o que resultaria na competência ratione materiae dos Juízos Criminais do Foro Central (fls. 96/97).

O MM. Juiz, todavia, ponderou que a conduta atribuída à suspeita se subsumiria ao tipo penal insculpido no art. 136 do CP, isto é, caracterizaria maus-tratos, agravado pela idade das vítimas e, em face da pena cominada ao delito, aduziu ser competente para o exame da causa, aplicando, por analogia, o art. 28 do CPP (fls. 98).

Eis a síntese do necessário.

Deve-se considerar, preliminarmente, que no procedimento sub examen não houve pedido formal de arquivamento dos autos. De ver-se, contudo, que ocorreu o chamado “arquivamento indireto”. Tal figura se dá justamente quando o Representante do Ministério Público declina de sua atribuição e requer o envio do procedimento a outro juízo supostamente competente e o magistrado, discordando do requerimento, o indefere.

Deveras, não pode o juiz simplesmente obrigar o Promotor de Justiça a examinar o mérito da causa, promovendo o arquivamento do inquérito ou oferecendo denúncia, sob pena de violar não só o princípio da independência funcional, mas sobretudo o princípio da demanda.

A solução viável em tais situações, portanto, só pode ser a aplicação analógica do art. 28 do CPP.

Nestes termos, a lição de EDÍLSON MOUGENOT BONFIM:

 

“A manifestação do promotor público pela competência da Justiça Federal em razão da natureza do delito caracteriza pedido indireto de arquivamento em face do magistrado que se deu por competente, cuja decisão é irrecorrível (art. 581, inc. II, do CPP), devendo ser o impasse solucionado pela aplicação do art. 28 do CPP (remessa dos autos ao procurador-geral), tendo em vista a preservação da titularidade da ação pública” (Código de Processo Penal Anotado, São Paulo, Saraiva, 2007, p. 82).

 

Admitida, destarte, a intervenção desta Procuradoria-Geral de Justiça, incumbe analisar o mérito.

Pois bem.

Com a devida vênia do MM. Juiz, parece-nos que a razão está com o Douto Promotor de Justiça.

Não é possível atribuir à conduta da suspeita o crime menos grave, pois se trata de infração penal com elemento subjetivo específico, traduzido no fim de educar, ensinar, tratar ou custodiar (animus corrigendi ou disciplinandi).

É o que se deduz do preceito primário, assim redigido:

 

“Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina” (grifos nossos).

 

Não é outra a orientação de nossos tribunais acerca do tema:

 

“PROCESSO PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. AGRESSÕES FÍSICAS CONTRA MENORES INTERNADOS NA APAE. IMPOSSIBILIDADE DE SUBSUNÇÃO DA CONDUTA NO DELITO DE MAUS TRATOS (ART. 136 DO CPB) ANTE A NÃO VERIFICAÇÃO, AO MENOS ATÉ ESTA ALTURA, DO ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO ESPECÍFICO DESTE DELITO (PARA FIM DE EDUCAÇÃO, ENSINO, TRATAMENTO OU CUSTÓDIA), MAS SIM DO PROPÓSITO DE CAUSAR SOFRIMENTO, PRÓPRIO DO CRIME DE TORTURA.  (...).

1.    Para que se configure o delito de maus tratos é necessária a demonstração de que os castigos infligidos tenham por fim a educação, o ensino, o tratamento ou a custódia do sujeito passivo, circunstâncias que não se evidenciam na hipótese. Precedente desta Corte.

2.   A conduta verificada nos autos encontra melhor adequação típica na descrição feita pelo art. 1o., II da Lei 9.455/97 - tortura, o que não exclui a possibilidade de outra definição do fato se verificado, depois de realizada mais aprofundada cognição probatória, serem outras as circunstâncias delitivas.

(...)”.

(STJ, CC n. 102.833, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, 3.ª SEÇÃO, julgado em 26/08/2009, DJe de 10/09/2009)

 

Na hipótese vertente, a atitude da suspeita não foi movida por nenhum dos propósitos antes assinalados; antes disso, agiu, segundo declarou, porque precisava trabalhar e não tinha com quem deixar as filhas. Deve-se destacar, todavia, que nem mesmo essa finalidade resultou plenamente demonstrada, posto que ela aduziu ter deixado com as menores comida, as chaves da residência e asseverou ter saído no dia anterior, ao passo que as testemunhas indicaram que as menores ali se encontravam há dois dias, trancadas e em prantos, tendo os vizinhos improvisado uma corda para levar alimentos, pela janela, às infantes.

A conduta da investigada, objetivamente, resultou em evidente mácula à liberdade de deambulação das vítimas, subsumindo-se, portanto, à infração penal sugerida na r. cota ministerial.

Deve-se lembrar que o cárcere privado não exige, como regra, elemento subjetivo específico algum, como se deduz do caput do art. 148 do CP (“Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado”). É o que se pode extrair do seguinte julgado:

 

“Indiscutível que há grande afinidade entre a privação de liberdade pelo seqüestro, ou pelo cárcere privado, com o crime de constrangimento ilegal, pois em ambos há uma constrição da liberdade pessoal. Porém, no delito do art. 148 do CP o que se constringe é principalmente a liberdade de locomoção e a atividade antijurídica se protrai no tempo, ao passo que no constrangimento só há compressão da liberdade pessoal no tocante a determinada ação ou omissão e não há permanência do momento consumativo. Assim, privada a vítima de sua liberdade de locomoção não momentaneamente, em privação rápida ou instantânea, mas por longo espaço de tempo, caracteriza-se o seqüestro, e não o constrangimento ilegal” (TJSP, RT 650/265; grifos nossos).

 

O fator determinante para se dar ao fato sua correta definição jurídica, portanto, reside na atitude psicológica do agente ou no opróbrio motivador do ato.

Nesse sentido, as provas reunidas no inquérito policial demonstram que a autora não buscou corrigir (i.e., educar) suas filhas. Pelo contrário, moveu-se por finalidades distintas. Não há falar-se, destarte, em crime de maus-tratos.

Diante do exposto, deixo de designar outro promotor de justiça para oferecer denúncia ou transação penal e insisto na remessa do procedimento ao Foro Central da Capital.

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 14 de dezembro de 2010.

 

                        Fernando Grella Vieira

                        Procurador-Geral de Justiça

/aeal